O início de uma tetralogia napolitana: ‘A Amiga Genial’, de Elena Ferrante
Elena Ferrante tem cultivado um interesse notório no panorama literário mundial. Mona E. Simpson e Zadie Smith já declararam o seu fascínio pela obra italiana. Apesar de ser reconhecida internacionalmente, o que chega até ao leitor é um pseudónimo que encobre a verdadeira identidade de que quem tem escrito desde 1992, ano que marca a publicação da primeira obra, Um Estranho Amor. Numa tentativa de quebrar o silêncio e encurtar a nossa – por vezes, tão recusada – ignorância, várias vozes têm ecoado, atribuindo a identidade de Elena Ferrante a várias individualidades. Se Claudio Gatti, em outubro de 2016, apontou a editora Anita Raja como sendo Ferrante, baseando-se nos rendimentos da romana; Domenico Starnone tem sido constantemente associado aos textos napolitanos.
Uma obra excecional que se vincula a um mistério identitário. Apesar de alguns críticos alegarem que o silêncio é uma mera manobra comercial, Ferrante declarou que a sua meta última é escrever e comunicar e fá-lo através da sua palavra, da sua obra. Afirmou incisivamente:
“If the book is worth something, it should be enough. I will not participate in debates and conferences, if I am invited. I will not go to accept prizes, if I am given any. I will never promote the book, above all on television, in Italy or, should the need arise, abroad. I will only participate through writing, but I will also try to keep this to the bare minimum.”
Relacionamos inevitavelmente esta questão autoral com os estudos de Roland Barthes e Michel Foucault, realizados na década de 60, sobre a figura de autor. Esmiuçando e perscrutando este conceito, Barthes questionou a estética romântica, que defende uma hermenêutica subjetivista e um biografismo literário. No texto A Morte do Autor, publicado em 1967, o autor francês criticou a crucialidade atribuída à figura de autor em detrimento da obra literária. Neste sentido, o caso de Elena Ferrante exemplifica de modo perfeito – obrigatório e inevitável visto que a identidade autoral nos é ocultada – a filosofia de Barthes. Abandonamos a biografia do autor para nos focarmos somente no texto, na obra literária. Aceitemos ou não, com mais ou menos abnegação, esta esfinge literária é já um marco na literatura contemporânea, que conta com a sua própria hashtag: #FerranteFever.
Temos vindo a assinalar a obra de Elena Ferrante e, dentro da bibliografia, destaca-se a tetralogia napolitana: A Amiga Genial (2011), História do Novo Nome (2012), História de Quem Vai e de Quem Fica (2013) e História da Menina Perdida (2014), publicados em Portugal pela Relógio d’Água Editores. A Amiga Genial principia, por conseguinte, esta série de obras, que se focarão na amizade travada entre Elena Greco, a quem chamam Lénu ou Lenuccia, e Raffaella Cerullo, amplamente conhecida como Lina e enquanto Lila, ao olhar íntimo e exclusivo de Lénu.
Antes de nos transportar para os subúrbios de Nápoles, em 1944, Ferrante principia a obra com um prólogo. Rino telefona a Lénu de modo súbito e inesperado, informando-a que a sua mãe, Raffaella Cerullo, desaparecera. Não há pasmo ou espanto, porque afinal Lila sempre quis “volatizar-se, queria que todas as suas células desaparecessem; que dela não fosse possível encontrar nada. E como a conheço bem, ou pelo menos creio que conheço, tenho como certo que encontrou a maneira de não deixar em parte nenhuma deste mundo nem um cabelo”. O mote da narrativa está instaurado.
O quadro narrativo transfere-se, de seguida, para terras napolitanas, nos anos 40, introduzindo-nos nos tempos de meninice das personagens. Lénu afirma decisivamente: ”Não tenho saudades da nossa infância, foi cheia de violência”. Ao longo da obra, o viés violento e horripilante assombra a relação e dinâmica das famílias e personagens, ressalta nos conluios da máfia italiana, crava-se nas emoções e revela-se também nas palavras. Não há, por conseguinte, qualquer espaço para a suavidade ou harmonia. Todos se gladiam por aquilo que ambicionam: respeito, dinheiro, atenção ou amor.
É neste contexto de combate pela sobrevivência do ego que Lénu e Lila se inserem. Se, nos primórdios, a primeira se tornou uma “bonita menina de caracóis louros”, procurando cativar e comprazer os outros e obtendo numerosas propostas de namoro; Lila era “um palito, porca e sempre com feridas, (…) falava só num dialecto desprezível, cheio de palavrões, que matava à nascença qualquer sentimento amoroso”. Ainda que distintas, Lénu desenvolve uma afeição e admiração intermináveis por Lila. Não só era a mais inteligente, como a mais forte entre as meninas e os meninos. Ignorava proibições, disparava insultos e impunha o seu lugar. Sobretudo, ambas amavam os livros e aspiravam a uma carreira de escritoras, buscando escapar à ignorância e ao marasmo que imperavam no pós-guerra italiano.
No decorrer da infância e da adolescência das duas personagens, os seus papéis invertem-se constantemente. Enquanto Lila se transforma numa mulher bastante atraente, suscitando o interesse da galeria masculina; Lénu debate-se com um corpo curvilíneo e com as borbulhas próprias da puberdade. Ainda que nutra um fascínio profundo pela amiga, Lénu embarca num conflito interior, que resulta de uma ânsia iminente em libertar-se de Lila, em superar a sua companheira: “Em alguma parte secreta do meu ser eu aspirava a uma escola a que ela nunca tivesse acesso, em que eu, na sua ausência, seria a melhor aluna, e da qual lhe falaria quando isso se concretizasse, gabando-me”. Porém, Lénu parece ser a grande derrotada neste duelo de titãs, pois perder Lila afigura-se um pesadelo, uma ausência de vida, uma impossibilidade. A chamada da Cerullo é preciosa e irrecusável. Afinal:
“Por ela faria qualquer coisa, naquela manhã de reaproximação: fugir de casa, abandonar o bairro, dormir em estábulos, alimentar-me de raízes, descer aos esgotos através das sarjetas, nunca mais voltar para casa, mesmo se fizesse frio, mesmo se chovesse.”
Assim, enquanto amadurecem e se descobrem, assistimos a momentos de aproximação, distanciamento e reaproximação entre as personagens. Eventualmente, Lila suprime o seu jeito brutal e assanhadiço, abandona a escola, o desenho, a escrita e as constantes projeções, aceitando o pedido de casamento de Stefano Carracci. Lénu, por sua vez, destaca-se na esfera escolar e nas redações, mas encara a sua vida amorosa como um plano falhado.
Inseridas num código profundamente machista, as meninas do bairro guerreiam-se pela atenção masculina, buscando um noivo, que lhes conceda estabilidade económica, escapando assim à pobreza da vida familiar. Recorrem aos excessos, carregando na maquilhagem e acentuando os decotes. Contudo, ainda que ostentem os atributos físicos, as ideias, anseios e ambições das personagens femininas são silenciadas.
“Separei as minhas palavras da minha pessoa, sem esforço. Tornei-me muito respeitadora, prestável, diligente e colaborante com todos os professores que se haviam mostrado hostis para mim, e depressa voltaram a considerar-me uma pessoa a quem se podiam perdoar estas afirmações extravagantes. Descobri que podia fazer como a professora Galiani, isto é, expor com firmeza as minhas opiniões, e ao mesmo tempo fazer mediação, conquistando a estima de todos com comportamentos irrepreensíveis. Numa questão de poucos dias pareceu-me ter regressado (…) ao topo da lista dos alunos mais promissores do nosso esfarrapado liceu.”
Num romance em que impera a violência, sentimos como claustrofóbica a condição e a necessidade de libertação das personagens. Meghan O’Rourke chegou a assinalar que “to read a Ferrante novel is to feel as if Kafka had written a novel in which Gregor Samsa didn’t turn into a bug, but became constantly aware of his own inner bug-like status (…).” A escrita incisiva e violenta de Ferrante cativa o leitor da primeira à última página deste primeiro volume da tetralogia napolitana e, de modo ansioso e expectante, partimos para a História do Novo Nome.