Adília Lopes, uma das mais importantes poetas portuguesas

por Lucas Brandão,    15 Dezembro, 2017
Adília Lopes, uma das mais importantes poetas portuguesas
Adília Lopes / Ilustração de Marta Nunes / CCA (@martanunesilustra)

Adília Lopes é o nome de uma das mais célebres poetas dos finais do século XX, e uma das mais afamadas da atualidade. Uma poesia que se destaca, que se evade das delimitações formais e estruturais habituais, e que se amplifica nos recortes singulares das emoções personalizadas. Todo o trabalho que desenvolveu académica e jornalisticamente notabilizaram a sua personalidade lírica diferenciada, que se foi construindo consoante traduzia e redigia crónicas. A partir de dificuldades interiores, transmutou-as para esse lirismo de margens, em refrescantes viagens.

Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira nasceu a 20 de abril de 1960, em Lisboa. Filha de uma bióloga e de um professor do ensino secundário, no seio de uma família culta e da alta burguesia lisboeta, estudou na capital do país até à Universidade, onde iria concluir o curso de Física, mas do qual saiu, por lhe ser detetada uma psicose esquizo-afetiva. Esta patologia seria, mais do que um obstáculo à prossecução do seu quotidiano, uma parceira, que aceitou e convidou para embarcar nas circunstâncias da sua vida. Assim, abordou-a de forma pública e descomplexada, tanto em entrevistas, como em crónicas e conferências, e tomou-a como princípio da sua literatura.

Nos anos 80, enviou poesia, forma pela qual sempre se viu a pensar e a expressar, sua para a editora Assírio & Alvim, assinando com o pseudónimo pelo qual passaria a ser conhecida, resultado da sugestão de um amigo. Assim, seria a incorporação real de Adília Lopes, que, inspirada por este assomo lírico, regressa ao meio académico, onde inicia a licenciatura de Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; e lança o seu primeiro livro de poesia, com “Um Jogo Bastante Perigoso” (1985), onde começa o desconstruir de uma vida em várias vidas, autonomizadas nas dimensões próprias e singulares desse percurso vital exponenciado. Finalizando a licenciatura em 1989, não a acabou sem lançar mais algumas obras, como “O Poeta de Pondichéry” (1986, a sua mais traduzida até ao momento, e que importa uma personagem do romance do francês Diderot “Jacques le Fataliste”), e “O Decote da Dama de Espadas” (1988, uma coletânea de poemas), sempre em bom português.

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer.

“Um Jogo Bastante Perigoso” (1985).

Logo depois, a abrir os anos 90, tornou-se bolseira do Instituto Nacional de Investigação Científica até 1992, trabalhando no Centro de Linguística da universidade onde se graduou, onde estudou os nomes próprios dos países de idiomas românicos, no projeto PatRom. Neste período, só escreve “Os 5 Livros de Versos Salvaram o Tio” (1991), distribuindo alguns exemplares deste gratuitamente; voltando com poesia e prosa até 1997, escrevendo “A Bela Acordada” neste ano. Até 1995, estuda Ciências Documentais, também na Faculdade de Letras, e trabalha sobre os espólios deixados pelos autores Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio e José Blanc de Portugal. Ao lado destas inspirações, também incorporou o espírito lírico de Ruy Belo, Alexandre O’Neil, Luís Vaz de Camões, e de Sophia de Mello Breyner, almas nacionais, para além do francês Marcel Proust, das autoras Emily Brönte e Enid Blyton, e do filósofo Roland Barthes, traduzindo alguns deles para o idioma luso. Entretanto, redige “Sete Rios Entre Campos” (1999), que partilha expoente com “Irmã Barata, Irmã Batata” (2000). Fomentou, com isto, o gosto pela poesia no meio dos seus conhecimentos, avessa ao incutir e patrona do transmitir e do incentivar, embora nunca partilhasse muito tempo e espaço com outros autores.

Na abertura do novo século, inicia um trabalho cada vez mais amplo, imiscuindo-se no teatro – “A Birra da Vida”, de Lúcia Sigalho, é uma peça que se baseia em textos da autoria de Adília – e na própria pintura, com “Obra” (2000, que reuniu os quinze livros de poesia da autora até então) a contar com ilustrações de Paula Rego, que sentia parte da sua infância e do seu imaginário repercutidos naquelas estrofes. Em troca, a escritora traduziu “Nursery Rhymes”, um álbum de gravuras da pintora, que se baseava nas rimas infantis tradicionais inglesas. Foi na publicação de “Obra” que o mediatismo de Adília Lopes conheceu uma especial proeminência, apresentando-se em vários programas televisivos, e contando com o olhar de vários críticos literários conceituados, para além de ter posfácios de autores académicos. Começou, desta forma, a tornar ainda mais assídua a sua colaboração na tradução de poemas e artigos, e na própria redação dos seus, com edições de imprensa e revistas nacionais e estrangeiras.

Demais livros chegariam às bancas, vindos do seu cunho, como “César a César” (2003), “Caras Baratas” (2004), “Caderno” (2007), “Dobra” (2009, que colige, novamente, a sua poesia, e que conhece uma segunda edição em 2014), “Apanhar Ar” (2010), “Café e Caracol” (2011), “Andar a Pé” (2013), e “Manhã” (2015, um retrato lírico e memorialístico da sua vida). Um estilo que consolida era o de se prolongar no binómio presença-ausência, estendendo-se em entrevistas com o seu semblante diferenciado e distante, ao mesmo tempo que estava intimamente ligada às suas intervenções. Esta lonjura que prolonga a discrepância definida e estabelecida nas margens da singularidade, na agitação do seu génio. Uma personagem que não se enquadra nos conformes predefinidos, e que reveste a sua adversidade com o humor intercruzado pela linearidade discursiva.

Os amantes
fecham-se
um no outro
(como os punhos
do bebé
que dorme
no berço
e no útero
da mãe
como as caras
dos ícones
no escuro
das igrejas).

“Sete Rios Entre Campos” (1999)

A poesia da sua autoria navega pela familiaridade, que se aproxima daqueles que buscam pela compreensão da alma na poesia. Desde uma infância consoante nas rimas e trocadilhos, até à passagem pelos idiomas de fora e associações espontâneas, surge um humor que felicita e graceja a vida, para além da ironia que a traça com distinção. Toda esta frieza não se deixa esconder pelo cru intencional e pensado os seus versos, transportando a dor inerente ao ato de escrever e de sentir. Não escondendo o arco católico em torno das suas construções, arma-se no barroco religioso, crente, mas consciente do sofrimento pelo qual passam as narrações e saudações cristãs. Não obstante, vive na reconhecida loucura desde os tempos das reuniões familiares, onde já se assumia na marginalidade, na tal loucura inerente a tantos prodígios da literatura. A excentricidade posta ao serviço pela sua sensibilidade, que transportou para passagens curtas, poemas, epigramas e haikus.

Uma sensibilidade apurada que se formou e se ativou pelos seus estudos, pelas suas passagens, pelas suas transmutações de custo em lucro, com um humor sabedor e sapiente, no requinte do sarcasmo surrealista e vanguardista. Com o mundo de pernas para o ar, descortina figurinos diferentes de o perspetivar, oscilando entre extremos de ser e de estar, no deslindar de novos termos e preceitos. O requinte da imaginação permanece em eterna estimulação, resplandecido pelas memórias vividas e pelo quotidiano a caminhar para a vetustez, assim como os elementos que a acompanharam no guarnecer do passado. Porém, a lucidez do ser só, mesmo amando, traz a tal melancolia, que é avistada como mote da transmutação, em constante denúncia do ser real, sem nunca perder a textura genuína que amadurece na criança interior, a mesma que se procura refugiar dos fantasmas. A poesia como justiça com humor, na transformação de uma ampla dor.

Adília Lopes, ou Maria José da Silva Viana Fidalgo Oliveira, trunca um mundo sentido e imaginado. Uma filosofia personalizada, pontificada pelo vivido e pelo sentido. Da simplicidade se fez a sua crueza sensorial, que se quis ver transmutada pelo humor e pela inovação da língua, da palavra, do som. As entranhas ressoam a algo familiar, que se descarateriza do rendilhado habitual, e que entoa a sinceridade transparente, sem se empolar, com a frontalidade de poucos. Em si, revela a fragilidade que habita em si, mas que desvenda a honestidade impagável, de modos quase etéreos, mas sem nunca se divinizar. A autenticidade jovial ressaltada e enaltecida no triunfo da sabedoria imortal.

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