Hayao Miyazaki e a representação da Mulher no estúdio Ghibli
Comecemos por pensar: qual é a nossa perceção sobre o outro? Aquele que é carne, osso, suor, pensante, sensível, nosso semelhante, mas diferente na sua biologia e psicologia. Os nossos sentidos levam-nos, muitas vezes, a percecionar o nosso oposto com uma curiosidade quase animalesca. Tocámos nele e, note-se, está vivo! Mexe-se! Fala! Questiona-se! Meu Deus, OPINA! Possui, na sua veia humana, o poder do raciocínio e da emoção! Não é maravilhoso quando nos permitimos conhecer aquilo que nos é estranho? Como moldamos o nosso comportamento para compreender aquele ser que se encontra à nossa frente? Sair da nossa caverna socrática, rumo à descoberta do nosso oposto, é dos desafios mais difíceis, porém, alimentícios que podemos oferecer à nossa perceção. Afinal podemos coexistir. Afinal podemos tentar perceber o mecanismo daquele outro que nos aterra. Falemos, então, de um homem que se permitiu conhecer a mulher.
Quando questionado por uma fã, em 2009, no Comic Con, sobre o porquê de criar várias protagonistas femininas para os seus filmes, Hayao Miyazaki sorriu e apenas respondeu: “Porque as mulheres são fortes e belas!” (tradução livre). Atrevo-me a dar aso à interpretação sobre a “simplicidade” desta resposta, mediante o conhecimento que tenho sobre o mestre Miyazaki. A beleza da mulher que o co-fundador do estúdio Ghibli refere não é somente a física, mas toda a sua essência enquanto ser complexo.
Hayao construiu vários mundos ficcionais, em que a complexidade do sexo feminino é permitida e os paradigmas de género são desafiados. Como modelos, tem as suas colegas de trabalho, a sua mulher, as filhas dos seus colegas e amigos, e a sua mãe — aliás, alguns estudiosos, que se dedicam ao génio de Miyazaki, acreditam que Dola Miyazaki influenciou bastante a perceção que o mestre possui sobre as mulheres.
Falo como mulher que já foi criança e uma criança que, apesar de ter visto várias longas-metragens de princesas, só sentia orgulho por uma protagonista: falo da Mulan (1998), a “princesa” que quebrou totalmente com o cliché feminino que sustentava a Disney há vários anos. A presença apática de uma mulher da realeza que apenas servia para cantar com animais na floresta, ser perfeita e submissa, e esperar pelo seu príncipe encantado não me provocava — nem me provoca — qualquer tipo de reação positiva. Nada contra quem encontra apaziguamento nesses seres imaculados, mas eles eram (e são), para mim, banais e desinteressantes. Daí o meu entusiasmo quando vi Mulan a cortar o seu cabelo longo e a fugir no seu cavalo para o campo de treino militar, fingindo ser um homem. A sua coragem, determinação e amor pelo seu pai doente fizeram-na imparável. Afinal, também podemos ser corajosas e dominar o nosso medo. Também podemos ser criativas e cómicas! Afinal, podemos ser heroínas! Mulan tornou-se o modelo da mulher que eu desejava ver, mais vezes, no ecrã. Curiosamente, antes de Mulan começar a rodar na minha cassete VHS, passavam trailers de outros filmes: um deles, Kiki’s Delivery Service (1989) do estúdio Ghibli. As cores fortes das paisagens de uma época mais moderna, a imagem de uma adolescente com um laço vermelho gigante na cabeça e do seu gato preto (Jiji) a sobrevoarem cidades e montanhas em cima de uma vassoura, provocaram-me um sentimento que só descodifiquei quando tive a oportunidade de ver o filme na totalidade. Se Mulan me mostrou a força física e psicológica que uma mulher pode ter, Kiki incentivou-me ao culto da liberdade de ser e marcou o início da minha fascinação pelos filmes de Miyazaki.
A minha intimidade com o estúdio Ghibli, porém, só se completou alguns anos mais tarde, entre a adolescência tardia e a fase adulta. Aí, descobri outras longas-metragens que poderiam ter marcado a minha infância. Não obstante, a maturidade e a perspicácia de um público adulto, que se deseja modelo, acaba por completar o objetivo da “narrativa” cinematográfica deste mestre japonês.
Hayao Miyazaki é sem dúvida um génio cinematográfico; um avô, com 81 anos de vida, que se recusa a parar de nos oferecer histórias fantásticas, deixando-nos sempre prostrados a contemplá-las. Os seus filmes mostram uma beleza em crescimento do início ao fim, uma utopia do mundo quase alcançável. E o que se torna delicioso e até poético é a capacidade de desenhar a (quase certa) banalidade do dia-a-dia, revelando-a interessante e transformando-a em Arte. Isso mesmo! A excentricidade das cores, a beleza das paisagens, a simplicidade do quotidiano, o culto do Ma e as representações da mulher conseguem ser reais e palpáveis, sem nunca perderem o misticismo, próprio da fantasia.
As heroínas do estúdio Ghibli, apesar de viverem em mundos alternativos e fantasiosos, podem ser identificadas por nós, mulheres reais. Todas (até as que, fisicamente, não são humanas) viajam constantemente pelo seu interior, procurando o seu lugar num mundo, para elas, confuso e por vezes injusto. São, como chamamos em Literatura, personagens redondas: dinâmicas e tridimensionais. A catarse que sofrem, serve para evolução dos espíritos e para a construção da sua força psíquica. Os pares masculinos poderão surgir na narrativa para as ajudar a encontrar o apaziguamento identitário, raramente para as salvar. Durante a procura da sua verdadeira identidade, as protagonistas apresentam fragilidades e inseguranças, próprias da mulher real, superando-as através do amadurecimento do caráter. São mulheres diversificadas: umas mais tímidas, outras mais extrovertidas; muitas possuem um sentido de humor refinado; algumas são mais violentas do que outras; também existem mulheres mais femininas e outras andrógenas. Para além disso, a sua presença não é forçada ou reciclada para agradar a uma teorização do politicamente correto (algo que começa a ser entediante e ridículo em Hollywood). O que o estúdio Ghibli faz, desde 1984, sob o olhar atento de Miyazaki, é indicar aquilo que muitas mulheres já sabem e querem ver representado: ser Mulher não é caber numa caixinha florida de superficialidade para agradar a um ideal; é ter consciência da sua vontade, do seu valor, das suas qualidades e defeitos, da sua força, dos seus limites e do verdadeiro eu.
Assim podemo-nos identificar com personagens como, a já referida, Kiki: uma bruxa de treze anos que não mata monstros nem salva ou conquista o mundo. Simplesmente, torna-se independente, conseguindo um apartamento aconchegante através do seu esforço, ambição e de ideias geniais, como dar uso à sua vassoura para fazer entregas ao domicílio. Esta determinação é incentivada pelos seus pais e por outras mulheres que conhece durante a sua jornada: desde a padeira Osono até à pintora, free spirit, Ursula. Pelo meio, conhece um rapaz, Tombo, que a admira e a respeita pelo seu espírito livre e resiliente. Não obstante, Kiki prende-se a algumas inseguranças, próprias de uma adolescente real: questiona algumas vezes a sua aparência e apresenta alguma dificuldade em adaptar-se a um grupo de amigos. Águas que se acalmam e se tornam límpidas. Kiki ultrapassa todas as reticências, quando atinge totalmente a sua independência e termina de polir a sua personalidade.
Sophie, do filme Howl’s Moving Castle (2005), consegue atingir a realização pessoal, criando um lar e cercando-se de uma família desejada e escolhida por ela. Quando ajuda Howl, um feiticeiro peculiar e egocêntrico, a superar as suas inseguranças e a sua covardia (recuperando, literalmente, o seu coração), apercebe-se que também se ajudou a si própria e se libertou do peso da velhice precoce, provocada por um feitiço da Bruxa do Desperdício, porém, alimentada pelo seu caráter envelhecido e derrotado. Sophie não vivia, arrastava-se num corpo jovem, achando-se merecedora do tédio que se abatia sobre ela. Também se centrava excessivamente na vitimização da sua fortuna e não aceitava a sua aparência. Por isso, o feitiço reverteu a sua imagem, expondo o seu interior e deixando o exterior algures, perdido nas entranhas da vontade. Só as aventuras e a total aceitação do “eu” fizeram com que Sophie voltasse a ser uma mulher jovem e tirasse prazer dessa condição.
Chihiro, A Viagem de Chihiro (2001), é uma criança humana mimada, medrosa e dependente. As suas aventuras desenvolvem-se numa dimensão governada pelo sobrenatural, mas curiosamente bastante parecida com o mundo real, em que espíritos também tiram férias merecidas em hotéis de luxo. Chihiro é obrigada a infiltrar-se no hotel da bruxa que transformou os seus pais em porcos para os salvar. O trabalho duro que realizou como funcionária desse hotel e as recompensas que derivaram dele fizeram-na amadurecer e emancipar-se. Neste belíssimo processo, a pequena menina também aprende a apreciar o mundo e ganha uma compreensão mais profunda do papel que poderá ter nele. E tal como Sophie, que ajudou um homem a recuperar o seu coração, Chihiro quebra o feitiço que impede o seu amigo Haku de se lembrar quem realmente é.
Em contraposição a estas mulheres mais calmas e resilientes temos, por exemplo, a protagonista San do filme A Princesa Mononoke (1997). San é reconhecida pela sua aparência selvagem e pelo temperamento violento, sem nunca perder a beleza ligada à sua personalidade. A sua agilidade em lutas, a revolta pouco (ou nada) contida e o seu objetivo cego em salvar a floresta do Homem (ou, mais propriamente, de Lady Eboshi) – são substituídos, no final da história, por uma coexistência mais pacífica, não só com os outros humanos, como também consigo própria. Quando diz que não tem medo de morrer, San não se refere ao cliché de sucumbir por um homem; ela está preparada para se sacrificar por uma causa ambiental e política muito maior do que ela. A evolução desta jovem passa pela domesticação da sua raiva e pela adoção da racionalidade na luta contra o mal que ameaça o seu ambiente. Para além disso, a introspeção de San permitiu-lhe recuperar a identidade humana abafada, durante muito tempo, pelos gritos sofridos dos seres da floresta.
Neste mesmo filme, vale a pena tocar um pouco na personalidade da antagonista. Lady Eboshi, líder da Cidade do Ferro e antiga escrava vendida a piratas, é uma mulher determinada e de temperamento forte. Não é a típica vilã, fria e calculista, a que estamos habituados nos filmes da Disney. Miyazaki quase nunca nos dá um vilão totalmente dissimulado, pois não simpatiza com a ideia de construir vilões que agem meramente por instintos psicopatas e/ou narcisistas. Torna-se psicologicamente mais fácil desenhar alguém que age por uma causa ou por um objetivo que, mesmo sendo errados, não são formados por pura malícia. Lady Eboshi deseja matar o Espírito da Floresta e expandir a Cidade do Ferro. Porém, desarma o público quando mostra constante preocupação e empatia pelas mulheres e homens que salvou da opressão e da escravatura de outros líderes. Aliás, Eboshi desejava, entre outros motivos, aniquilar o Espírito da Floresta por acreditar que o seu corpo poderia curar os leprosos de quem ela cuidava. Esta antagonista não nos permite odiá-la, mesmo que as suas atitudes, para com a Natureza, sejam ignorantes e incorretas. Miyazaki desafia a nossa perceção moral e a nossa empatia com a criação de duas mulheres que lutam fervorosamente por causas diferentes. Apesar de sermos conduzidos para o lado de San e rejeitarmos a representação do Imperialismo e do Industrialismo, não deixamos de sentir respeito pela causa humanista de Lady Eboshi.
Mas poderemos dizer que Miyazaki faz filmes que abordam sem medo o feminismo? Claro que sim. E apresento um exemplo ainda mais esclarecedor: Porco Rosso (1992).
Em Porco Rosso, um filme mais voltado para o público jovem adulto, acontecem coisas bastante interessantes. Nesta história não temos uma protagonista feminina, mas sim um homem amargurado, transformado em porco, que aprende a ouvir e a confiar nas mulheres. Quando Fio Piccolo pergunta a Rosso a razão de possuir um aspeto suíno, este responde-lhe que todos os homens de meia-idade são porcos. Palavras fortes e curiosas para um protagonista que se identifica como homem. Esta resposta, aliada ao avanço da narrativa, provoca, no público, a sensação de que o aspeto de Porco Rosso é metafórico. De facto, Rosso é egoísta, machista e mulherengo. Não vou revelar aqui as razões para a primeira característica (estaria a dar alguns spoilers). A questão machista talvez esteja ligada à época em que se passa o filme, inícios do século XX, e a um certo preconceito que muitos homens, ainda hoje, possuem sobre o sexo feminino: consideram-no mais frágil, limitado e fraco.
A aprendizagem sobre mulheres, por parte de Rosso, evolui quando conhece Fio, engenheira aeroespacial. Fio, menosprezada pelo protagonista por ser mulher e jovem, prova o seu valor quando lhe constrói um avião bastante modernizado para os anos 1920.
Mas Porco Rosso não é o único machista nesta história. Todos os homens deste filme o são. E de uma maneira tão ridícula e patética que conseguem arrancar um riso genuíno da boca de qualquer telespectador. Porque não expor toxidade masculina através da comédia? Já dizia Perelman e Olbrechts-Tyteca, no Tratado da Argumentação, que o ridículo é aquilo que merece ser sancionado pelo riso. Uma afirmação é ridícula quando entra em conflito com uma opinião aceite ou percecionada pela maioria. Por isso, o temor do ridículo e a desconsideração por ele acarretada podem ser usados como meio educativo (Perelman, 1988: 276). Por exemplo, o norte-americano Donald Curtis é uma personagem que pede qualquer mulher em casamento, logo no primeiro encontro; que se acha no direito de invadir constantemente o espaço pessoal do sexo feminino, não sabendo ouvir a palavra não; e que, tal como todos os homens representados no filme, só sabe resolver os problemas com pancadaria. Todos estes movimentos são ridicularizados e desarmados por duas mulheres: Gina comenta, com ironia, que adora homens estúpidos como ele; e Fio deteta a imbecilidade do norte americano e manipula-o para que este aceite uma aposta.
Seria errado afirmar que Porco Rosso é um filme feminista. Existem outros temas presentes, como a guerra, a política fascista e, roubando as palavras de Milan Kundera, a insustentável leveza do ser. Mas o feminismo está lá, numa das suas linhas da frente, tentando penetrar todas as personagens.
A educação mais liberal de Miyazaki inspirou as novas gerações do estúdio Ghibli e de outras companhias cinematográficas (tanto orientais como ocidentais). Quase todos os filmes desta companhia possuem, nos papéis principais e secundários, mulheres livres, ambiciosas e sonhadoras. A sua liberdade é personificada no voo, na água, na floresta e até na música. Cada compasso nos empurra para o reconhecimento do seu poder, das suas dificuldades e das suas conquistas. O Ma dá-nos um momento de reflexão para logo corrermos e nos agarrarmos a estas heroínas na esperança de sermos nós mesmas. E não é que somos?
Algumas referências usadas neste artigo:
Bayle, Alfred (2017). Hayao Miyazaki modeled character in ‘Laputa: Castle in the Sky’ after his mom. Consultado a 2/04/2021: https://entertainment.inquirer.net/244754/hayao-miyazaki-modeled-character-in-laputa-castle-in-the-sky-after-his-mom;
Ebert, Roger (2002). Hayao Miyazaki interview. Consultado a 30/04/2021: https://www.rogerebert.com/interviews/hayao-miyazaki-interview;
Miyazaki, Hayao (2009). Starting Point 1979-1996. Califórnia: Viz Media;
Perelman, Chaïm e Lucie Olbrechts-Tyteca (1988). Traite de L’Argumentation. Éditons de l’Université de Bruxelles: Bruxelles;