Quarentena e o templo da estupidez
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
“Estamos no ano de 2020 depois de Cristo, todos os portugueses estão confinados a casa por causa do COVID-19. Todos? Não! Um grupo de idiotas resiste, agora e sempre, a ter noção.”
Tenho a certeza que seria assim que começariam os livros do Astérix caso fossem escritos agora e em Portugal. Claro que, em vez de Astérix, o nosso herói seria o Zé Tó e, em vez de lutar contra a invasão romana, lutaria contra as indicações dadas pelo governo. Porque é isso que andaram a fazer muitos portugueses hoje, não foi?
Confesso que acho muita piada a estes burgessos. Ainda há uns dias andava tudo no “vamos todos ser como aqueles macaquinhos dos pratos e bater palmas à janela para os heróis que trabalham nos hospitais e nos supermercados, porque eles colocam-se em risco enquanto nós estamos protegidos em casa! Oiçam as recomendações! O COVID-19 não é uma brincadeira! Estamos juntos! Hashtag fica em casa!” e cenas, mas bastou o São Pedro acordar bem disposto e decidir mandar um bocado sol para uma carrada de gebos passar a ter Alzheimer, esquecer-se das correntes pirosas que andou a partilhar no messenger e ir passear para praia em grupo e de mãos dadas, como aconteceu ali na Póvoa de Varzim. Isto já nem é idiotice, é crime. Por bem menos tive amigos lixados pela bófia. E quando digo “bem menos” estou mesmo a ser literal, que os meus amigos só tinham com eles uns graminhas que nos deixavam burros e estes têm quilos e quilos de estupidez.
Mas o pior é que mesmo assim ainda há quem ache que isto é na boa. Aliás, eu mesmo recebi mensagens privadas de malta a dizer “e qual é o mal? É fim de semana e eu trabalho durante a semana. Se não for ao fim de semana vou passear à praia quando?”. Quando pudermos ir todos sem ser em cosplay de ninja, ó néscio! Não percebes que se fossemos todos como tu acabávamos a matar mais velhos do que a primeira vaga do Viagra? Eu também não fui hoje à praia, nem fui hoje passear. Fiquei no sofá a ver os canais de notícias e a contar o número de livros que os comentadores têm nas estantes de casa.
Aliás, vamos falar disto? Porque raio é que tudo o que é comentador que faça directos de casa para a TV tem de o fazer à frente de uma estante de livros? E porque é que parece que estão todos a competir para ver quem tem a biblioteca maior? É que há alguns que até as listas telefónicas da década de 90 foram buscar para aquilo ficar mais composto. Será que esta malta é paga consoante o número de livros que mostra na webcam? E porque é que nunca se vê a lombada de um “Kamasutra” ou de um “120 Dias de Sodoma” nas estantes? E meus queridos comentadores, eu vou contar-vos um segredo: ninguém que lê muito tem os livros assim tão arrumados. Há sempre uns que estão inclinados porque tiramos o que estava ao lado, uns que estão soltos por cima de outros, uns já sem lombada… Aquilo que vocês mostram acaba por parecer mais um armário de action figures de um geek, onde ninguém mexe porque (ler com voz de choninhas) “perde valor comercial”. E outra coisa, não é quantidade de livros nas estantes que vos da credibilidade. Aliás, numa altura como esta, em que passamos o dia em casa, eu não vou confiar num gajo que está com uma estante impecável, de blazer e cabelo arranjado. Quem és tu, um psicopata?! Dêem-me um bacano de robe, com remelas no olho e uma garrafa de vinho a meio a ver-se na webcam e a esse sim, eu confio a vida, porque esse sim está a ser verdadeiro.
Bom… e por hoje é isto porque acordei meio irritadiço e já não tenho THC. Vou fazer um gin a ver se acalmo. Fiquem com as sugestões do dia e não sejam idiotas, nem sequer é tempo de ir à praia.
Comédia:
Steve Hughes – While It’s Still Legal
Música:
Midpoint Union – Midpoint Union EP
Cinema:
Luc Besson – Le Grand Bleau
Literatura:
Mário-Henrique Leiria – Contos do Gin-Tonic