A rainha das faculdades

por Valério Romão,    4 Setembro, 2018
A rainha das faculdades

Chesterton diz no primeiro capítulo da Ortodoxia que um homem sem imaginação é louco; que não é a ausência de racionalidade, mas o excesso, que torna os homens dementes. O nosso entendimento da loucura é normalmente inverso: mesmo sem pensar nisso, achamos que a loucura – pelo menos uma boa parte – resulta de um excesso imaginativo e de um défice de racionalidade. Chesterton argumenta precisamente o contrário. Para ele, a racionalidade em excesso corresponde, simbolicamente, à figura do círculo e da espiral, duas figuras ilimitadas (um homem pode caminhar para sempre sobre um trajecto em círculo e cair para sempre dentro de uma espiral) mas absolutamente finitas. Um homem que acredita ser Napoleão vive circularmente. Tudo o que está à sua volta está relacionado – ou relaciona-se imediatamente – com a sua forma específica de loucura. Tudo quanto aparece confirma aquilo em que acredita ou, no caso contrário, é interpretado como um sinal da grande cabala pela qual o querem destituir da sua crença e dos direitos que esta promete granjear. Está preso a uma ideia da qual não consegue abstrair-se e de que não se consegue distrair. Caminha em círculos. Se conseguisse imaginar outra coisa ou relaxar por momentos, aquela ilusão podia desabar e o véu que a caracteriza podia desaparecer. Mas este homem é escravo da racionalidade, na forma de uma ideia que tudo polariza e nada deixa de fora. Nem o caminho de saída.

Num texto chamado Advice to a Graduation, proferido no Canadá em 1964, para alunos finalistas do Royal Conservatory of Music, Glenn Gould diz “Devem tentar descobrir o grau de tolerância que têm às perguntas que fazem a vocês mesmos. Devem tentar perceber qual o ponto depois do qual a exploração criativa – perguntas que engrandecem a vossa visão do mundo – abrange mais do que aquilo que é tolerável e paralisa a imaginação, confrontando-a com demasiadas possibilidades, demasiada oportunidade especulativa. Encontrar esse ponto no qual as questões práticas do pensamento sistemático e as oportunidades especulativas do instinto criativo estão em equilíbrio é o mais difícil e importante empreendimento da vossa vida na música.” A imaginação, para Gould, não somente é indispensável à manutenção da normalidade como é a faculdade pela qual o instinto criativo organiza o espaço negativo que o rodeia em qualquer coisa que corresponderá, mais tarde, a um adquirido do pensamento sistemático. O sistema é uma ilhota frágil a partir da qual o homem mergulha para recolher algo que possa trazer para a sua ilha para torná-la mais vasta ou mais sólida. A imaginação é a faculdade do mergulho em apneia.

“a linha que divide o cérebro e a alma
é afectada de diversas formas através da
experiência –
alguns perdem completamente a mente e tornam-se apenas alma:
lunáticos.
alguns perdem toda a alma e tornam-se apenas mente:
intelectuais.
alguns perdem ambas e tornam-se:
aceites.”

Bukowski, no poema supracitado – Lifedance – parece indicar que a imaginação (neste caso, sob a regência da alma) é a única coisa pela qual um homem pode evitar tornar-se intelectual. Este intelectual de Bukowski não corresponde à noção positiva de produção de conhecimento mas a uma coisa exangue, repetitiva e impermeável à novidade e à mudança. Algo ao modo do louco de Chesterton, mas socialmente sancionado, logo, mais perigoso.

Há um lado em mim, muito racional, ao qual o romantismo das afirmações grandiosas acerca da imaginação e das suas virtudes lhe faz comichão cínica. Talvez seja o adulto que tenta amordaçar a criança que teima em espernear ainda. Mas quando olho para o mundo em meu redor – e tenho evitado fazê-lo, por razões a que nenhum de nós é alheio – penso que a única possibilidade que se nos apresenta, enquanto espécie, é a de imaginar uma saída. Porque duvido que a encontremos se apenas nos limitarmos a procurá-la.

(Nota: esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização)

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