Ígor Sukhikh dá ao leitor uma potente enciclopédia sobre Tchékhov
O que fazer com um autor que dizia sofrer de “autobiografofobia”?
A montagem biográfica orientada por Ígor Sukhikh parece ser a resposta mais correcta a tal interrogação. Em “Tchékhov na vida: argumentos para um pequeno romance” (Relógio d’Água), o biógrafo deixa os documentos “falarem” sobre o proeminente escritor nascido em Taganrog, a 17 de Janeiro de 1860. A sua voz raramente se dá a conhecer. São as visões de quem conheceu Tchékhov, de quem o estudou e dos seus amigos que delimitam a personalidade do biografado. Cartas, fragmentos de ficções, perspectivas de outros autores (Gorki, Tolstoi, Bunin) justificam as 358 páginas, organizadas em 51 pontos, sobre esta proeminente figura da literatura universal.
O biógrafo dá-se a conhecer, essencialmente, através da selecção e ordenação do material. A sua voz- tal qual acontece nos livros de Svetlana Alexievich – não existe. Destaca-se a sua perspectiva, denunciada no desenvolvimento da narrativa proporcionada por tantos e diversos documentos.
Através da organização de Sukhikh, conhecemos o quotidiano de Tchékhov, o erotismo, o amor, o dinheiro, a religião e a doença.
Segundo, Sukhikh, “a montagem de documentos, o confronto de pontos de vista diferentes, sempre retificado por palavras do próprio Tchékhov, cria um efeito de fidedignidade, difícil de alcançar numa biografia narrativa construída mediante a eliminação de aspas e a interpretação desses mesmos documentos”
É uma opção autoral para clarificar a vida e obra do autor. A própria concepção do livro interroga o papel do biógrafo. Sem deixar de ser o curador, o biógrafo demite-se de dar grandes considerações pessoais. Que falem os outros, que digam o que têm a dizer aqueles que conviveram com o autor, que o estudaram, que foram conterrâneos ou contemporâneos. Os amores e desamores, a condição precária de saúde, os ditames da época presentes nas suas obras, o carácter, a família, as fobias, a visão do mundo e ademais são mostrados ao leitor numa estrutura cubista, poliédrica. É daqui – e não de uma interpretação com respectivo discurso indirecto do biógrafo – que o leitor tem de chegar às suas conclusões.
Existem várias versões sobre Tchékhov; alguns escritores comparam-no com o Salvador, mas há também o aponte de misógino, erotómano ou tísico.
“Tchékhov na Vida: argumentos para um pequeno romance” clarifica, mas não conclui. Nem parece possível que seja de outra forma. A pluralidade fomenta visões antagónicas. A ausência da tal voz autoral, a voz do biógrafo, propicia a existência de incoerências benéficas para a compreensão. O texto não é “pasteurizado” nem homogeneizado.
Gruzínski dá conta disso mesmo num dos seus testemunhos, ao contrapor as memórias de Potápenko com as de K. S. Barantsévtich, que chegou a viver em casa de Tchékhov.
Para Potápenko, o autor de “O Ginjal” nunca escrevia na presença de alguém. Barantsévtich defendia o contrário, afirmando que um popular local perambulava pela casa de campo do autor tendo a possibilidade de ler os rascunhos. Gruzinski deu razão a Barantsévtich, pois “Tchékhov nunca fazia do seu trabalho um mistério nem uma cerimónia sagrada, o seu trabalho nunca exigia um isolamento no gabinete, com as cortinas corridas, as portas fechadas.”
Mais transtorno e isolamento lhe causava a doença intestinal que lhe provocava diarreias e desidratação. Em Moscovo, por exemplo, Tchékhov sofreu com o clima. O frio e a neve fizeram com que ele se constipasse, tivesse dores nos braços e nas pernas. Não dormiu de noite, emagreceu muito ao ponto de se injetar com morfina, com heroína, e de tomar “milhares de medicamentos de todo o género”. A saúde de Tchékhov sempre foi ténue, muito frágil e limitava-o no exercício do que mais gostava de fazer: praticar medicina, escrever literatura.
“A medicina é a minha legítima mulher, a literatura é a minha amante. Quando fico farto de uma, durmo com a outra. Pode ser uma confusão mas, em compensação, é menos enfadonho e, além disso, a minha perfídia não priva de nada uma nem outra. Se não fosse a medicina, era pouco provável que dedicasse à literatura o meu lazer e o excesso de ideias. Não tenho disciplina.”
Tchékhov cuida do corpo e desenha a alma. “A nossa alma é um deserto”, chegou a afirmar, mas conseguiu descobrir muita vida, protuberâncias, arestas e incoerências na do ser humano. Pouco escritores captam o humanismo como o autor de “O Tio Vânia”. Amfiteátrov chamou-lhe “o mais profundo dos observadores objectivistas”. O mesmo se poderia dizer de Sukhikh devido a este trabalho de filigrana. O professor de História da Literatura Russa, na Universidade Estatal de São Petersburgo, dá ao leitor uma potente lanterna. Que seja o leitor a alumiar a pessoa de Tchékhov para melhor conhecer a sua obra.