A bênção de Caetano Veloso no Porto
Foi uma bênção bem luzidia numa noite enevoada que ameaçou a chuva, mas que nunca se chegou a concretizar. Isto talvez por obra e graça da divindade musical, cultural e artística que apareceu, pelo segundo dia consecutivo, no palco do Coliseu do Porto. Marcava o dia 8 de setembro, com um prolongamento de tempo (de atraso) que o Porto soube tolerar, e chegou Caetano à sua sexta data em solo português, naquela que era uma das suas últimas performances na sua primeira tournée europeia pós-vacinação da Covid-19. No alto dos seus 79 verões de vida, Caetano foi aclamado, aplaudido e ovacionado como se de um Deus se tratasse, ou de um dos seus avatares. A verdade é que não pode ser visto de outra forma, tendo em linha de conta tudo o que viveu, vive e viverá e a sua dimensão e alcance.
Sentiu-se, ali, o nordeste brasileiro a aterrar no Porto. Sentiu-se, quase, todo o Brasil representado num só vulto e num só violão. O concerto queria-se intimista e, de início, foi. Foram tonalidades que não fugiram muito daquilo que Caetano apresentou a sul e a centro, em Lisboa (por três ocasiões, a caminho da quarta) e na Guarda (por uma). Fomos, assim, viajando pelo cancioneiro deste mito que, no dia 8 de setembro, foi real. Entre os temas de “Muito” (disco de 1978) — com “Muito Romântico —, “Bicho” (álbum de 1977) — em “Um Índio” e “Tigresa”, “Caetanear” (de 1985) — com os temas “Luz do Sol” e “Menino do Rio”. Também se ouviram “Cajuína” e “Trilhos Urbanos” (do disco “Cinema Transcendental”, de 1979) e o “Coração Vagabundo” (composto em 1967 com Gal Costa, uma das suas companheiras nos Doces Bárbaros). Todos estes temas remontam a esse contexto social e geográfico brasileiro passado, embora ainda tão presente, por entre o reconhecimento das suas identidades dispersas, mas juntas na unidade da brasilidade. Igualmente intimista a versão interpretada e tão bem albergada de “Milagres do Povo”, já que a versão original é de Gal Costa. Pelo meio, uma saudação e uma nota sobre como o Porto era uma casa para o artista baiano.
Em comum, um sentido comunitário e amplo, que justificava as mensagens anti-Bolsonaro que havia deixado na noite anterior, em que evocava as manifestações popular no dia de celebração da independência do seu país, o Brasil, manifestações essa que assumiam tons a favor do atual presidente brasileiro. A mensagem havia ficado e prevalecido: “Fora Bolsonaro”. E foi uma mensagem que, embora não pronunciada durante o evento, se sentiu sempre implícita, nas letras e nos acordes que Caetano produziu durante as suas músicas. Reservava-se para o fim, numa enorme tarja que se ergueu na bancada superior: “Fora Bolsonaro Genocida”, recebida com palmas e aprovada por maioria da assistência, enquanto ia saindo paulatinamente do recinto, já depois do evento ter acabado. Foi nesse mesmo contexto que, pouco tempo de seguida, o público começou a cantar o célebre tema “Sozinho” — “onde está você agora?”. Pessoalmente, soube à versão de Tim Maia, aquela que Caetano descreveu como arrasadora, mas sem deixar de esquecer que foi o mesmo Caetano que fez da canção icónica.
No entanto, não pode passar em claro, entretanto, a chegada das canções que imortalizaram este abençoado cancioneiro caetanista. Não faltaram “O Leãozinho”, “Gente”, “Desde que o Samba é Samba”, “Nine out of Ten”, “Reconvexo”, “Terra” e “Sampa”, todos eles temas que foram trauteados e bailados pelo público. Curiosas também as interpretações de Amália Rodrigues — da música “Confesso”, onde se ouviu um clamar “Temos fadista” — e uma versão acapella da “Tonada de Luna Llena”, do conceituado músico venezuelano Simón Díaz. No encore, quatro canções, entre elas “Odara” e a “Luz de Tieta”, que fez o público erguer-se dos seus assentos, mesmo com a ágil intervenção dos agentes de segurança, que procuravam assegurar a possibilidade de todos usufruírem do concerto.
Tudo isto é um relato do que se sucedeu. Porém, este concerto foi de tal forma um marco de passado, presente e futuro que merece a minha reflexão pessoal. Uma reflexão de quem cresceu a ouvir Caetano, de quem foi explorando a sua vida e obra — e a resumiu num pequeno e incipiente artigo biográfico — e de quem foi conhecendo uma pluralidade pouco comum. Mais do que o cantar da Bahia e da sua atmosfera geográfica, tornou-se, efetivamente, um cantar incrivelmente global, integrando artistas dos mais diversos lados, com um cancioneiro riquíssimo em influências locais, nacionais, estrangeiras. E foi de coração nas mãos que ouvi, inicialmente na lateral, encostado na parede e derretido, e depois num lugar verdadeiramente privilegiado no meio da plateia, e que percorri memórias, histórias e estórias pessoais e outras que vi, li e ouvi sobre o Brasil e as suas gentes. Caetano é, de facto, muito mais do que um músico. É um ícone, uma referência a todos os níveis. Gentil, com a sabedoria que a idade lhe conferiu, rendido e humilde perante a aclamação de uma parte do Porto, que o compreendeu e que o sentiu tanto ou mais do que eu. Enfim, nos meus 25 anos de idade, senti-me, verdadeiramente, rendido. Uma rendição que precisava, já que a pandemia se tornou tão exigente a nível mental e emocional. Até a máscara me seguiu os passos, quando rompeu um dos elásticos que a sustentava, também ela vencida pela magia daquela divindade.
Foi desta maneira que o dia 8 de setembro de 2021 marcou a minha vida. Foi um marco, já que, muitas vezes, achei que nunca assistiria a uma das suas aparições. A benção que Caetano, nas suas sílabas e nos seus silêncios, emanou, seja por referências orixás ou por divindades da Bahia ou da Amazónia, ficou-me entranhada. Apesar de nunca ter ido ao Brasil, senti que o Brasil veio até mim. É esse o poder de um músico que transportou consigo uma nação inteira, nas suas lutas, nas suas mágoas, nas suas reivindicações, mas também nos seus sabores, nos seus tragos a mar e floresta, a samba e a bossa nova, a alegria e a folia. Foi uma montanha brasileira de emoções, que não pude deixar que me entranhasse até ao tutano e sentisse que esta lusofonia que nos liga é, de facto, intransponível. Muito mais do que português ou brasileiro, foi um sentimento lusófono inquebrantável que saiu daquele recinto reforçado e enriquecido. As causas do Brasil são as minhas, assim como as de Moçambique, de Timor, de Angola, da Guiné, de São Tomé, de Cabo Verde. De facto, é este sentimento de pertença e de amplitude que nos faz ser mais humanos, que olha para os desgostos que se passam pelo mundo e que faz deles ser, também, nossos. Caetano tem esse poder, Caetano trouxe essa mensagem. Uma mensagem de que somos singulares em pluralidade e em diálogo permanente, onde a alegria e o alto astral estarão sempre por perto e ao ouvido. Naquele dia, porém, tive a certeza de que também em presença, num passado que ficará como presente e futuro.