“A Chama” é o legado de dignidade e beleza de Leonard Cohen
Leonard Cohen dedicou a vida a convertê-la em poesia. De acordo com as suas palavras, proferidas no discurso de aceitação do prémio Príncipe das Astúrias em 2011, a propósito do que aprendeu com a poesia de Frederico Garcia Lorca: «As instruções eram de nunca me lamentar casualmente. E, se tivesse de exprimir a grande e inevitável derrota que nos espera a todos, fazê-lo sempre dentro dos mais estritos limites da dignidade e da beleza». Este discurso, incluído no derradeiro livro assinado pelo poeta cantautor, encerra a maravilhosa disposição de poemas, letras, e-mails e pedaços de cadernos de notas que compõem A Chama, agora publicado em português pela Relógio d’Água.
Cohen, que deixou a sua carreira discográfica resolvida com um conclusivo You Want it Darker, acabou por não assistir à publicação do seu último livro. A selecção e a organização dos poemas seguiu, no entanto, as suas rigorosas orientações. A escolha do título coube ao filho, Adam Cohen.
O livro está dividido em quatro capítulos. Poemas, Letras, que incluí todas as letras das canções de Blue Alert (álbum de Anjani, sua namorada, cujas letras são integralmente da sua autoria), Old Ideas, Popular Problems e You Want it Darker; Leonard e Peter, com a correspondência electrónica que manteve com o poeta Peter Dale Scott, e Excertos dos Cadernos, com poemas e notas recolhidos das várias centenas de cadernos que acumulava em sua casa e no seu escritório. Adicionalmente, por todos os capítulos podem encontrar-se imagens de manuscritos originais e vários auto-retratos, que tinha por hábito fazer.
São os poemas que movem o livro, como foram os poemas que moveram toda uma vida. Conta Adam Cohen que, nos últimos dias do seu pai, era a conclusão destes poemas que ocupava praticamente todas as suas energias – «A centelha moribunda é forte», como nos diz logo num dos primeiros versos do primeiro poema Acontece ao Coração. Alguns datados, outros não, compreendem um período que vem desde o final dos anos sessenta até 2016 – Cohen era conhecido por demorar por vezes anos a dar determinados poemas por terminados. Para ele, a escrita sempre foi um processo laborioso – por vezes penoso – de procura e aperfeiçoamento. Encontramos, assim, uma combinação de fragmentos, não só dos últimos anos da sua vida, mas também inéditos referentes a um passado mais remoto.
Cohen nunca foi um poeta à flor da pele, pelo contrário. Como canta em Slow, do disco Popular Problems: «Levo sempre o meu tempo / Demoro-me enquanto ele voa». Talvez por isso a sua escrita transpire sempre algo de final ou definitivo, perfeitamente acabado, polido. Os versos quase sempre obedecem a uma cadência regular que é a sua e que perpassa até para o texto traduzido. A sua voz – tanto a voz poética, como a sua voz real, física – soa sempre profunda, solene e formal. Num poema intitulado Carreira, diz o autor: «Tão pouco para dizer / tão urgente dizê-lo». O seu discurso não perde – nunca perdeu – tempo com o banal, a não ser para nos mostrar o que de importante ou sublime pode haver nele.
Os poemas de A Chama, um pouco à semelhança dos temas dos seus últimos três álbuns, incidem frequentemente sobre a iminência do final da vida: «E a morte está em todo o lado / E vais morrer seja como for / e sentes-te cansado da guerra» (Queres contra atacar e não podes). Em You Want It Darker, Cohen afirma-se estar pronto («Estou pronto, Senhor»). A conversa com o Criador, o estilo confessional, as declarações finais acerca do mundo, tudo está sempre a lembrar-nos disto: são poemas de um homem que sabe que está a chegar ao final dos seus dias. A escuridão é uma constante – além de «You Want it Darker», «Não havia nada a não ser / As estrelas na escuridão», «Apanhei a escuridão a beber do teu copo» (Darkness, Old Ideas), etc. – mas também a luz, a chama, como nota Adam Cohen na nota introdutória que assina. As páginas escurecidas pelo seu pai transportam sempre, também, a possibilidade de redenção ou de salvação.
As mulheres, outro tema recorrente na sua obra, são muitas vezes a fonte dessa salvação ou dessa redenção, mas também das trevas. Neste tópico, Cohen sempre se apresentou quixotesco, antigo, «Like a Knight from some old fashioned book», como cantava em Bird on a Wire. De outro tempo que, provavelmente, nunca existiu. Nestes poemas, Cohen acerta contas com os seus encontros e desencontros amorosos, muitas vezes fontes de angústia. Como, inevitavelmente, a eterna Marianne – «Vem aí o barco da manhã / vem aí o comboio da noite / vem aí Marianne para se despedir de novo.». No entanto, dedica a Anjani – um amor feliz – alguns dos versos mais belos deste livro, como os de Estou Sempre a Pensar Numa Canção. Numa entrada retirada de um dos seus cadernos escreve: «Fiquei velho / de uma centena de maneiras / mas o meu coração continua jovem / & ainda brinca / com o tema do amor” – Leonard manteve-se vivo até ao último instante, e a chama do romantismo nunca esmoreceu sob o seu velho chapéu.
Apesar de ser, eminentemente, um poeta do íntimo, do eu, Cohen não olha apenas para dentro de si mesmo nestes poemas, letras e apontamentos. Muitas vezes surge um olhar desiludido sobre o mundo – as guerras, as injustiças – sobre a hubris dos poderosos (the rich, para ser concreto). Olha também para a cultura. Cohen distribui mimos pelos seus pares. Dylan é vastamente citado como grande farol dos trovadores. Numa das entradas dos seus cadernos, Cohen descreve um concerto de Tom Waits «a sua música começa – é tão bela e original e sofisticada – é tão melhor do que a minha». Nico é também referida, por duas vezes. Sem esquecer, claro, o famoso poema que veio a público nos idos de 2017 – Kanye West is not Picasso.
Particularmente interessante é ler o capítulo Excertos de Cadernos, onde nos conseguimos sentir a vasculhar no quotidiano do poeta, andando para a frente e para trás na sua cronologia, percebendo que os temas da sua poesia foram sempre muito constantes ao longo da sua vida. Conseguimos vislumbrar pequenos esboços de coisas que viriam a ser grandes coisas. E, por outro lado, observar os pequenos apontamentos, pequenas notas, que fazia dos seus dias, das suas viagens, dos seus pensamentos, e perceber que a sua obra é resultado directo de uma forma de pensar, de sentir e de ver muito própria e comprometida.
No documentário de 1972 – Bird on a Wire – preparando-se para interpretar Suzanne, Cohen explica que os direitos de autor para essa canção (essa magnífica canção) já não lhe pertenciam («were stolen from me») e que, por esse motivo, não recebera qualquer dinheiro por ela. Rematava dizendo que esse acontecimento seria perfeitamente justificado, porque seria errado escrever essa canção e ficar rico por causa dela. Leonard sempre se apresentou assim, como veículo de poemas que não lhe pertenciam – «Não percebeste nada / da poesia / É toda sobre eles / não sobre mim». A obra sempre foi maior que ele, e ele servo dela, guardião dessa chama que levou acesa até ao último dia.
Leonard Cohen deixou-nos há cerca de dois anos, e seria fácil e banal dizer que, no entanto, vive nos seus poemas e canções. Não vive. Foi um mortal com uma missão, e cumpriu-a eximiamente: nunca se lamentar casualmente. O seu corpo deixou-nos, mas deixou-nos um notável corpo de trabalho, e não só. Legou-nos um arquétipo de dignidade e humildade, de sabedoria e espiritualidade. Um dicionário para o espírito, para viver a sublime beleza da escuridão, da melancolia e da tristeza, mas também a do amor e do prazer. Um guia de símbolos, de poemas e de canções para enfrentar a dureza da vida com honestidade e elegância. A Chama é o último sopro desse espírito, e vive. Cohen, lamentavelmente, não. Mas, em face dessa grande e inevitável derrota, manteve-se sempre, conforme se propôs, nos mais estritos limites da dignidade e da beleza, e deixou-nos A Chama como prova. A centelha moribunda é forte.