Fábio Monteiro: “Sem a morte das pessoas no 25 de Abril a PIDE não teria caído”
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Vivemos de mitos, de memórias ensinadas, de estórias simplificadas da História. A Revolução dos Cravos pacífica, sem sangue e sem mortos é uma delas. Contaram-nos isso na escola; escreveram-nos isso nos jornais e revistas; dizem-nos isso a cada celebração e discurso oficial sobre o aniversário do 25 de Abril de 1974. Só que é mentira.
O golpe de Estado não teve só o escarlate dos cravos a dar-lhe cor. Teve o sangue de quatro pessoas assassinadas às mãos dos últimos fascistas que guardavam a PIDE/DGS. No seu canto de cisne, de dentro da sede nacional da política, na rua António Maria Cardoso, em Lisboa, pelas 20h20, saiu uma saraivada de tiros que tirou a vida a quatro pessoas:
João Guilherme de Rego Arruda, 20 anos, estudante de Filosofia, natural da ilha de São Miguel, Açores;
Fernando Luís Barreiros dos Reis, 23 anos, soldado na 1.ª Companhia Disciplinar de Penamacor, natural de Arranhó, Arruda dos Vinhos. Pai de duas crianças;
José James Harteley Barneto, 38 anos, escriturário do Grémio Nacional dos Industriais de Confeitaria. Natural de Vendas Novas, Alentejo. Deixou quatro filhos;
Fernando Carvalho Giesteira, 17 anos, natural de Vreia de Jales, Vila Pouca de Aguiar, empregado de mesa na boîte Cova da Onça, em Lisboa.
Mas havia de morrer mais gente, nesse dia, nessa rua. António Lage, 32 anos, funcionário da PIDE/DGS – não era um agente, era um administrativo, moço de recados – foi morto pelos militares revolucionários cerca das 21h20, já depois de se ter entregue. Tentou fugir, correr para casa, a poucos metros dali, mas as centenas de pessoas que se acotovelavam na rua gritaram-lhe a sentença: matem-no! Alguém a executou.
A 26 de abril de 1974, ali bem perto daquela rua, em plena baixa lisboeta, uma confusão leva os militares a disparar contra uma coluna de carros da PSP, por acharem que os agentes iam investir contra os manifestantes, no Largo Camões, em Lisboa. Manuel Cândido Martins Costa, 25 anos, polícia de choque, foi fatalmente atingido nos pulmões.
Até hoje, a identidade dos assassinos destas seis pessoas permanece uma incógnita.
Sem juízos morais sobre o valor da vida, “Esquecidos em Abril – os mortos da Revolução sem sangue”, de Fábio Monteiro, é uma investigação jornalística em forma de livro que resgata a memória e os factos sobre as vidas de quem morreu há 45 anos, no dia da suposta “Revolução sem sangue”.
Não só não foi assim no dia em que o Estado Novo caiu formalmente como, durante 14 anos, soldados e civis dos dois lados morreram aos milhares numa guerra colonialista que queria impedir a libertação e a autodeterminação dos povos africanos para manter um Império há muito condenado a ruir. Também nunca foi assim na metrópole. Centenas de pessoas foram mortas e torturadas às mãos do regime de Salazar e Caetano, para não falar das que morriam da doença, da fome e da miséria.
Perante isto, serão assim tão importantes estas mortes? “Eles não foram irrelevantes, para a História”, defende o repórter. Foi para perpetuar a memória e destruir um mito que este livro foi escrito. Mas também para lembrar que sem o sangue dos que tombaram na rua António Maria Cardoso não foi em vão. Lê-se, no livro:
“Na história do 25 de Abril, distantes dos olhos da população, os mortos da Rua António Maria Cardoso fizeram desabar qualquer possibilidade de a PIDE/DGS continuar. (Nas colónias, por força de Costa Gomes, a polícia política foi reestruturada.) Mesmo assim, estas vítimas foram esquecidas, tratadas como peças de dominó insignificantes.”
Fábio Monteiro venceu, em 2015, o prémio Gazeta Revelação de jornalismo, o mais importante galardão nacional para repórteres até 30 anos, com o trabalho “Pendurados num Sonho”, publicado no Observador. O talento para a escrita deu-lhe ainda o Prémio Branquinho da Fonseca 2017 com o livro para crianças “A Construção do Mundo”, editado no ano passado, pela Livros do Horizonte.