“Guerracivilândia em mau declínio”: as histórias que George Saunders escreveu às escondidas do patrão

por David Calão,    19 Fevereiro, 2019
“Guerracivilândia em mau declínio”: as histórias que George Saunders escreveu às escondidas do patrão

A Antígona edita, pela primeira vez em Portugal, Guerracivilândia em mau declínio, o primeiro livro de George Saunders, originalmente publicado em 1996. Saunders é hoje um autor estabelecido na ficção contemporânea norte-americana. Vencedor em 2017 do Man Booker Prize com Lincoln no Bardo, o seu primeiro romance, é autor de outros livros de contos como Pastoralia ou Dez de Dezembro. É, além disso, professor de escrita criativa na Universidade de Syracuse, autor de um programa de entrevistas para a revista GQ, e colaborou também com Jeff Tweedy, de Wilco, no seu último álbum, escrevendo os textos que o acompanham.

Mas a vida não foi sempre assim para George Saunders. Guerracivilândia em mau declínio é o resultado de um trabalho de sete anos em que, trabalhando na Radian Corporation como engenheiro químico, utilizava o computador que tinha à sua disposição para escrever os seus contos. Saunders é um late bloomer: é já nos seus 37 anos que este seu primeiro livro é publicado, e essa experiência por empregos insatisfatórios, nas trincheiras do dia-a-dia do capitalismo, respondendo a gestores intermédios com tiques autoritários, obedecendo a códigos de conduta incompreensíveis, é em boa parte aquilo que alimenta os seis contos e uma novela que o compõem.

Capa do livro

As sete histórias contidas em Guerracivillândia em mau declínio partilham entre si grandes semelhanças. O título do livro coincide com o do primeiro conto e “Guerracivilândia” é o parque temático onde a acção se situa – uma reconstituição permanente da Guerra Civil americana. Os restantes contos passam-se, igualmente, em parques temáticos, com algumas excepções. As personagens estão sempre implicadas numa ficção viva – o parque – e no papel que estão de alguma forma forçadas a desempenhar. E é sempre uma ficção da qual estão conscientes, ou parcialmente conscientes, mas em que, apesar disso, têm que continuar a performar. Este é o ingrediente chave para o tom absurdista deste livro que, marcado por um humor negro bem afiado, muito próximo do de autores como Don DeLillo, Thomas Pynchon ou, mais seu contemporâneo, David Foster Wallace, traça bastante bem o espírito de um capitalismo pós-industrial nascido da segunda metade dos anos 80, com uma novilíngua muito própria e uma rede de funções e autoridades muito complexas – realidade brilhantemente satirizada na sitcom The Office, por exemplo.

Menos explícito, mas sempre presente nas suas histórias, é o facto de as personagens serem sempre movidas por um propósito económico. Não de um ponto de vista activo, mas de um ponto de vista reactivo. Isto é, as personagens estão sempre agarradas aos seus postos de trabalho – aos seus papéis dentro do parque temático – porque não têm uma alternativa. São pessoas que ficaram no lado perdedor do mercado – Down here it’s just winners and losers and don’t get caught on the wrong side of that line, já cantava Bruce Springsteen em Atlantic City – e que se sujeitam a humilhações violentíssimas – comicamente exageradas, muitas vezes – para assegurar a sua sobrevivência financeira.

Existe ainda o facto de todas estas personagens terem uma qualquer culpa a expurgar, o que funciona como um modo de justificação para que se sujeitem a tantas humilhações. Este é o ponto mais interessante na estrutura destes contos. A forma como o sistema distópico se serve de um sentimento de culpa presente na psicologia dos homens para os vergar às suas provações, que pode até ser lido como uma análise à interacção entre os mitos religiosos de culpa e os mecanismos de auto-legitimação do sistema capitalista  – as He Died to make man holy let us die to make things cheap (Leonard Cohen, Steer Your Way).

O ano em que Guerracivilândia em mau declínio foi originalmente publicado coincide com o ano de publicação do romance de culto Infinite Jest (A Piada Infinita, em portuguès), de David Foster Wallace, e partilha com ele um certo espírito. Antes de mais, ambos são distopias do capitalismo. Ambos descrevem um mundo saturado por uma linguagem empresarial vazia de significado, por publicidade e por degradação humana. Além disso, ambos partilham um tom eminentemente humorístico.

Num célebre ensaio intitulado E Unibus Pluram, Wallace alude a um efeito algo destrutivo da ironia e de como, num tempo em que a ironia tomou conta do discurso oficial, do marketing, da forma como a publicidade e os media se dirigem aos seus consumidores, usando-a para simular uma quebra de protocolo e uma autenticidade, o seu efeito seria o de destruir qualquer possibilidade de sinceridade ou de “bem”, criando um sistema em que nada é para ser levado a sério. Guerracivilândia em mau declinio é um livro com um tom inerentemente cómico, recorrendo a um humor negro – no seu real sentido, não confundir com certos abandalhamentos – que, no entanto, serve para fazer surgir o momento sublime do conto, que é sempre uma imagem deprimentemente bela, como a do encontro do protagonista do segundo conto com aquela é que nomeada até à última linha como a “Sem Braços”. Estes contos são sempre uma escuridão de absurdo de onde, a determinada fase, se abre uma ténue brecha de ternura ou sinceridade – there is a crack in everything, já se sabe.

Cerca de metade do livro é composta por sete contos e a segunda metade por uma novela, Abundância. Esta, partindo das mesmas premissas essenciais dos contos, desenvolve alguns traços mais aprofundadamente. Abundância assemelha-se – intencionalmente ou não – a Cândido ou o Optimismo, de Voltaire. Cole abandona a Terra da Abundância e percorre vários lugares que parecem prometer um destino melhor, que nunca se concretiza. Nesta novela, uma lei prescreve a escravização de todos os “Defeituosos”, que podem ter defeitos de todo o tipo – internos e externos – e que usam uma pulseira de defeituoso, que os identifica.

A história, com algo de orwelliano, oferece-se a várias interpretações acerca da interacção do sistema económico com a religião, a política e a discriminação com base em características físicas. Existe um tom burocrático e uma novilingua empresarial que estão sempre presentes – a dada altura, Cole, tentando impedir a prostituição da sua irmã Connie com um cliente, afirma que esta apenas a está a levar a cabo para não manchar a sua Avaliação de Desempenho. A história de Cole, este virgem de 30 anos com garras em vez de unhas, termina o livro no tom absurdista e violento que o marca, mas sempre com laivos de esperança e ternura – afinal, Cole é movido pelo amor à sua irmã e pela nostalgia de tempos melhores.

Numa nota do autor, no final do livro, Saunders dá-nos conta do seu percurso enquanto escritor em busca de uma voz. Enumera várias tentativas de emular ídolos literários como Joyce ou Hemingway – sempre algo falhadas ou inautênticas – e a forma como, ao ouvir a esposa rir com uns poemas “seussianos” que havia escrito para matar o tédio numa reunião de trabalho, percebeu que seria assim que a sua escrita poderia funcionar – pelo humor.

O humor está sempre presente e, muitas vezes, de forma brilhante. No entanto, por vezes parece funcionar como uma muleta demasiado conveniente. O humor serve para retirar peso e, muitas vezes, esse dispositivo é necessário. Outras vezes, no entanto, pode servir para esvaziar completamente um discurso de sinceridade. E Guerracivilândia não está sempre isento deste perigo, embora, em geral, chegue ao seu final são e salvo.

Guerracivilândia é um livro divertido, negro, ocasionalmente luminoso, e com algumas reflexões interessantes acerca do mundo do trabalho nas sociedades de economias desenvolvidas. Por todo o livro vemos, a espreitar, um George Saunders aprisionado num emprego chato e sem sentido, a tentar tornar-se escritor. O autor pode ser, aqui, ainda um “Defeituoso” escritor. É, no entanto, já uma voz própria e autêntica, cuja individualidade transpira pelas linhas que escreve. O dispositivo ficcional do parque temático cria um jogo interessante em torno das várias ficções que vivemos no nosso dia-a-dia, e da própria ideia de ficção e make-believe. Acima de tudo, é uma ficção acerca desse processo de libertação e superação do próprio autor, e isso é, em si, enquanto acto e no resultado, algo eminentemente belo.

PUB

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados

por ,    22 Abril, 2023

No maravilhoso mês de março, mês da mulher, o Prosa no Ar não podia deixar passar a oportunidade de ler […]

Ler Mais