‘Viagem ao Sonho Americano’, através de livros fundamentais na literatura americana
Todas as narrativas acerca dos Estados Unidos da América acabam inevitavelmente por ir dar ao Sonho Americano, a noção de que um futuro próspero está à tua frente se te esforçares e trabalhares no duro. De que, não importa o teu passado, para poderes prosperar no país de todas as possibilidades. Inegavelmente ligada à ideia de migração, uma saída do local onde crescemos, em direcção a uma terra desconhecida, à procura de sucesso, o Sonho Americano está na fundação daquele que é, ainda hoje, provavelmente o mais poderoso país do mundo.
Isabel Lucas, jornalista do jornal Público, esteve durante cerca de um ano a viajar por este país, num projecto apelidado A América pelos Livros, consistindo numa reportagem por cada um dos doze meses do ano dedicada a uma geografia específica do país, partindo de uma obra literária que a esta geografia estivesse associada. Esses doze artigos, reportagens com sabor ensaístico, foram agora agrupadas e publicadas em formato livro com o nome de Viagem ao Sonho Americano, pela Companhia das Letras, juntando, aos textos publicados no Público (o primeiro no dia 1 de Maio de 2016, o último dia 2 de Abril de 2017), pequenos apontamentos ao longo da viagem, em jeito diarístico, que encerram, em poucas frases, pensamentos e relatos de Isabel Lucas em relação ao que se vai passando no seu dia-a-dia.
Os livros escolhidos para encabeçar cada um dos artigos vão desde clássicos da literatura americana do séc. XIX, como Moby Dick, de Herman Melville – que nos leva a New Bedford e à Nova Inglaterra -, a clássicos do séc. XX, como A Pastoral Americana, de Philip Roth – a herança judia de New Jersey -, ou A Piada Infinita, de David Foster Wallace – a modernidade, o entretenimento, Boston mas também a Califórnia -, a livros já deste séc. XXI, como A Breve e Assombrosa Vida de Oscar Wao, de Junot Díaz, que, num texto onde é protagonista ao mesmo tempo que Beloved, de Toni Morrison, é usado para colocar o foco nas comunidades minoritárias, nomeadamente a hispânica e a afro-americana. Com eles vamos seguindo pelas costas este e oeste, pelo Alaska, pelo Midwest, pela zona fronteiriça com o México, quase tudo o que há para visitar neste país de dimensões enormes e de ainda maior diversidade. Infelizmente, mesmo estando essa diversidade nas fundações do próprio país, esta parece ser, para alguns, problemática e limitadora de um estilo de vida que, dado como garantido por uma parte da população, na realidade nunca existiu. A verdadeira maneira americana de viver, no fundo, não poderá ser nada se não aquilo que os diferentes grupos de imigrantes, vindos de todo o lado do mundo, formaram à volta da ideia de sonho americano.
Quase sempre usando também as estatísticas para nos situar nas condições socioeconómicas do estado ou cidade em questão, Isabel Lucas constrói, à volta de obras fundamentais da literatura americana, uma narrativa de sobrevivência, explorando e sublinhando os obstáculos (por entre a beleza) que marcam as vidas de quem habita nos Estados Unidos da América. Mais do que perceber o que motiva quem escreve as ditas obras literárias, interessa perceber o que motiva quem vive, formar um atlas literário, mas, acima de tudo, de vivências, questionar em que medida o que é escrito se aproxima à realidade. Dada a existência deste plano geográfico, às vezes, sente-se a falta de um mapa que, no início de cada texto, ajudasse na visualização espacial da zona dos EUA onde o foco está a incidir, sem ter de recorrer a outros meios, como a internet, para o fazer.
O momento para este projecto não podia, portanto, ser mais expressivo, com os artigos a serem feitos e publicados à medida que as eleições americanas progrediam, desde as primárias de ambos os partidos Democrata e Republicano, à tão infame eleição de 8 de Novembro, que viu Donald Trump subir à Presidência dos Estados Unidos da América. Não sendo o principal foco dos artigos, que estão acima de tudo preocupados em caracterizar a vida naquelas regiões, à boleia do que a autora vai observando e dos livros que descrevem o que por ali se passa ou passou, é interessantíssimo verificar como o tema das eleições se vai imiscuindo à medida que vamos avançando no livro e, portanto, na linha temporal, já que estão dispostos cronologicamente. De pequenos apontamentos em relação aos diferentes candidatos e à forma como isso é acompanhado (ou não) pelos locais, passamos ao desespero pelo resultado final e às interrogações que se espalharam por tantos (“como foi isto possível?”) e os esboços de resposta possíveis dos que escolhem falar sobre isso, obrigados a fazê-lo, acima de tudo, para tentar justificar a si próprios o cenário que se lhes afigura à frente. Muitos se arrependem de não terem votado por terem achado não ser necessário, outros vêm em Donald Trump a única maneira de abanar o establishment, simbolizando por Hillary Clinton.
O que todos os que habitam neste país têm em comum, não interessando o quão diferente é a vida no Alaska daquela que se tem em Nova Iorque, é uma certa crença no valor do próprio trabalho. Mesmo que seja agora visível o seu fundo decadente, num dos países com maior desigualdade do mundo, e mesmo que, como afirma Richard Ford a certa altura quando fala com Isabel Lucas, seja uma criação europeia, é inegável que, num país completamente dividido com a eleição de Donald Trump, o que acabe por ligar todos, seja a ideia de Sonho Americano.