A dança artística e cívica de Josephine Baker
Josephine Baker foi muito mais do que uma artista. Nascida a 3 de junho de 1906 e falecida a 12 de abril de 1975, aos 68 anos, Freda Josephine McDonald, nome de nascença, foi uma verdadeira pioneira. Assumiu a sua negritude enquanto quebrou imensos tabus no mundo do espetáculo, essencialmente na dança e no cinema. Para isso, muito contribuiu a cidade de Paris, que a acolheu aos 19 anos e que a viu singrar, entre outros lugares, no cabaret Folies Bergère. Com um visual arrojado e bem ousado, tornou-se num verdadeiro ícone dos Loucos Anos 20 que assolaram o Ocidente. Cidadã francesa a partir de 1937, depois do seu casamento, viveria de perto as agruras da Segunda Guerra Mundial e faria parte da Resistência que se opôs ao estado-fantoche francês, depois da anexação do país por parte da Alemanha Nazi. Assim, e para lá dos méritos artísticos, ficaram bem mais os civis, que fizeram parte essencial dos seus anos subsequentes até à sua morte, que culminou na sua trasladação para o célebre Panthéon parisiense.
Freda cresceu no estado do Missouri, no qual nasceu, filha de descendentes de escravos, embora o seu pai fosse incógnito — possivelmente, tratava-se de um homem branco. Cresceu num ambiente pobre e degradante, sem canalização e, muitas vezes, sem víveres, chegando a passar fome, para além de se vestir de forma descuidada. Ficaram as brincadeiras com as suas colegas, já que a escola tinha ficado para trás e a vida de trabalho começara muito cedo, com somente doze anos. Tornara-se uma criança de rua, embora vislumbrasse a luz ao fundo do túnel: dava espetáculos de rua, fazendo uso do seu jeito nato para a dança. Depois de um casamento fugaz e infeliz com um rapaz que havia conhecido num clube onde trabalhava como empregada, juntou-se a uma trupe de artistas e, depois de ver azedar a sua relação com a mãe, voltou a casar-se, desta feita com Willie Baker, aos 15 anos. Deste enlace, ficaria o apelido que marcaria o seu futuro artístico: Josephine Baker ia de ponto em ponto do país e ajudava a sustentar a sua mãe e a sua meia-irmã, apesar da primeira não concordar com a vida itinerante da filha. Também por essa razão, decidiu dar o salto e, com somente 19 anos, atravessar o Atlântico. Paris aguardava por si, para lhe entregar o título de vedette, que não é menos do que ser a maior atração em eventos de cabaret, entre burlesques, vaudevilles e, as que a notabilizariam, as revues, uma espécie de teatro popular que conjugava música, dança e interpretação.
Antes de partir, Baker trazia já um pequeno currículo, com passagens por Broadway, como no musical “Shuffle Along” (1921, um espetáculo feito com um elenco totalmente de etnia negra, no espírito do Renascimento de Harlem), onde fazia parte do coro de artistas que atuavam de forma coordenada. Aqui, também contracenaria com uma espécie de rival, Adelaide Hall, que se voltaria mais para o jazz. Porém, na chegada a Paris, ganharia outro fulgor, com um modo inovador e arrojado de dança, muito inusitado para aquela altura. Exemplo disso foi “La Revue Nègre” (1925), munida por uma orquestra de jazz, no Théâtre des Champs-Élysées. Os trajes eram poucos ou nenhuns e o instinto sensual e ousado era tremendo, que lhe granjeou uma fama imensa na altura. Seria uma das primeiras afroamericanas a pisar e a assumir Paris como a sua cidade, à imagem da artista Bricktop, com quem partilhou uma relação íntima e com quem descobriu a sua bissexualidade, que lhe levaria a várias outras relações, tanto com homens, como com mulheres, entre as quais, alegadamente, Frida Kahlo.
Foi depois de um pequeno périplo pela Europa, na sua dança pela nudez, que começou a se tornar numa das maiores atrações do Folies Bergère, em especial em 1926, aquando da sua dança com uma saia feita de bananas artificiais, no evento “La Folie du Jour”. Baker representava, de certa forma, um cruzamento de correntes artísticas, para além das suas raízes afroamericanas. Com a emergência da Art Déco e das inspirações vindas de África para a criação artística, a performer criou um autêntico estilo próprio, também referência na futura criação de moda, para além de começar a fazer-se acompanhar por uma chita, o seu animal de estimação, de nome Chiquita. A sua fama alcançaria os círculos de artistas, desde pintores a escritores, desde Picasso a Hemingway. No ano de 1929, Baker expande (ainda mais) horizontes e viaja no Expresso do Oriente até várias capitais europeias, desde Zagreb a Belgrado, na então Jugoslávia. Viveu algumas histórias de paixão, cruzando caminhos com vários condes e “condes”, que passavam por ser nobres para se aproximar da artista.
Na emergência do cinema silencioso, a virar para os anos 1930, Baker foi convidada a fazer parte de alguns deles, como “La Sirène des Tropiques” (1927, onde a sua agilidade foi muito mais do que uma voz, num filme com temas coloniais, com a artista a representar uma indígena), “Zouzou” (1934, onde representa o papel de uma orfã) e “Prinsesse Tam-Tam” (1935, em que faz de tunisina, tunisina essa que se enquadra e que se educa na alta sociedade parisiense). Com isto, tornar-se-ia na primeira protagonista afroamericana do cinema e o seu prestígio até a conduziu à ópera, onde emprestou o rosto e o vulto à protagonista de “La Créole”, trabalho do compositor Jacques Offenbach. Por força deste convite, trabalhou a sua voz de tal forma que deixou de se confinar na reputação carnal e corporal e conseguiu ampliar o seu leque de competências artísticas. Foi um prestígio que não conheceu eco — pelo menos naquele tempo — no seu país de nascença, nos Estados Unidos. As críticas que de lá vinham e que a identificavam como uma negra franzina cuja dança poderia ser superada onde quer que fosse fora de Paris levaram Baker a abdicar da cidadania norte-americana e a assumir a francesa.
A artista casar-se-ia por uma terceira vez, desta feita com um industrial, Jean Lion. Foi uma fase em que eclodiu a Segunda Guerra Mundial e na qual seria contactada pela agência de inteligência militar francesa, o Deuxième Bureau, com o objetivo de obter o máximo de informações possíveis sobre os alemães que frequentavam os seus eventos, mas também outros que dava em embaixadas e em ministérios. A sua fama era um salvo-conduto nestes contextos todos, criando relações de confiança com militares das mais altas patentes, das mais distintas proveniências. Aquando da invasão, contudo, Baker teve de sair de Paris e de se mudar para um castelo no sul de França, o Château des Milandes. Por ser tão amplo, foi capaz de acolher vários dos dissidentes e de lhes dar vistos, ou para fugirem para países neutros, ou para movimentações estratégicas. Nas suas pautas, comumente arranjava espaço para informação codificada contra os alemães, fornecendo-a aos ingleses e aos franceses da Resistência. Porém, Baker voltaria a mudar-se, agora para o norte de África, então preenchido por colónias francesas. Alegando um problema de saúde, encontrou, em Marrocos, um país com ligação a Espanha, que lhe possibilitou mais partilha de informação para os serviços de inteligência aliados. De igual modo, continuou a exercer a sua profissão, entretendo os soldados que lá se tinham refugiado.
Sem cessar este apoio crucial até ao fim da guerra, seria galardoada com a Croix de Guèrre e com a Médaille de la Résistance pelos seus serviços. De igual modo, tornar-se-ia cavaleira da Légion d’honneur, não se inibindo de usar o uniforme de oficial francês em várias fotografias. Casar-se-ia, de igual modo, pela última vez, agora com o compositor Jo Bouillon. Baker regressaria aos palcos com um estatuto quase intocável, unindo o seu esplendor artístico à bravura e ao serviço pelo país que a acolheu. Foi encarada, assim, com olhos menos lascivos e mais de admiração, tanto que lhe valeram um regresso aos Estados Unidos pela porta grande. Aqui, privou de perto com a National Association for the Advancement of Coloured People (NAACP), que a enquadraram no emergente movimento a favor dos direitos civis das comunidades afroamericanas. Tanto que a sua crescente contestação em torno da discriminação que foi sentido em alguns dos eventos que lá protagonizou lhe valeriam o rótulo de comunista e o cancelamento do seu visto, voltando a França. Não obstante, os convites para a receberem eram bem dispersos, desde Cuba a Macedónia, para além do célebre London Palladium, entre celebrações políticas a eventos de caridade.
Com isto, era, cada vez mais, uma ativista, discursando sobre questões raciais e recusando atuar em palcos cuja assistência era segregada. De igual modo, foi acudida por Grace Kelly num nightclub de Manhattan no ano de 1951, quando lhe recusaram servir, formando-se uma amizade sólida entre ambas, já que a atriz lhe apoiaria financeiramente numa fase menos positiva das contas de Baker. Baker, que estaria na marcha de Washington, em 1963, ao lado de Martin Luther King Jr., e que se tornou na única mulher que, oficialmente, assumiu o palanque e discursou, com o uniforme da Resistência Francesa e a medalha da Légion d’honneur em uso. Por norma, colocava os pruridos de lado e não media o alcance e o tamanho das palavras, tornando-se num discurso com um impacto verdadeiramente universal, sem deixar nada por dizer. Depois da morte de King, chegaria a ser convidado pela viúva deste para liderar o movimento, algo que Baker, sem deixar de considerar por algum tempo, recusou, não querendo privar-se da educação dos seus filhos, então bem novos.
É, também, na maternidade que a artista reluz, tendo adotado mais de dez crianças e criado aquela que apelidou de “Tribo Arco-Íris”. Adotou crianças de várias proveniências, com diferentes educações básicas, procurando alimentar o sentido de irmandade no seio da diversidade, e criou-as no castelo em que vivia (agora musealizado e possível de ser visitado, contendo grande parte dos objetos da sua vida e obra), entre as quais crianças da Finlândia, da Costa do Marfim, de França, da Coreia, de Marrocos, de Venezuela, do Japão e da Argélia. Seriam algumas delas, nomeadamente Jean-Claude e Jarry, que ajudariam na frutificação do restaurante-clube Chez Josephine, que homenageia a artista em Nova Iorque. No período final da sua vida, numa fase bem amadurecida, subiu a palcos, como o Olympia, em Paris, e o Carneggie Hall, em Nova Iorque, sendo, ainda, reconhecida pela mais alta elite da sociedade parisiense e monegasca, onde estava a sua amiga Grace Kelly, mas também pelos mais radicais artistas, que criavam “sururu” nesse tempo, como os Rolling Stones, na música, ou Liza Minnelli na interpretação. Em 1975, viria a sofrer uma hemorragia cerebral que seria fatal, acabando por receber um funeral católico – tinha-se convertido pouco anos antes — e sendo sepultada no cemitério do Mónaco. Tantos anos depois, em 2021, o reconhecimento do seu alcance artístico e cívico levou-a à trasladação para o Panthéon de Paris, onde se encontram as mais altas vedetas que viveram e criaram em Paris, como Alexandre Dumas, Émile Zola, Marie e Pierre Curie, René Descartes, Victor Hugo e Voltaire. A sexta mulher, mas a primeira de etnia negra.
Josephine Baker continua, ainda hoje, a ser amplamente homenageada e representada, seja em palcos, no cinema, na música, na literatura e nas artes visuais. Por entre as diversas nomeações para Walks of Fame, tornou-se numa referência intergeracional na apresentação visual e artística em cima de um palco, que se tornou plataforma para outros tantos lugares de criação. Unindo raças, religiões e nações, Baker fez uso de um pecúlio artístico que, inicialmente físico e ágil, se foi tornando musical e até etéreo, com prestações de movimento e de voz que começavam a elevar-se para lá das sensações mundanas. Talvez sem ela não houvesse R&B como o conhecemos hoje, munido de visuais tão arriscados e estonteantes. Talvez sem ela não houvesse uma maior africanização da música e da arte como um todo como a conhecemos hoje, ficando remetida aos seus padrões ocidentais. Certo era que, sem ela, a sociedade não seria tão rica, tão plural, tão vibrante. Foi, é e será a dança da sua imortalidade.