Quarentena. 25 de Abril… sempre?
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística
Hoje, descobri um novo hobby: ver a malta do CDS a usar o COVID-19 para camuflar o desprezo que tem pelo 25 de Abril. Até comprei binóculos e tudo, que isto de ver patos-bravos exige material apropriado. Pois é, o parlamento decidiu que, mesmo apesar do estado de emergência, vai celebrar o dia da Revolução dos Cravos com uma sessão solene, como faz todos os anos, e a malta do CDS e do CHEGA não gostou. Como não gostou também no ano passado. E no anterior. E mesmo em 74. Pelo menos esta malta do CDS actual, que cada vez mais parece um CHEGA Light, “o mesmo sabor, mas com metade das calorias” ou algo assim.
E eu sei que dizer isto soa a acusação esquerdalha, uma vez que a razão que eles alegam é a “preocupação com a saúde pública”, e eu até podia acreditar e aí, mesmo não concordando com a opinião, não ia dizer nada, só que o problema é que eu não acredito. E não acredito porque, nos últimos 4/5 anos, já nem consigo contabilizar as vezes que dei por mim a ler nas redes sociais de militantes, políticos e simples adeptos do CDS desculpas para se acabar com as comemorações do 25 de Abril. Desde o “25 de Abril? Devia-se era comemorar o 25 de Novembro!” ao “já foi há tanto tempo… a geração mais nova já nem sabe o que foi, para quê manter as comemorações?”, passando pelo “o 25 de Abril transformou-se numa data de afrontas e desunião”, já li de tudo e algumas no perfil do Nuno Melo. Por isso, ver este ano este discurso de aparente preocupação com a saúde pública parece-me mais falso do que as mamas duma stripper, até porque um dos deputados do CDS fez questão de deixar bem claro que o que mais o chateava nisto tudo era terem proibido a Páscoa antes. E aí eu percebo, um ramo de cravos é bonito, sim senhor, mas não chega aos calcanhares de um belo cabrito no forno.
Mas vamos acreditar que, de facto, estes partidos estão mesmo preocupados com a saúde pública. Ora, a sessão solene vai ter, segundo a imprensa, 130 pessoas o que parece muito, certo? Acontece que o parlamento tem 230 lugares, ou seja, já são menos pessoas do que a lotação, para além disso a AR tem funcionado todos os dias (com um quinto dos deputados), sendo que em dias de votação (e nos últimos tempos têm sido alguns) o número de deputados presentes tem de ser, salvo erro, 116. Ora, se olharmos para estes números, percebemos que vão estar na sala apenas mais 14 pessoas das que agora estão em dia de votação, sendo que já foi garantido pelo governo todas as normas de segurança se vão cumprir, incluindo o distanciamento. Sendo assim, qual é o risco assim tão acrescido em relação ao dia em que, por exemplo, foi votada exactamente esta questão?
Mas nem só de saúde pública se faz um argumento para cancelar as comemorações do 25 de Abril, há também aquela parte de apelo ao coração do português sofredor que Portas deixou de herança ao CDS e que o CHEGA tão bem copia. A que escolheram este ano foi “é inadmissível que haja funerais com 10 pessoas e se mantenham as comemorações do 25 de Abril. Tenham vergonha pela dor dos portugueses!”. Bom… Primeiro, se o Ventura tiver 10 pessoas no seu funeral, já acho 6 a mais. Segundo, há uma pequena diferença entre meteres 40 pessoas num velório (algumas delas idosas), numa casa paroquial de 20 metros quadrados em que toda a gente se abraça, assoa e chora no ombro do amigo e meteres 130 pessoas numa sessão solene dentro de um espaço que dá para fazer 2 parques de estacionamento com 3 pisos e em que metade delas se odeiam, por isso nem sequer um aperto de mão dão. Comparar as duas situações no que diz respeito ao perigo de contágio faz tanto sentido como comparar comer morcego cru com fazer uma sandes de brie, maçã, dijon e rúcula. “Ah, estás a dizer isso porque não perdeste ninguém, não entendes a dor”, diz aquele ali com uma voz de choninhas. E diz mal, porque eu mesmo vou faltar amanhã a um funeral, no entanto não olho para ele como uma situação sequer semelhante e percebo bem a necessidade de assim o ser.
Agora, apesar de ser a favor de se manter a sessão solene no dia 25, tenho de dizer que achei a ideia do deputado da Iniciativa Liberal, de as comemorações serem feitas com apenas um representante de cada partido no parlamento, bastante boa. Não por causa da saúde pública, não porque quero que se deixe de comemorar a Revolução em troca com o 25 de Novembro (que não deve ser esquecido nem apagado, atenção) ou por qualquer outra razão camuflada, mas sim pelo simbolismo que tem. E porque numa data que tão simbólica é e que tantos símbolos tem, mais um (e este) não lhe ficava mal.
Aqui ficam as dicas do dia:
Comédia:
Thiago Ventura – Só Agradece
Música:
Blasted Mechanism – New Militia (Live at NOS Alive’18)
Cinema:
Neil Jordan – The Crying Game
Literatura:
Anónimo – O Meu Pipi, diário