“Noites Brancas”, de Dostoiévski: a eternidade num minuto de felicidade
Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski, foi relançado este ano pela Relógio D’água, numa oportunidade para uma nova incursão pelo livro que mais marcou o romantismo delicodoce do autor russo.
Noites Brancas, lançado pela primeira vez em 1848, é uma obra totalmente voltada para o romantismo e para os seus devaneios, com tanto de ilusão como de brevidade. Sucinta, não apresenta como objectivo a sagacidade da crítica à sociedade russa e europeia, como se vê, por exemplo, em O Idiota. No entanto, a densidade psicológica que Dostoiévski apresenta em todos os seus livros é, de tal forma, impactante, que a psiquiatra e precursora da terapia ocupacional no Brasil, Nise da Silveira, lhe era totalmente devota, assim como a Machado de Assis (a sua grande paixão literária) e Antonin Artaud — chegando ao ponto de referir que ler este trio superava os compêndios de psicologia para entender a fundo a alma humana. Noites Brancas, não obstante, é breve e lê-se de forma descomplexada, o que faz sentido, porque toda a obra é sobre como um momento breve de amor, ou melhor, como um momento breve de ilusão de amor, pode deixar marcas para a eternidade. E, como tal, o tema, embora breve, acaba por lucrar no quanto tem de complexo.
No fundo, o que Dostoiévski nos apresenta é uma brincadeira com a duração, em si, dos eventos, e a exploração ao máximo de como duas pessoas que, no fundo, se encontram há muito num plano total de solidão, se agarraram à brevidade e à sua promessa de arrebatamento como um escape ao peso do seu dia-a-dia que parece durar e durar. Como tudo isso, como essa simples e breve promessa, pode deixar uma marca para toda a vida ou, pelo menos, uma marca que não passará assim tão facilmente — mesmo sendo uma promessa de quimera, ou uma promessa que se vive com a mesma dissonância ou falta de realidade de um sonho.
“Mas recordar a minha ofensa, Nástenka! Erguer uma nuvem escura sobre a tua felicidade clara e serena, que eu, como uma amarga censura, lançasse a tristeza no teu coração, que o ferisse com um secreto remorso e o obrigasse a pulsar com melancolia num momento de beatitude e fizesse emurchecer nem que fosse uma das tuas flores que entrelaçaste nas tuas melenas negras quando subias ao altar … Oh, nunca, nunca! Que o teu céu permaneça límpido, que o teu amável sorriso seja luminoso e sereno, e que sejas abençoada pelo momento de deleite e de felicidade que deste a outro coração, solitário e agradecido! Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Mas será isso pouco para toda uma vida?”
No início do Verão, em São Petersburgo, dá-se o fenómeno das Noites Brancas, o prolongamento dos dias sem o sol se pôr na totalidade — ou seja, não escurece verdadeiramente. Logo aqui vemos como o ambiente é de surrealismo, improbabilidade e de completa quimera. Estabelece-se, também, um paralelismo com a tal noção de brevidade e eternidade das acções dos protagonistas, com a própria duração dos dias e o seu microcosmos irreal, restrito a uma só parte do ano. A obra, que, no total, nem chega às 80 páginas — pelo menos na edição da Relógio D’água —, restringe-se, quase na sua totalidade (à excepção do final), à interacção directa entre apenas duas personagens, havendo, apenas indirectamente, a influência ou interacção de três personagens secundárias mas de grande importância. Essa interacção directa dá-se entre a jovem Nástenka, de apenas 17 anos, e um irrecuperável sonhador do qual não sabemos o nome, apenas a solidão em que permanece.
O seu anonimato no livro quase que estabelece um paralelismo com o anonimato da sua própria vida. Completamente sozinho, numa altura em que vê os habitantes de São Petersburgo partirem para as ‘datchas’ (as casas de campo para férias) enquanto o próprio fica, o sonhador deambula pelos quatro cantos da cidade que parece conhecer intimamente, estabelecendo uma espécie de irmandade e comunhão com as próprias casas, por fazerem parte da infraestrutura e da cara da própria cidade, mas não com as pessoas que nelas habitam. A escassa interação que vai tendo é com a sua empregada, sobre a qual diz recorrentemente não ter nenhum laivo imaginativo (no livro só estabelecem um diálogo directo no final), e é perante este quadro de sonho e de solidão que conhece, então, Nástenka — uma jovem de 17 anos que tem tanto de ingenuidade, como de impulsividade e anseio — na sua própria demanda pelo seu amor.
Podemos dizer que, em Noites Brancas, tudo acontece demasiado rápido e de forma fulgurante, tal como romanticamente é suposto acontecer. Poder-se-ia pensar, até, que essa rapidez chega mesmo a ser inconsequente. O sonhador cruza-se com Nástenka (a primeira mulher além da empregada com quem, de facto, comunica) e fica-lhe grato por não o ter afastado e pela sua atenção. O contacto entre os dois estabelece-se, apenas, em quatro noites (quatro noites brancas), mas é o suficiente para o sonhador se apaixonar pela jovem, por trocarem as suas histórias da forma mais aberta possível, e por aceder (independentemente da paixão instalada) a ajudar Nástenka no seu dilema amoroso. Por sua vez, a jovem vive com a sua avó, de quem gosta, mas com o senão de ser extremamente conservadora ao ponto de ter a sua neta presa por um alfinete a si, através das saias.
Num ápice, e no auge da impulsividade da sua juventude, apaixona-se por um outro jovem (embora mais velho) e, sem grande contacto ou ainda sem lhe ter confessado o seu amor, apresenta-se no seu quarto de malas feitas para partir com ele, quando descobre que o seu apaixonado tem de se ausentar. É então que a promessa lhe é feita — o jovem homem voltaria dentro de um ano, apresentar-se-ia no local combinado para o encontro, e, se Nástenka ainda o quisesse na altura, então casar-se-ia com ela. A jovem, acalentada pela promessa, paixão, e esperança de uma outra vida com mais independência sem o alfinete da avó, agarrou-se a essa breve mas marcante promessa e assim fez — esperou o ano que expiraria, exactamente, na altura em que conhece o sonhador protagonista.
A afinidade repentina entre o sonhador e Nástenka dá-se apenas pelo vislumbre que ambos têm da sua solidão e da sua desgraça partilhada. Tal como Almada Negreiros chegou a dizer como uma forma de explicar o porquê da reunião da geração do Orpheu, “quem partilha a mesma desgraça, junta-se”, e, em parte, é o que se pode aplicar à relação tão rápida mas tão marcante entre os dois. A grande diferença é que Nástenka, nas suas próprias palavras simples, fútil e inconsequente como a própria juventude deve ser (como diria Rimbaud, ninguém é sério aos 17 anos), representa o acalento e a esperança de um sonho ainda no seu início – agarra-se a essa possibilidade com todas as suas forças para conseguir ter uma promessa de vida, ainda que envolta em quimera. É o que, de facto, faz apaixonar o protagonista, porque tal atitude representa o laivo imaginativo tão necessário que este procurava. Já o sonhador, mais velho, embora goste de ver essa esperança reflectida, tem de aprender a juntar os destroços da realidade e deixar essa esperança partir sem rancor e compreender o que pode subsistir do sonho, apesar da traição da realidade.
Dostoiévski serve-se da narração na primeira pessoa (é o sonhador que conta a história) e é neste particular que faz um jogo interessante entre essa mesma narração e a construção dos diálogos. Lemos o protagonista contar a história na primeira pessoa, mas, quando chega a altura de a contar à jovem Nástenka, não consegue fazê-lo. Tem de contar a sua história na terceira pessoa. Fazendo um paralelismo com o próprio anonimato do seu nome e da sua própria vida, torna-se visível a própria despersonalização que não consegue superar.
No fundo, as perguntas que Fiódor Dostoiévski nos lança são as seguintes: pode a vida ser feita e marcada por um breve e fulgurante momento? O que faz um breve momento ecoar na eternidade das nossas próprias vidas? O que que se revela eterno e o que é que se revela duradouro?