Magda Szabó, e como esconder a nossa vida atrás d’A Porta’
Inegavelmente, ou não teriam como fazer o seu próprio trabalho, as empregadas domésticas, ou criadas, como eram em tempos chamadas, são das poucas pessoas com acesso à nossa privacidade. O nosso lar, vedado a tantos, é lhes aberto, entram em nossa casa, limpam aquilo que sujamos, arrumam aquilo que desarrumamos, às vezes cuidam até dos nossos filhos, ou, se trabalharmos em casa, até acesso aos nossos hábitos de trabalho têm. O privilégio que, à partida, nos dá a possibilidade de poder ter uma empregada doméstica, acaba por nos colocar numa posição de condescendência em relação à pessoa a quem delegamos aquilo que consideramos de menos importância, não por não precisarmos que seja feito, mas por não termos como ser nós a fazê-lo, quer por julgarmos ser bons demais para isso, quer meramente pela impossibilidade de conciliar tais actividades com a vida profissional.
A Porta, romance da húngara Magda Szabó, originalmente publicado em 1987, trata precisamente da relação entre a narradora e uma já idosa empregada doméstica, Emerence, e chega-nos agora finalmente traduzido para português, pelas mãos da editora Cavalo de Ferro. Cumprem-se dez anos desde a morte desta escritora húngara, em 2007 (juntava ela noventa anos), tida como uma das maiores e mais lidas do país, traduzida em diversas línguas, mas apesar do sucesso nem sempre com uma vida fácil. Entre 1949 e 1956, o regime soviético impede-a de publicar qualquer trabalho, com um prémio importante a ser-lhe revogado no próprio dia em que o recebe. A esse período faz a narradora do livro referência, numa clara névoa entre realidade e ficção, logo no início, ao explicar que, após lhe ter sido levantada a proibição de publicar, tem agora uma avalanche de trabalho pela frente e, portanto, uma impossibilidade de conciliar as suas necessidades profissionais com o trabalho doméstico.
Advém desta necessidade, portanto, a vinda de Emerence para a casa que a narradora partilha com o seu marido, também ele escritor, recomendada através de uma antiga colega de turma que a põe em contacto com aquela que era a empregada (e também porteira) mais competente do bairro, apesar de, no caso de Emerence, ser a própria criada a decidir se a pessoa que deseja os seus serviços é digna dos mesmos, assim como o seu caprichoso horário – “Podia acontecer não a vermos durante o dia, e quando não vinha, aparecia-nos às onze da noite, mas arrumava a cozinha e a despensa até de manhã”. Emerence inverte a ordem hierárquica, puxando as posições de patroa e empregada para o mesmo patamar, e fá-lo devido à sua eficiência, reconhecida por todos. Praticamente analfabeta, sem qualquer interesse pela cultura ou pela política, trabalha mais que toda a gente, como faz questão de dizer várias vezes à narradora, que acusa de ser preguiçosa e indolente por o seu emprego, enquanto escritora, não exigir esforço físico, e, portanto, não ser verdadeiro trabalho.
“Ela era um exemplo para toda a gente, uma ajuda para todos, o bolso do seu avental cheio de migalhas distribuía bombons enrolados em papel, lenços de pano imaculado que esvoaçavam sussurrantes como pombas, ela era a rainha da neve, a segurança, a primeira cereja do Verão, a primeira castanha saindo do seu ouriço no Outono, as abóboras resplandecentes do Inverno, na Primavera o primeiro rebento da sebe; Emerence era pura, invulnerável, era a melhor entre nós, a que gostaríamos de ser. Emerence, de fronte sempre velada, lisa como um lago, nada pedia a ninguém, não dependia de ninguém, toda a sua vida se encarregara dos outros, sem pronunciar jamais uma palavra sobre o que lhe doía”
Orfã desde os treze anos, responsável pela morte dos seus dois irmãos gémeos, Emerence é enviada para Budapeste, onde vai trabalhar como criada em diversas casas, uma das quais a dos Grossman, uma família judia que, tendo de fugir do Holocausto, põe a sua filha Eva ao encargo da criada, que acaba com isso a sofrer vexame da sua própria família, que julga Eva filha dela e de um pai desconhecido. Para proteger a filha de outros, Emerence perde a sua própria família, com o único familiar que a visita a ser o filho do seu irmão Józsi, o qual, no entanto, nunca entrou em sua casa, já que Emerence nunca abre a porta, as visitas sempre recebidas no alpendre. Não é claro até que ponto esta história dos Grossman será conhecida dos que a rodeiam, mas a verdade é que, mesmo sem expor os seus segredos, Emerence acumula toda uma quantidade de admiradores, que a vêm apenas como a pessoa que varre as ruas e cuida das casas dos outros, como a da narradora que acaba por ser, acima de tudo, uma observadora. Não há grande atenção dedicada às vicissitudes do casamento, ou da história pessoal e política da narradora, dos círculos sociais em que se movem, dos livros que escrevem, até do argumento para filme que a certa altura sabemos ter escrito; não se fala com muito afinco acerca da doença do marido, ou de qual é o prémio literário importante que a certa altura recebe, tudo isto é informação de fundo, informação que compõe um cenário onde o drama principal é Emerence e a relação entre ambas.
A narradora afirma, logo no início do livro, ser responsável pela morte de Emerence, após esta lá ter trabalhado em casa durante vinte anos, e percebemos desde o começo que a própria narrativa que nos conta é uma tentativa de fazer as pazes consigo própria, com aquilo que pode ter feito para provocar a morte de Emerence, ou não ter feito para a salvar da mesma. O drama não se restringe, portanto, a uma dimensão hierárquica, entre duas pessoas com uma visão do mundo radicalmente diferente; é também o retrato do envelhecimento e da decadência que o corpo humano, quer na sua vertente física quer mental, sofre, e do esforço que fazemos para que, apesar disso, tudo continue como era e todos julgavam ser. A nossa imagem, agora destruída pela decadência, mantida até ao último instante, até não ser possível mais; um orgulho em continuar a ser a mesma pessoa apesar das dificuldades, uma impossibilidade de aceitar que, depois de termos passado toda a vida a ajudar os outros, possamos precisar, também nós, de ajuda. Esse orgulho pode significar a morte.