Yo La Tengo no Capitólio: entre o silêncio e o ruído há música que emociona
Foi diante de uma plateia muito bem composta que os Yo La Tengo subiram ao palco do Capitólio. Depois de 2010 e 2013, é a terceira vez que passam por Portugal nesta década, fazendo sempre questão de tocar quer em Lisboa, quer no Porto; se a isto somarmos os festivais de verão, concluímos que são uma banda muito presente e que tem gosto em passar por Portugal quando atravessa o oceano. Isto é especialmente valioso porque a banda americana é conhecida por variar radicalmente o seu repertório – em Dezembro último, por exemplo, no contexto de uma residência numa sala em Nova Iorque, os Yo La Tengo deram oito concertos sem repetir uma única música. Concertos longos, com alinhamentos na ordem das duas dezenas de temas. O segredo: muitos anos juntos, uma mesma linguagem musical, uma conexão evidente, flexibilidade e improviso na interpretação. Cada concerto é uma ocasião única. E isso é muito bom.
O cenário é muito simples: para além dos instrumentos, só uma dúzia de vinis dependurados, decorados com padrões vários, suspensos sobre os actores prestes a ocupar os seus lugares. Subtil alusão ao movimento circular da capa do último álbum, There’s a Riot Going On? Seja qual for o motivo, faz sentido – a música dos Yo La Tengo é apaixonada por outros artistas, faz-se de referências, expressa-se frequentemente em covers e é também fruto de uma paixão pela descoberta musical de quem compõe o colectivo (como Ira afirmou em entrevista ao Observador, dias antes da vinda para Lisboa).
Não há banda de aquecimento. São os Yo La Tengo os primeiros a ocupar o palco, com um atraso de aproximadamente vinte minutos (a dar tempo a quem se atrasava – era noite de futebol; Ian gracejou e agradeceu a dobrar por, apesar disso, terem vindo). O concerto iria ter dois sets: um primeiro, mais sereno, com temas difíceis de imaginar em cenário festivaleiro ou fora de um ambiente intimista; e um segundo, após o intervalo, mais abrasivo e expansivo. A isto somou-se um encore com mais três temas. Era meia-noite e um quarto quando saímos da sala: mais de três horas depois de termos entrado. A música dos Yo La Tengo é para ser digerida devagar, por quem tenha tempo, paciência e disponibilidade.
O concerto abre com algum balanço, com “You Are Here”; ouvem-se as texturas de uma banda que ainda mantém uma assinatura fresca no seu som, mais de trinta anos após o seu começo. Juntamente com “Forever”, o tema que se segue, há no ar uma atmosfera não totalmente distante dos momentos mais calmos dos Slowdive, embora com uma contenção assinalável e uma orientação menos evidentemente melódica, que exige ao público o silêncio absoluto (nem sempre conseguido ao longo da noite, infelizmente).
O solo de guitarra de “Pablo and Andrea” foi o primeiro momento em que deixei de estar ali – ou passei a estar ali totalmente, conforme a perspectiva. O eco ligeiro, a clareza das notas, cordas próximas e aconchegantes. Improviso focado: não parece fácil, esta arte de se inventar na hora e sem excessos, mas, nos seus melhores momentos, os Yo La Tengo conseguem fazê-lo com mestria. As dinâmicas da guitarra em “Song for Mahila” também não desiludem – e são preciosas as oportunidades de se ouvir temas pouco interpretados ao vivo pelos Yo La Tengo nos últimos anos. Mas é a sequência belíssima de “I’ll Be Around” – repescada de Fade, o álbum editado em 2013 – o momento mais emocionante da primeira parte do concerto. Sente-se a paz e a serenidade, materializa-se ali; apesar da melancolia, é convocado um lugar de conforto que tem sabor a casa.
Na maior parte dos momentos, Ira Kaplan, Georgia Hubley e James McNew ocupam os papéis nos quais são especialistas: a guitarra, a bateria e o baixo, respectivamente. Mas qualquer um deles se passeia pelo palco, nas transições entre cada tema, para assumir ora as teclas, ora os instrumentos uns dos outros, e até umas percussões extra aqui e ali. Também vão alternando no lugar frente ao microfone. Sente-se que a banda faz daquele espaço um pequeno mundo de possibilidades, no qual se movimentam como peixes na água, absolutamente confiantes no poder das suas canções e na segurança que depositam uns nos outros.
A segunda parte trouxe barulho à sala. Muitos decibéis. Daqueles que nos fazem arrepender de não termos trazido tampões para os ouvidos. Exemplo máximo mais expressivo disto foi “Sudden Organ” – que chega mesmo a roçar o limiar do… insuportável? A culpa é minha, que não trouxe os tampões! Mas talvez não fosse apenas uma questão de volume – não estava a ser bonito. Talvez porque a expressão compulsiva de Ira na guitarra seja mais inspirada do que no teclado. E isso provou-se na sequência das últimas três músicas do concerto, cada uma mais bonita que a outra, e nem por isso menos abrasivas que a “Sudden Organ” (talvez ligeiramente…). “Drug Test” desenvolve-se com ritmo, assim como “Tom Courtenay”, sustentadas por solos inspirados e rasgados, emoção a ser convertida em criatividade.
Mas é “I Heard You Looking” o closer perfeito – uma daquelas músicas que, aos acordes iniciais, já promete uma longa e emocionante viagem, em crescendo, até ao reino infinito das possibilidades que fazem parte da natureza dos mantras. O encore que se seguiu, com um par de covers e boa disposição nos rostos da audiência e da banda, soube bem. Mas foram os acordes de “I Heard You Looking” o que de mais forte trouxemos connosco para fora da sala. Bandas assim, exigentes e inspiradas, não as há aos molhos. Que os Yo La Tengo continuem a criar com a mesma sede que os tem guiado desde os anos 80 até hoje e a deslumbrar as plateias pacientes que se dispuserem a parar para os ouvir.