Quarentena. Agarrado pelos testículos

por Rui Cruz,    19 Abril, 2020
Quarentena. Agarrado pelos testículos

Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Hoje está a ser um dia complicado para mim. Para além de ter perdido um familiar e um cão, (mortes não relacionadas entre sim, atenção! Não estou a dizer o cão que matou a pessoa e depois se suicidou ou que iam ambos no mesmo carro e um deles adormeceu ao volante porque exagerou na bebida. Foi só uma coincidência terem morrido no mesmo dia.), descobri que o COVID-19 se aloja nos testículos e que, por isso, agrava a infecção nos homens. Inacreditável, não é? Como é que é possível, em pleno século XXI, ainda termos um vírus assim, sexista e apologista do patriarcado? Isto é uma vergonha! As mulheres não são menos do que os homens, Corona! Exigimos igualdade de oportunidades e quotas para vaginas infectadas! #MexeuComUmaInfectouTodas #DeathIsFemale #ConaVid. Ainda por cima, para além de sexista, o vírus é claramente um machista que ajuda a propagar a rape culture, uma vez que se mete nos genitais sem consentimento. Aqui não, COVID! Não é por andar em casa só com um hoodie e boxers que “estou a pedi-las”. #MeToomatos. Vá, estou no gozo… Ainda por cima eu percebo o vírus. É normal que ele se aloje nos testículos. Com a quantidade de pívias que já se bateram desde que nos obrigaram a ficar em casa, o que não falta ali é espaço.

Mais difícil de perceber são as manifestações que aconteceram (e acontecem) no Brasil e nos EUA por causa da pandemia. Milhares de pessoas nos dois países saíram para a rua e foram manifestar-se para a frente de edifícios do Governo e hospitais. Sim, sim, leram bem, hospitais. No Brasil, essa nação que nos dias de hoje podia ser um quadro em que o Magritte escreveria “ceci n’est pas un pays”, os apoiantes do Bolsonaro cortaram o acesso ao maior centro hospitalar da América do Sul e, não contentes com isso, ainda fizeram um buzinão para ajudar a malta que se encontra lá a recuperar. O mais bonito é que, em ambos os países, os manifestantes dizem exactamente o mesmo: o vírus não existe ou se existe não mata ou se matar só mata os mais fracos e velhos; isto é tudo uma conspiração da esquerda e “isolamento social é comunismo”; o presidente fez sempre tudo bem e com ele no poder nada nos pode tocar; o meu pastor (sim, nos dois países…) já me protegeu contra o vírus, não preciso de ficar em casa. E ambos os presidentes apoiam estes protestos! O Bolsonaro, então, é mesmo à cara podre já que foi para o meio de um que pedia, inclusivamente, o regresso da ditadura militar. E é isto que me choca, a facilidade com que 2 tolos mal intencionados conseguem manipular milhões de malucos e de ignorantes com um discurso populista e a criação de um inimigo fantasma, neste caso a esquerda, ao ponto desses malucos e ignorantes perderem completamente a noção de perigo, de solidariedade e até de instinto de sobrevivência. Imagino que tenha sido assim que começou na Alemanha. E o pior é que, com isto, dou por mim a torcer para que o vírus tenha encontrado muito testículo vazio no meio destes protestos e tenha aproveitado para passar umas férias naqueles T2 disponíveis. Pode ser que assim aprendam.

Falando em aprender, hoje arrancou a telescola e, como seria de esperar, houve mais adultos a assistirem às aulas do que crianças. No twitter foi um fartote de gozação, o que não deixa de ser engraçado porque muitos dos que passaram o dia a gozar com os professores são os mesmos que depois me mandam mensagens a dizer “então, não gozas-te com a télé escola? Afinal à vacas çagradas”. Eu não vi nenhuma das aulas, mas vi um excerto que meteram no twitter em que uma professora diz aos alunos que no dia de educação física não devem ficar de pijama, mas sim vestir umas leggings, se forem meninas, ou fato de treino, se forem meninos, para se exercitarem. Óbvio que foi criticada e eu concordo. Não por ela estar a acentuar os estereótipos de género, como o resto da malta que tem demasiado tempo livre, mas porque obrigar alguém que passa o dia fechado em casa a tirar o pijama é imoral.

Como podem ver, não foi um dia fácil. A única coisa que me alegrou mesmo foram os posts do Nuno Melo, que hoje esteve particularmente activo nas redes sociais. E entre likes em posts que diziam coisas como “quem tem O VÍCIO do 25 de Abril que vá cantar a Grândola para a janela” ou “os comunas vão dizer que a Alemanha ainda é nazi”, tenho de destacar a foto que fez questão de tweetar para se defender das comparações com André Ventura. E que foto é? É uma foto do Ventura com um cravo ao peito abraçado ao Bernardino Soares, acrescentando ainda as palavras “A propósito do distanciamento social… ou para além dele. #CravoAoPeito”. Sim, o que o Nuno Melo escolheu para dizer que não é semelhante Ventura não é o facto deste ter um discurso racista ou xenófobo, não é o facto deste não ter espinha dorsal e contradizer-se sempre que lhe dá jeito, não é facto deste estar num partido que alberga neo nazis, mas sim este conhecer comunistas e ter usado um cravo num 25 de Abril passado. A ofensa… Mas eu percebo-te, Nuno, eu sei que esta foto te magoou. Aconteceu-me o mesmo com o Morrissey e é por isso que te dou o conselho que também me deram: “nunca conheças os teus ídolos”.

Aqui ficam as sugestões para o dia:

Comédia:

Ronny Chieng – Asian Comedian Destroys America

Música:

Molchat Doma – Этажи

Cinema:

Stanley Kubrick – Dr. Strangelove

Literatura:

Franz Kafka – A Metamorfose

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