William Basinski na igreja de St. George: um banho de beleza árida e fúnebre
Sentia-se entre o público um grande respeito pelo que ia acontecer. Por um lado é incomum acolhermos no nosso país William Basinski, um dos nomes mais respeitados do ambient, um género que — atravessamo-nos com uma opinião cujo fundamento é mera impressão — tem vindo a captar franjas crescentes de novos públicos ao longo da última década, alastrando a cada vez mais ouvidos pacientes (num tempo de tantas acelerações desenfreadas). Depois, o cenário proposto pela Galeria Zé dos Bois não poderia ser mais adequado: a belíssima igreja de St. George – localizada no meio do cemitério britânico junto ao jardim da Estrela — é um cenário belíssimo, com uma acústica e uma estética mais do que apropriadas para este tipo de concertos (já aqui vimos, em anos anteriores, concertos de Avey Tare e Kali Malone – este último, incrível).
O próprio artista elogiou a sala, enquanto monitorizava o seu equipamento, e segundos antes de fazer soar as primeiras notas de “The Wheel of Fortune“, faixa constante no seu álbum de 2020 Lamentations. Basinski gesticula com as mãos e os braços, de forma expressiva, como um maestro que dá o mote a uma orquestra, marcando o compasso e a expressividade de onde quer que a música nasça. Foi, diga-se de passagem, um dos momentos em que o artista mais se expressou fisicamente ao longo de todo o concerto, tendo optado por uma postura mais constrita dali em diante.
Só que à frente do músico norte-americano não estão músicos, e sim três instrumentos tecnológicos: no centro um computador; à direita, uma mesa de mistura com botões interactivos; e à esquerda um reprodutor de cassetes / fitas magnéticas. A presença deste último equipamento poderia dar azo a que parte do público pudesse ter alguma expectativa de ouvir pelo menos algum excerto daquela que é considerada não só a sua obra-prima, mas uma das criações mais respeitadas de todo o género ambient: a série Desintegration Loops, lançada entre 2002 e 2003, construída a partir de deterioração progressiva de cassetes. Não tivemos o gosto de visitar esse lugar musical específico, que tanto nos é querido. Acontece que o músico trabalha muito frequentemente com este meio, que tem direito, aliás, a uma etiqueta no universo de subgéneros musicais: tape music é o nome dado a esta experimentalidade em torno do uso de fitas magnéticas na produção e reprodução musical.
O alinhamento foi, portanto, pontuado por duas dúzias de trechos que se seguiam uns aos outros, por vezes sobrepondo-se, numa estrutura algo partida. Foram poucos os samples que permaneceram connosco mais do que dois minutos seguidos, tendo constituído uma montra diversa de melodias, timbres e texturas, sob um mesmo manto emocional algo tenso e fúnebre, em alguns pontos talvez árido; tendo talvez a segunda metade sido pautada por momentos de maiores serenidade e beleza, ainda assim sob um manto de tristeza.
Basinski apresentou-se essencialmente paisagens sonoras acústicas: violinos e orquestras de cordas, eventualmente alguns sintetizadores a simulá-las; tudo isto apresentado com efeitos de distorção, com um carácter granulado, de embalado. Mas também nos foram apresentadas vozes femininas, em registo lírico, com melodias belas e repetitivas que se erguiam como presença do humano no meio do caos sónico — foram talvez estes os momentos mais cativantes da manta de bordados construída pelo músico ao longo dos cerca de 45 minutos de concerto (numa performance mais curta do que a nossa expectativa apontava). Entre o transe induzido por estes estados letárgicos e belos, não conseguimos identificar a maior parte dos trechos samplados e apresentados ao longo da noite. Deixámo-nos apenas conduzir por esse sonho difuso.
Basinski explorou mais as frequências médias, nas paisagens sónicas distorcidas, e as agudas. Destaque-se a título de exemplo, um sibilo muito sobrado que se fez ouvir de forma intermitente quase metade do concerto. Curiosamente, nos momentos em que este sopro se silenciava, o contraste que a sua ausência provocava replicava um sentimento de radical intimidade. As frequências graves foram as grandes ausentes do concerto, com apenas algumas linhas meio sumidas e pouco definidas; no geral, terá faltado algum “chão” ao concerto. Mas esta é a sonoridade de Basinski, são estas as frequências que explora frequentemente na sua música, investindo em sonoridade mais aéreas e etéreas, de olhar levantado.
Os últimos minutos do concerto foram vividos ao som do loop que viria a acompanhar-nos até ao exterior; não porque tenha continuado a soar nas colunas, após o extenso fade out que nos permitiu distinguir progressivamente o silêncio ambiente (que nunca é silêncio absoluto, entenda-se), mas sim porque nos permaneceu na memória, ainda e outra vez. Já fora da igreja, atravessando o cemitério, ouvimos alguém cantarolar aquela mesma cadência. Também a nossa mente se torna fita, espaço em que a música habita, cassete com o potencial de transformar em algo mais belo alguma coisa no mundo.