MEO Kalorama (dia 2): Arctic Monkeys em toda a sua glória e a classe de Jessie Ware e Róisín Murphy
Num segundo dia de MEO Kalorama esgotado, notaram-se os efeitos de ter um recinto cheio. Se, no primeiro dia, as filas para praticamente tudo já se encontravam longas, ontem isso foi ainda mais notório. Ainda assim, a principal sensação que ficou foi a de entusiasmo. Os principais responsáveis por isso foram os Arctic Monkeys, o quarteto inglês que regressou a Portugal depois de quatro anos para deleite do público, que encheu o vale em frente ao Palco MEO e não arredou pé até aos últimos acordes de “R U Mine?”. Apesar das reacções mornas ao mais recente álbum da banda, Tranquility Base Hotel & Casino, e ao mais recente single, “There’d Better Be a Mirrorball”, o peso do legado indie rock da banda continua a fazer-se sentir na efusão do público. Mas já lá vamos.
Ao entrar no Parque da Bela Vista, ouvimos a reacção entusiasmada do público que se encontrava em frente ao Palco Futura a assistir ao concerto de Crawlers. A banda britânica em ascensão que surfa o regresso do pop punk estreou-se para uma plateia que conhecia o acervo musical dos Crawlers, para grande surpresa da banda.
Ainda assim, preferimos começar a nossa tarde de festival com o fraternal duo português Golden Slumbers, do qual apanhámos apenas o final. Infelizmente, pois o plácido folk de Catarina e Margarida Falcão parecia ser ideal para o final de tarde soalheiro com algumas nuvens que se pintavam de tons alaranjados. O som estava um pouco baixo, o que até se adequou às doces harmonias do projecto. “Woman”, do mais recente I Love You, Crystal, foi a canção escolhida para terminar o concerto e apresentada como uma “canção para chorar”. Acreditamos que sim, mas neste contexto fez-nos sorrir levemente. As Golden Slumbers estão de volta depois de um longo hiato e isso é uma boa notícia.
A afamada série portuguesa “Pôr do Sol” argumenta que só há duas certezas na vida: uma é que tudo se compõe e outra é que são duas chávenas de água para uma de arroz. Tudo certo, mas nós argumentamos que há uma terceira certeza, que é que os concertos de The Legendary Tigerman serão sempre iguais: um desfilar de rock and roll e blues que é tão pujante como é estagnado, numa ode a uma cultura dos EUA cristalizada no tempo. Já não evolui, mas isso não quer dizer que não continue a incendiar os corações de quem gosta de se perder nas guitarras distorcidas e rugidos ferozes do carismático líder Paulo Furtado. Assim como vimos há uns anos em Paredes de Coura, atirou-se ao público em “21st Century Rock ‘n’ Roll”, gritando o género musical titular ao longo de mais de 10 minutos. Nada contra, mas já não nos puxa como dantes.
É por isso que marcamos lugar com alguma antecedência no Palco Colina, para podermos ver o ícone de uma nova disco pop feita no Reino Unido: Jessie Ware. Depois de ter passado tempo a comer pastéis de nata e a deliciar-se com Lisboa, Jessie queimou as calorias todas ao juntar-se aos seus dançarinos e coristas em coreografias ora sensuais ora sofisticadas, ou não fosse o mais recente álbum da cantora, What’s Your Pleasure?, uma orgia de tudo o que há de bom neste género musical. O concerto pecou por alguma falta de foco na fabulosa voz de Jessie Ware, mas a sua vibrante energia mais que o compensou, particularmente no jubiloso single novo, “Free Yourself”, acompanhado pela dedicada plateia.
Com as excepções para as emoções dramáticas de “Wildest Moments” e “Remember Where You Are”, o concerto foi inteiramente dedicado a mexer o corpo. Revisitámos o remix feito por Disclosure para “Running”, “Step Into My Life” convenceu-nos de que Jessie Ware ainda pode dar voz a um tema de James Bond e “What’s Your Pleasure?” teve direito a chicotadas, mas foram “Soul Control” e “Ooh La La” que mais nos soltaram. O final veio cedo demais, mas pelo menos a delirante “Save a Kiss” amenizou o impacto. Ainda assim, ficámos perplexos pela curta duração do espectáculo, que merecia, no mínimo, mais 15 minutos. Esperamos um pronto regresso de Jessie Ware para continuar esta história de amor e sedução com Portugal.
Pelo menos tivemos direito a um seguimento de luxo com Róisín Murphy, numa escolha acertadíssima por parte da organização. Do lado mais veterano de várias variantes da pop, Róisin, à semelhança de Jessie Ware, também escolheu o parado ano de 2020 para se atirar a uma pop infectada pela disco e pelo funk no disco Róisin Machine. A sua música infectou também o público bem recheado, que apresentou uma resistência dançante à iminência do concerto dos cabeças-de-cartaz. Mantendo o estilo de actuação que já é apanágio da sua carreira, Róisín foi passando por loucas mudanças de roupa e perucas, passos de dança magnéticos e uma atitude de quem se leva pouco a sério. Paradoxalmente, a frontwoman parece dar simultaneamente a performance mais distraída e mais focada que vimos, num equilíbrio de carisma ancorado pelas longas canções sempre em evolução, com grooves permanentes e explorações psicadélicas que só enriquecem um concerto essencial.
O disco lento de “Something More” abriu o concerto com o mantra que parece guiar a vida de Róisín (“I want something more”) e “Incapable” foi tocada na sua classy versão prolongada, arrancando aplausos e urros do público. Apesar disso, já esperávamos que fossem os hits de Moloko, o defunto projecto electropop ao qual a artista deu voz entre os anos 90 e o início dos 2000, a entusiasmar mais a plateia. “The Time is Now” e “Sing It Back” foram altamente celebradas, mesmo nas versões ligeiramente adulteradas e mais adequadas ao flow do concerto. Foi ao som da aglutinação de “We Got Together” e “Murphy’s Law” — “We Are the Law”, que se encontra no bom disco de remixes Crooked Machine — que decidimos preparar-nos para o evento principal do dia, deixando a festa de Róisín Murphy mais cedo do que gostaríamos.
Felizmente as expectativas não saíram goradas, pois os Arctic Monkeys atiraram todos os rumores de uma dissolução (algo de que se falava há uns anos) janela fora, com um concerto que nos recordou de porque é que são uma das bandas mais louvadas do rock contemporâneo. De energia renovada com um regresso que se afigura sublime, os Arctic Monkeys pegaram em todas as suas épocas e estilos musicais, moldando-os à postura actual de quem já não tenta ser nada e simplesmente se eleva pelo brilho de um legado musical mais que confirmado. Se as bruscas mudanças de estilos outrora confundiam os fãs expectantes do fogoso e acneico rock de Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not e Favourite Worst Nightmare, hoje convivem lado ao lado ao longo de uma hora e 25 minutos repleta de hits e tesourinhos para os fãs irredutíveis.
O sombrio Humbug marcou presença no início do concerto, não apenas com as incontornáveis “Crying Lightning” (!!!) e “Cornerstone”, a doce balada que foi tiro certeiro no coração dos românticos, mas também com a quase-rapsódia “Potion Approaching”, uma belíssima surpresa no alinhamento. O subvalorizado Suck It and See marcou a metade do espectáculo, emulando a fase de transição que esse álbum marcou entre as sonoridades mais roqueiras e o lirismo gingão dos lançamentos mais recentes. A escolha dos dois temas, tocados de seguida, não poderia ter sido mais perfeita: a tempestade de “Library Pictures” permitiu a Matt Helders demonstrar os impecáveis dotes de baterista e a doce “That’s Where You’re Wrong” foi apenas mais um dos múltiplos momentos em que Alex Turner nos seduziu com as suas aliterações.
A nostalgia dos dois primeiros álbuns foi explorada de forma mais bombástica, com as rajadas das essenciais “Brianstorm” e “I Bet You Look Good on the Dancefloor”, o clássico que pôs a banda nas bocas do Reino Unido e, mais tarde, do mundo. Apesar da letra mais pedinchona e de coração nas mangas, “Do Me a Favour” e o seu negrume em crescendo assentam que nem uma luva no alinhamento. O saltitante ritmo é inconfundível, assim como o épico clímax que continua tempestuoso como sempre. Antes disso, os Arctic Monkeys vestem uma pele mais funky e levantam o véu de The Car, o seu sétimo álbum de estúdio, que sairá em Outubro, através de “I Ain’t Quite Where I Think I Am”. A canção lembra-nos da fase de Young Americans, de David Bowie, pelo seu baixo elástico, e deixa-nos muito expectantes para o que quer que aí venha.
Até porque nós somos da equipa Tranquility Base Hotel & Casino, tendo celebrado profusamente a inclusão de “One Point Perspective” (“esta é das novas”, ouvimos ao pé de nós) já no encore. Adorável como sempre, Alex Turner diz “Bear with me, man / I lost my train of thought” e finge que realmente se esqueceu do que estava a pensar. Claro que são as canções de AM, o álbum que os catapultou para a supremacia rock, que arrancam maiores celebrações por parte do público. Nós, pessoalmente, dispensaríamos canções como “Arabella” ou “Knee Socks” (aqui tocada com um alternativo final roqueiro bastante interessante) em favor de outras épocas ou, pelo menos, da gloriosa “Fireside”. Ainda assim, o início e final com as perguntas “Do I Wanna Know?” e “R U Mine?”, respectivamente, são francamente entusiasmantes. Matámos as saudades, mas já queremos mais.
Para finalizar o dia, o britânico Simon Green apresentou-se com o seu projecto Bonobo. Não sabemos se foi do preâmbulo nostálgico e explosivo dos Arctic Monkeys ou do som inconstante do Palco Colina, mas o concerto não nos encheu as medidas como fez há dois meses, no Sónar Barcelona. O seu grande sucesso, “Cirrus”, soa sempre acolhedor e maravilhoso, assim como a divertida “Bambro Koyo Ganda”, mas o resto do concerto foi algo morno e sem truques na manga.
À saída do recinto, ainda ouvimos o final de Bruno Pernadas, que parecia estar a dar um belíssimo concerto no Palco Futura, com versões extra dançáveis das suas complexas canções.
Hoje é o último dia de MEO Kalorama e o alinhamento conta com Nick Cave and the Bad Seeds, Disclosure, Chet Faker, Peaches, MEUTE, Ornatos Violeta, Moullinex, entre outros.