Antonio Gramsci: um dos maiores nomes da filosofia italiana que procurou analisar as forças sociais e políticas
Na senda dos herdeiros ideológicos de Karl Marx, uma viagem a Itália faz sentido. Isto porque, na pequena vila de Ales, na Sardenha, no ano de 1891, no seu dia 22 de janeiro, nasceu Antonio Francesco Gramsci, um futuro filósofo, linguista, jornalista, político e adepto de futebol e da Juventus (até ao momento em que considerou que o Estado se apoderou do desporto) que viveria durante uns breves 46 anos, já que morreria a 27 de abril de 1937. Entre muitos artigos e ensaios, deixaria formalizada uma só obra: os “Cadernos do Cárcere”, publicados postumamente em 1947. Detido por força da oposição que protagonizou contra o regime fascista imposto por Benito Mussolini a partir de 1922, tornar-se-ia, já depois da sua morte, uma referência no palco da filosofia política.
Um ano antes de Mussolini assumir o poder, já Gramcsi estava junto de Amedeo Bordiga, de Nicola Bombacci e de Palmiro Togliatti na fundação do Partido Comunista Italiano, herança direta do Partido Socialista Italiano. Gramsci havia visto o seu nome pertencer aos afiliados em 1913 enquanto estudava na universidade em Turim, na área da linguística, numa cidade em muito ligada à emergência da industrialização no país. Aliás, entre 1919 e 1920, esteve mesmo envolvido naquele que foi conhecido como o período “Biennio Rosso”, no rescaldo da I Guerra Mundial. Os conselhos de trabalhadores que se foram formando em Milão e em Turim procuravam incentivar manifestações e até greves, terminando com ocupações de fábricas lideradas por organizações revolucionárias e anarcossindicalistas. Porém, a fação fascista de Mussolini rebateria estes movimentos, culminando na Marcha em Roma de 1922.
“É preciso perder o hábito de conceber a cultura como saber enciclopédico, no qual o Homem é visto sob a forma de recipiente. Essa forma de cultura é prejudicial. Serve apenas para criar desajustados, gente que se crê superior ao resto da humanidade.”
Libertar o Futuro – Textos políticos (1916-1926) de Antonio Gramsci (ed. Outro Modo, 2019)
Com o fascismo cada vez mais evidente no dia-a-dia de Itália, o partido comunista de Gramsci cairia na clandestinidade, embora pese a mensagem pacifista e anti-violência que hasteavam, assente em ideais democráticos. Talvez daí adviesse a animosidade deste partido com o núcleo duro do comunismo, na União Soviética, em especial com a figura de Estaline. Então, o filósofo fazia parte da sua ala mais revolucionária, sendo um dos editores do jornal “L’Ordine Nuovo”, estabelecido em 1919. Sucessor deste seria, eventualmente, o “L’Unitá”, fundado em 1924, numa fase em que o secretário-geral do partido ainda era Gramsci, tendo cedido em 1927 o lugar a Togliatti. Um ano antes, havia sido preso, apesar da eventual imunidade parlamentar da qual beneficiava enquanto deputado na zona de Veneto. Foram onze anos de detenção, nos quais só se libertou para cuidados médicos, acabando por falecer numa clínica em Roma por um conjunto de maleitas cardiovasculares, dias depois da data final da sua sentença ter chegado.
A década durante a qual esteve preso, apesar de uma saúde cada vez mais débil, foi fértil em escritos e em análises sociais e históricas. Desse período, compilaram-se os “Quaderni del carcere” — os “Cadernos do Cárcere” —, com maior parte a serem escritos entre 1929 e 1935, que se tornariam numa obra máxima da teoria política e do pensamento marxista. São escritos que perpassam um pouco por toda a História de Itália e da Europa, tocando na obra de Maquiavel, que considerava ser escrita para o povo e não para os estadistas (o partido operário era o “príncipe”); de Giambattista Vico e a sua noção de “senso comum; do liberalista Benedetto Croce; do “fordismo”, termo que cunhou e que definiu como trabalho intensificado e rotinado para fins produtivos. À luz disto, faz apontamentos sobre o capitalismo, dado que a burguesia mantém o seu controlo através da sua intervenção na mediação entre agentes políticos e laborais, levando a que certas pretensões sejam levadas avante e mantenham a hegemonia presente.
Isto para além da própria sociedade civil, lida como um lugar na qual a hegemonia burguesa se poderia impor e onde se poderiam mediar problemas de ordem coletiva. A sociedade civil — leia-se a família, o sistema educacional, os sindicatos — é tida como o espaço onde se desenvolvem identidades sociais, superando as dificuldades de nível ideológico que possam surgir, fazendo a ponte entre a esfera política e a económica. As ações desenvolvidas por essa sociedade transformam-na numa sociedade política, dado que são atividades pensadas e feitas por organismos civis que condicionam e influenciam (e são condicionadas e influenciadas pel)os aparelhos do Estado e pelos eventuais partidos políticos, assim como o próprio aparelho jurídico e o exército. Abandonam, deste modo, o papel passivo que assumem enquanto consentem a liderança de outrem das suas vidas e saem da esfera privada para entrarem na esfera pública.
O conceito primordial na linha de pensamento de Gramsci é o de hegemonia, que resulta de uma classe dominante que não é necessariamente o Estado, sendo que este é só um dos meios através dos quais essa hegemonia é mantida. O seu poder, contudo, pode aumentar ou diminuir consoante tem o ascendente sobre a orientação ideológica dos tais organismos civis, que podem ser as escolas, os meios de comunicação social e até a criação artística. Daí o peso da alta e da baixa culturas, que se diferenciam entre si pelo valor artístico e intelectual excecional e que podem ser objeto de controlo social mediante o teor ideológico que possa existir ou não ter. Torna-se mais fácil, evidentemente, liderar esses esforços com a baixa cultura, dado o cariz massificado com que é exprimida e transmitida àqueles que usufruem dela.
A hegemonia cultural é, assim, perante uma sociedade que é diversa do ponto de vista cultural, uma que se torna moldada pelos princípios, pelas crenças, pelos valores e pelas normas de uma classe que se destaca e se torna dominante: a burguesia. Para isso, são usadas as instituições existentes, não havendo necessidade de recorrer a meios de violência física, mas antes à força das políticas de atuação e de influência das mesmas. Cria-se, assim, uma ideologia à qual a sociedade deve aceitar, acatar e assimilar e uma conjuntura socioeconómica e cultural que acaba por ser uma distorção ao serviço do controlo dessa sociedade. Uma ideologia que ganha a forma de senso comum, algo que todas as classes, de forma mais ou menos consciente, lutam por manter, ao invés de o repensar e de o confrontar. A mensagem que subsiste é a de que essa ideologia traz, de facto, um benefício real para todas as classes sociais. Daí que Gramsci defende que, para desconstruir e desmontar esta hegemonia, seja necessário dotar os cidadãos de ferramentas para conceber uma nova ideologia (ou uma nova cultura), assente na classe trabalhadora, de combate e de contradição direta a esse controlo social.
Para isso, dado que a coação física e económica seriam inúteis, defende a necessidade de criar uma consciência de classe, entre homens e mulheres comuns, assente na criação de uma contra-hegemonia, através da aprendizagem de teorias revolucionárias e da análise de diferentes momentos da História. Ao lado disto, procurar uniões de forças e alianças entre vários quadrantes, construindo um bloco histórico capaz de se libertar dos vínculos ao folclore local e regional e à carga religiosa da sua moral. Para alcançar a praxis política propriamente dita, falta ainda, através destes saberes, desenhar uma estratégia organizacional de revolução que se propague pelas várias classes sociais. A análise efetuada reconhece os conceitos de estrutura e de superestrutura marxistas, que são entendidos como camadas de dominação cultural que proliferam no senso comum e que impossibilitam o cidadão comum de ter consciência do seu contexto e do seu lugar no mundo. Questões coletivas são colocadas de parte, havendo um enfoque no dia-a-dia e colocando eventuais perspetivas de opressão fora das suas linhas de pensamento e de reflexão.
Gramsci era da opinião que era necessário haver um número de intelectuais letrados, entre filósofos, jornalistas e artistas — a chamada intelligentsia — que conseguisse representar os então subalternos, despertar a classe operária e mobilizá-la para confrontar o seu status quo. A necessidade dessa intelligentsia de ter uma educação técnica, próxima daquilo que os operários tinham, e de ter uma vida social ativa e competente e de obra feita acabaria por ir mais longe do que o mero recurso à oratória, que, para Gramsci, não bastava e não diferia muito da dominação cultural pré-existente. Defendia, assim, que este grupo destacado poderia, através da sua práxis, alavancar outros tantos para essa mesma práxis e alcançar uma noção de vida mais elevada. Uma vida que se cumpriria na sua própria experiência, divorciando-se dos caminhos unidirecionais que julgava que a religião, o folclore e a própria ciência desenhavam para o conseguir. O poder da educação serviria como norteador de caminhos e como veículo de expressão de sentimentos e de experiências que as massas não conseguiam verbalizar.
O italiano encontrava em Karl Marx e em Friedrich Engels dois bastiões no diagnóstico e na identificação da opressão burguesa, mas procurava ir mais longe nas respostas a esse fenómeno. Para Gramsci, a filosofia vivia da dimensão prática, ultrapassando a barreira conceptual e estrutural, no que toca ao pensamento e ao raciocínio, e fazer história por ela mesma através da ação. Assim, reconhecendo o historicismo relativista à filosofia de Marx, associada à dialética de Hegel, que vê as ideias como produtos das fases do tempo e do espaço em que nascem, incentiva à ação, não só dos trabalhadores por si mesmos, mas da sua formação, para a emergência de novos intelectos destinados à subversão.
A hegemonia que via desmoronar na União Soviética não seria tão análoga à que idealizava, visto não achar que, lá, houvesse uma hegemonia propriamente dita, que abrangesse todos os russos. De igual modo, não visava introduzir a ideologia marxista no consciente coletivo proletário, mas antes dar oportunidades para que a atividade intelectual existente entre as massas se renovasse e lhes dotasse de condições para serem críticos da sua atualidade individual e plural. Assiste-se, efetivamente, a um fenómeno de pedagogia crítica, que seria em muito alimento para que outras tantas (muitas delas revolucionárias) se criassem em diferentes partes do mundo, como com o francófono Frantz Fanon, com o estadunidense John Dewey e com o brasileiro Paulo Freire.
Porém, Gramsci também alude ao conceito de revolução passiva, que vai de encontro, não à ideologia política, mas ao poder económico, nomeadamente no que toca ao capitalismo. Quer com isto falar de um processo que se dá de forma gradual, mas continuada, que procura encontrar respostas para os seus interesses, ignorando eventuais contradições sociais. Traz o reformismo como princípio de atuação máximo, nomeadamente na ausência de força social e cultural para o processo revolucionário. Trata-se de um processo que garante a subsistência e que se movimenta entre as elites, opondo-o à Revolução Francesa com o exemplo do que se sucedeu em Itália no século XIX. Não obstante, não deixa de tecer uma rasgada crítica ao taylorismo e aos conceitos de gestão científica e de linha de montagem usadas nesta filosofia de trabalho, em especial à subordinação dos trabalhadores e à quase automatização do trabalho a ser feito.
Há uma aceitação tácita daquilo que a hegemonia, embora condicionando a sua forma de atuação social. É algo que tem de ser feito dada a complexidade da sociedade civil contemporânea enquanto se prepara uma guerra de posição, ou seja, uma revolução mais progressista e afirmativa para os trabalhadores. Uma revolução que, como objetivo máximo, almeja o aumento da sociedade civil e a diminuição da sociedade política, com o sentido de se poder autorregular. São processos sociais que podem e devem ser vistos à luz da fase da história em que se desenrolam, assim como no seio das relações que estabelecem com o outro-humano e com o outro-entidade. A verdade não é algo estanque e incontestável e vai sendo feita no dia-a-dia, evoluindo historicamente no tempo através da consciência de classe do proletariado.
Trata-se de um historicismo absoluto aquele que Gramsci defende e que nega o determinismo marxista. A práxis é algo demasiado relevante para o filósofo e é algo que, a seu ver, mobiliza o decurso da História, pelo que é necessária a consciencialização de classe para mover a ação revolucionária. Ao mesmo tempo que também não existe determinismo económico, havendo sempre um caminho de diálogo entre a hegemonia vigente, sustentada nos interesses que criam as condições de trabalho e que apontam os objetivos de lucro. Um caminho que, embora igualmente contrarrevolucionário, vai-se reajustando e se reorganizando, acompanhando o desenvolvimento social universal.
De novo, a realidade não está pré-determinada, dado que isso seria quase como reconhecer a existência de um ente superior a todos os demais, um Deus. A intersubjetividade universal é algo que Gramsci pretendia reconhecer numa sociedade futura, onde são mais as pontes que as fronteiras sem ligação, indo da História natural à História social. Essa sociedade futura não devia estar exposta a superstições populares, mas antes disponível a desafiar as ideologias vigentes, pertencentes, por norma, às classes educadas, e, em pé de igualdade com elas, após compreendê-las, refutá-las.
Antonio Gramsci transcendeu em larga escala os quarenta e seis anos de vida vividos, tornando-se num dos nomes italianos e dos filósofos marxistas mais citados na História. Ao invés de se fechar na ideologia marxista, procurou ir mais longe e, com um sentido de análise profundo e minucioso sobre o seu país, abrir caminho para a emergência da Teoria Crítica. De igual modo, uma corrente inspirada na sua filosofia e posterior à sua morte nasceu, sendo esta o “neogramscianismo”, que procura analisar a constelação entre as forças sociais e as forças políticas, nomeadamente o Estado, na configuração de ordens mundiais. Ou seja, a ação humana por entre as restrições das estruturas existentes, deambulando entre o realismo e o liberalismo. O jogo de forças foi e continua a ser um referencial de Gramsci como indivíduo e, em especial, como pensamento e perene testamento.