A visão social-democrata de Francisco Sá Carneiro para Portugal
Este artigo faz parte de uma série de textos sobre figuras políticas relevantes da sociedade portuguesa. Álvaro Cunhal, Diogo Freitas do Amaral, Francisco Sá Carneiro, Mário Soares, Miguel Portas e Ramalho Eanes foram as figuras escolhidas.
Uma das figuras políticas malogradas de Portugal é a de Francisco Sá Carneiro. Um dos principais rostos da oposição ao Estado Novo já nas vésperas da sua queda, tornou-se um dos fundadores do Partido Popular Democrático/Partido Social Democrata (PPD/PSD) e, em 1980, foi nomeado Primeiro-Ministro. Nesse mesmo ano, morre no desastre aéreo de Camarate, no dia 4 de dezembro, aos 46 anos. Nascido a 19 de julho de 1934 na cidade do Porto, foi um dos principais bastiões da social-democracia como uma ideologia capaz de assegurar a transição de um regime autoritário e ditatorial para uma democracia plural e parlamentar.
Hoje em dia, o Partido Social Democrata é visto como um partido conotado com a centro-direita, naquilo que é o esquadro político das forças partidárias portuguesas. Alguns foram os rostos que ajudaram a que se transformasse, gradualmente, nesses moldes. Francisco Pinto Balsemão, Aníbal Cavaco Silva, Durão Barroso ou Pedro Passos Coelho são quatro exemplos de primeiros-ministros que defenderam premissas ligadas à centro-direita, nomeadamente os dois primeiros, mais responsáveis por essa reconfiguração. Na raiz, o Partido Social Democrata só se torna conhecido como tal em 1976, após algumas outras tentativas de partidarização com a designação de Social Democrata. É nesse mesmo ano que o seu núcleo juvenil se transforma na Juventude Social Democrata (JSD) e se organizam os Trabalhadores Social Democratas (TSD), com autonomia no seu funcionamento, normalmente no exterior, envolvido diretamente com os contextos de trabalho. Entre os grupos parlamentares e o grupo de autarcas que veio a compor a estrutura do partido, na base está uma resposta a uma sociedade desequilibrada.
Sá Carneiro afirma a necessidade do PSD se impor perante a detenção do poder por parte de poucos, daqueles que possuem o “grande capital” e dos membros da “tecno-estrutura”, isto é, uma classe burocrática que regula, de forma implícita, as estruturas económicas e sociais do país. Perante isto, a ameaça da existência de uma minoria que se procura destacar através de dogmas ideológicos levou a que o PSD se organizasse com o sentido de construir uma verdadeira democracia. É esta a voz de Francisco Sá Carneiro, que assume a rejeição do neoliberalismo, achando-o incapaz de resolver as vicissitudes da sociedade portuguesa, nomeadamente de resolver as questões do emprego, da inflação, do desemprego e da própria insegurança da população. No entanto, também assume que não basta assumir a redistribuição da riqueza existente e de uma política fiscal rigorosa. Defende uma reforma ainda mais profunda, capaz de reorganizar as relações de poder do país, silenciando a busca desenfreada do lucro em prol de algo mais capaz de dinamizar a sociedade como um todo, unido a economia aos direitos inalienáveis dos cidadãos e à sua própria de expressão cultural e educacional. Como tal, era a favor da Reforma Agrária, que possibilitasse a mais-valia dos trabalhadores, mas também da privatização de grande parte da indústria, que estava concentrada no Estado. Foi uma das concretizações do seu executivo, no curto espaço de tempo em que governou, conseguindo obter fundos para investir em questões sociais.
O nosso objetivo prioritário para a prossecução da justiça social é a defesa, se possível, do aumento do poder de compra. Objetivo que, de resto, está em vias de concretização pela contenção da inflação, pela melhoria dos salários reais resultante da baixa do imposto profissional e da baixa do imposto complementar, visto que o passado provou bem que não é com aumentos nominais de salários, corroídos imediatamente pela inflação, que se aumenta o poder de compra.
Discurso na Assembleia da República, em 1980.
É um projeto de uma democracia total, patente em todos os aspetos. A política é a referência, que, por conseguinte, se desdobra na economia, na organização social, reconhecedora da soberania popular e na fiscalização e responsabilização dos órgãos políticos. De igual modo, Sá Carneiro era apologista de que as liberdades individuais fossem integralmente garantidas, assim como um pleno pluralismo social, capaz de respeitar as minorias, em que o seu principal meio decisório seria o sufrágio universal, direto e secreto através de eleições livres. Esta ideologia foi pensada já em 1970, ainda em pleno Estado Novo, numa altura em que era advogado, após licenciar-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Os seus companheiros, à data, eram Francisco Pinto Balsemão, futuro secretário-geral do partido, e Joaquim Magalhães Mota, para além de nomes como Carlos Alberto Mota Pinto, António Barbosa de Melo, Rui Machete e Marcelo Rebelo de Sousa. Esta forte falange de licenciados em direitos fortalecia a intenção de formar um Estado de Direito, em que fosse este a regular e a reordenar os órgãos políticos e sociais, assim como os direitos e deveres de cada indivíduo.
Esta proposta partidária traz, de igual modo, um forte sentido liberal e católico, advindo daqueles que, embora ligados aos ideais da Igreja, eram opostos àquilo que o regime vinha impondo. No entanto, eram díspares as formas de pensar politicamente, especialmente sobre a questão colonial, em que muitas eram as interrogações sobre o que fazer sobre as colónias, nomeadamente na eventual independência das mesmas. Sá Carneiro, que foi aluno de Marcello Caetano, então à frente do governo, aceitou integrar as listas da União Nacional, ainda no âmago do regime ditatorial, procurando promover o reformismo com olhos europeístas e apoiado pelas classes médias. Assim, enquanto pensava o futuro PSD, estava dentro do regime, procurando pugnar por esse Estado de Direito, moderno e capaz de salvaguardar as liberdades públicas inalienáveis dos populares. Esse registo era considerado, na Assembleia Nacional, como algo clandestino e quase herético, deixando sob a vigilância de alguns dos mais conservadores da ala do regime.
Sá Carneiro encabeçou uma lista de deputados para promover um projeto-lei que declarasse a eleição do Presidente da República por sufrágio universal. Foi o ponto de rutura total com a via de Marcello Caetano, acabando este grupo por sair da Assembleia, e o portuense demitiu-se a 24 de janeiro de 1973 das suas funções como deputado. A Ala Liberal seria, assim, afastada de uma Assembleia que acabaria destituída com a Revolução de Abril, contribuindo a primeira para que as fragilidades começassem a ser visíveis e exploradas, assim como a colaboração regular no Expresso, jornal fundado por Pinto Balsemão. Ideias outras, como a Revisão Constitucional, em 1970, já alertavam para a incompatibilidade da censura e da liberdade de imprensa, da inexistência da liberdade de associação, da atuação dos tribunais, em muito pouco zelosos para com a dignidade jurídica dos presos políticos, para as penas sem termo, para a necessidade do direito ao trabalho e à emigração, a modernização da Assembleia e para a necessidade de proibir o veto presidencial.
Portugal necessita de um projecto mobilizador. É tempo de que este país encontre um rumo definido de recuperação e de desenvolvimento. Somos um país pobre em recursos materiais, mas mesmo os poucos que temos estamos a desperdiçá-los. Somos ricos em recursos humanos que se encontram abandonados. Só com uma política que em matéria de recursos nacionais privilegie a agricultura e as pessoas, que aproveite todas as potencialidades dos serviços e da indústria, conjugada com uma política de investigação científica e tecnológica, com uma política cultural, com uma política de educação, poderemos sair da situação dramática em que nos encontramos.
Discurso na Assembleia da República, em 1978.
A cidade do Porto não ficava quieta a ver o rumo dos acontecimento, tendo em conta que grande parte do grupo de amigos de Sá Carneiro era desta cidade. Os ideais republicanos e laicos eram, assim, as traves-mestras daquilo que se queria para o Estado, afastando-se de uma potencial democracia cristã em prol de uma solução mais próxima do SPD da Alemanha Ocidental, mais progressista e aproximada de uma visão europeia da realidade política (o Programa de Godesberg, datado de 1969, foi um bom referencial teórico para que o PSD se pudesse desenhar, alicerçado nesse Estado de Direito e nas liberdades individuais, capaz de salvaguardar as premissas do socialismo). Alguns dos ideólogos-referência de Sá Carneiro eram, também, alemães, como Eduard Bernstein – que, numa análise crítica aos escritos de Marx e de Engels, procurava encontrar uma outra forma do socialismo ser alcançado, de forma mais pacífica e reformista – e Karl Kautsy – muito visado por críticas de Lenine, mantinha-se mais vinculado a um marxismo ortodoxo, em que seriam as contradições existentes na sociedade que levariam a que a “revolução social” se fosse concretizando, acompanhando o desenvolvimento das forças produtivas. Seriam os mesmos ideais que o faziam criticar as imediatas consequências da Revolução no sistema político, defendendo a existência do Parlamento e de um Governo devidamente estratificado e não aquilo que se havia assumido como o Conselho da Revolução, em muito associado com o exército.
Quatro anos depois da Revolução, a democracia parlamentar vingaria e Sá Carneiro seria o vencedor das legislativas, tornando-se primeiro-ministro numa coligação com o CDS (Centro Democrático Social) e o PPM (Partido Popular Monárquico). Desenhava-se um governo da então conhecida como Aliança Democrática. Seria, no entanto, um governo efémero dada a tragédia mortal de Camarate, governo que seria sucedido pela liderança de Pinto Balsemão, amigo pessoal de Sá Carneiro e um dos ideólogos do PSD a seu lado. Porém, também este estaria durante pouco tempo, demitindo-se no ano seguinte, perante uma grave crise económica. Importa, porém, reforçar que Sá Carneiro era um defensor, mesmo como primeiro-ministro, de uma toada reformista, embora próxima, como as suas origens revelam, do liberalismo. O mundo do trabalho gerava-lhe algumas preocupações, nomeadamente a necessidade de, nele, existir uma cooperação sustentada e acompanhada pelo Estado, viabilizando a própria liberdade de sindicalização. Esse Estado era, de igual modo, responsável, através dos seus órgãos e da sua atuação, por que os Direitos Humanos fossem olhados como máximas a preservar, nomeadamente através dessa solução democrática que se ia impondo.
A política cultural deve radicar nos valores e nas realidades portuguesas. A política de educação deve ser não mera repetição, mas inovação, progresso e igualdade de oportunidades para todos. A política de investigação científica e tecnológica deve mobilizar os intelectuais portugueses em conjunto com o Povo, aproveitar todas as potencialidades humanas dos Portugueses, seja qual for o seu estrato social ou o seu setor de trabalho, permitir dar uma esperança nova aos Portugueses. Para isso é necessária a estabilidade política.
Discurso na Assembleia da República, em 1978.
Francisco Sá Carneiro foi uma espécie de meteoro na política portuguesa, embora permaneça, ainda hoje, como um dos grandes baluartes da democracia portuguesa, nomeadamente daquilo que é o Partido Social Democrata. Embora resultado de diferentes e profundas transformações, não deixa, este, de ser o projeto de Sá Carneiro na política portuguesa, mantendo-se, ainda hoje, como uma das duas principais forças políticas em Portugal. Contudo, a sua visão de social-democracia continua, assim, a ser uma visão já distante, pensada então, mas já não com a repercussão que alguém com a sua voz pudesse provocar. É difícil conjeturar o que seria o PSD e mesmo Portugal se Sá Carneiro não fosse vítima do desastre aéreo de Camarate. Certo é que se trata de uma ideologia que, entre as deambulações do socialismo atualmente e a derivação à direita do PSD, propunha um plano de atuação diferente, embora a ajustar à sociedade atual, a um Portugal ainda em confronto com as suas ambiguidades e desigualdades.