O fim desta civilização
Uma das minhas experiências mais belas de viver na “diáspora” foi a primeira, e única, viagem que fiz aos EUA em 2000. Aluguei um carro em Atlanta para ir a Washington. Tive que passar a noite num motel por aí. Quando preenchi o formulário com a minha morada da altura, Berlim, o tipo (branco) da recepção olhou para mim com um sorriso largo e disse-me o seguinte: “Você é o primeiro alemão que passa por aqui desde há vários anos!”. Noutras circunstâncias, ser considerado alemão ter-me-ia incomodado bastante, mas naquele momento admirei essa postura americana de não julgar a origem das pessoas com base na cor da sua pele. Até há bem pouco tempo usava essa história aqui na Europa para destacar os avanços civilizacionais americanos… As recentes declarações de Trump sobre as congressistas que deviam regressar à sua terra privam-me dessa bela história. Não há como não odiar este tipo, assassino de boas histórias.
Acusar Trump de racismo ou xenofobia seria a saída mais fácil para dar conta do que está a acontecer nos EUA. Na verdade, o assunto é mais grave do que isso. Há um certo sentido em que a sua postura é bem pior do que racismo. Sim, é imbecilibidade, pois o racismo cabe nela, mas ela nem sempre cabe no racismo, pois este pode ser a manifestação duma razão fria e calculista como, aliás, foi no sistema do Apartheid, na negação de direitos cívicos aos negros nos EUA e, na verdade, no tecido normativo mundial que convive alegremente com o bem-estar de uns poucos (muitos deles de melanina mais leve) e a miséria de muitos (muitos deles de melanina mais carregada), muitas vezes permitindo o sofrimento dos últimos para proteger o bem-estar dos primeiros. Então, no fundo, o que Trump representa é algo que a gente nunca tinha percebido bem, apesar de suspeitar, nomeadamente do cinismo por detrás da proclamação de valores universais por gente (e culturas) que quase sempre agiram à sua revelia.
Quando na Itália são presas pessoas que salvam vidas, numa Itália, portanto, cujos valores republicanos, pelo menos na versão mais simpática do legado do Império Romano, foram sempre uma fonte de inspiração para a construção de ordens políticas protectoras da liberdade individual e dos direitos cívicos, é difícil conciliar o que isso significa com a ideia de valores universais que este pessoal aqui do Ocidente não se cansa de propalar pelo mundo fora. Quando, no Brasil, um ministro da educação dum governo que se legitima pelo esforço de resgatar valores cristãos reage à descoberta de cocaína num avião que acompanha o presidente com um “tuíte” em que descreve dois anteriores presidentes (Dilma e Lula) dum partido adversário como cocaína mais pesada do que a que foi encontrada, é difícil conciliar isso com a utilidade desses valores para seja o que for.
Quando, em Portugal, uma “historiadora” publica uma tirada sem nexo em que revela mais a sua ignorância do que distingue aquilo que é considerado como sendo a cristandade e em sua defesa vem alguém que defende a ideia da superioridade de umas culturas sobre outras, fica muito difícil levar a própria ideia de cultura ocidental a sério.
Mas, se calhar, a gente se equivocou na abordagem destes assuntos. O equívoco pode estar ligado à ideia segundo a qual a civilização consistiria num processo crescente de respeito pela dignidade humana. Não é. E se calhar é por isso, também, que a gente não pode falar de culturas superiores a outras. É bem possível que a civilização seja algo mais estático do que a gente sempre pensou. É a capacidade de observar de forma consequente regras de convivência que protegem a dignidade de todos. Não é a melhoria destas regras, nem das pessoas que as devem observar. É o trabalho constante na criação de condições dentro das quais a observância dessas regras se naturaliza. É evidente que a existência dum mundo que racionaliza a injustiça social e naturaliza desequilíbrios estruturais é incompatível com este conceito civilizacional porque a sua principal premissa é o atentado constante à dignidade humana, isto é ao respeito que devemos ao outro. Neste sentido, Trump, Salvini e Bolsonaro não são uma aberração. Eles são a manifestação de tudo quanto há de errado na ideia teleológica de que civilização é um processo constante de melhoria humana que, por sua vez, seria prerrogativa duma única cultura (superior). Todo o processo civilizacional que convive com a injustiça e a desigualdade torna-se, a longo prazo, produtor da barbárie e da sua própria erosão.
O fim desta civilização, portanto, da civilização que alimentou as narrativas de progresso humano apesar do colonialismo, do comércio de escravos e da indiferença perante a miséria no mundo, nunca foi a civilização, mas sim a barbárie. O seu maior inimigo, curiosamente, nunca foi o extremismo religioso, o fanatismo revolucionário e a resistência cultural, mas sim aqueles que, no interior desse próprio projecto, não dispõem de recursos intelectuais que os permitam perceber do que se trata. Trump é mais perigoso para a América do que o integrismo islâmico, pois em toda a sua imbecilidade põe a descoberto o cinismo que sustenta a história da Carochinha que o universalismo ético ocidental representa. Bolsonaro é mais inimigo dum Brasil cristão de matriz ibérica do que aqueles que, pela via da emancipação social, renovam o tecido social brasileiro. É sintomático disto, e cruel ao mesmo tempo, que cada vez mais recai sobre o não-ocidental, sobre a vítima do sistema, a defesa e promoção dos valores que esse universalismo ético poderia ter representado. Martin Luther King Jr. fez mais pela reafirmação dos valores contidos na declaração de independência do que a própria constituição americana e suas várias emendas. Chega a ser trágico.
Vistas as coisas desta maneira, se calhar até faz sentido que esta civilização chegue ao fim. É bem possível que tenha dado tudo o que tinha a dar. Mas não é menos verdade que, ao que tudo indica, estejamos apenas a chegar ao fim apenas desta civilização, não da civilização. Os Trumps e Bolsonaros deste mundo apenas documentam isso. Quem sabe, um dia, num motel qualquer do mundo, alguém vai exclamar que há muito não passava por ali um humano…
Crónica de Elisio Macamo
Elisio Macamo é moçambicano e doutorado em Sociologia pela Universidade de Bayreuth, na Alemanha. Actualmente é professor catedrático de Sociologia e Estudos Africanos na Universidade de Basileia, na Suíça. Publicou recente Sovereign Reason (African Minds, Cape Town).