A duvidosa moral de “Viver”, de Yu Hua
Enquanto algumas literaturas mais distantes, como a japonesa, proliferam pelos mais diversos meios literários, a literatura chinesa contemporânea continua francamente inacessível ao público português. Contudo, esforços vão sendo tomados, e há um par de anos que a Relógio d’Água vem trabalhando para reverter essa situação com a publicação das obras de Yu Hua (traduzidas do Mandarim por Tiago Nabais), um dos mais consagrados escritores chineses da actualidade.
Depois de Crónica de um Vendedor de Sangue e China em Dez Palavras, chega a vez de Viver, a primeira de entre as ficções do autor, originalmente publicada em 1993. Decorrendo entre os anos 40 e 80 do século passado, Viver leva-nos pela jornada de um homem, Fugui, desde o cume da sua arrogância afluente ao sopé da sua humildade pobre; desde que, filho de um abastado latifundiário (que, literalmente, viaja nos ombros dos desfavorecidos), perde todo o dinheiro da sua família no jogo, até, nunca recuperando a sua fortuna, se tornar no humilde camponês, acompanhado de um velho boi, que o narrador deste livro encontra.
É um dispositivo bastante simples, portanto, aquele que dá o mote para o arrancar desta história: um encontro entre o narrador do livro, que deambula pelas aldeias chinesas buscando canções e folclore, e Fugui, que, no âmbito dessa busca, lhe conta a sua história de vida.
Ora, a história pessoal de Fugui, como é de calcular, está obviamente intrincada com a própria história da China e do seu atribulado século XX. Eventos históricos relacionados com a Revolução Chinesa vão não só alterando a natureza da sociedade que o rodeia, como afectando o seu caminho: primeiro como soldado (não-voluntário) na Guerra Civil Chinesa, do lado anti-revolucionário, mais tarde como parte integrante das diversas tentativas e instâncias de cooperatividade na aldeia onde reside com a sua família.
Mas, ainda que fale sobre a China, o foco da história nunca deixa de ser Fugui e a sua vida. Do personagem francamente caricatural que marca o período anterior à perda da fortuna – um tipo sem escrúpulos que não tem qualquer consideração por ninguém, incluindo pela sua mulher, que agride quando esta lhe pede que não jogue mais, por exemplo – praticamente nada fica, após as contrariedades o levarem para o caminho da humildade.
E se a queda de Fugui é necessária para servir os propósitos da narrativa, não deixa por isso de ser francamente linear e previsível, um arquétipo de história de boa moral que premeia um malvado homem rico com a pobreza, para que este, assim, se possa finalmente tornar bom. Só devido à queda foi Fugui capaz de encontrar amor pela vida. Só a pobreza lhe retirou o foco da ganância e da maldade para lho colocar na bondade, na empatia e no amor.
Fora mote da família de Fugui o tipo de “sabedoria chinesa” a que estamos habituados no ocidente:
“Antes, os nossos antepassados da família Xu tinham apenas algumas galinhas. Alimentaram-nas bem e, quando cresceram, as galinhas transformaram-se em gansos. Quando cresceram, os gansos transformaram-se em cabras. E, quando estas cabras ficaram grandes, transformaram-se em vacas.”
Mas é bem mais fácil descer de vaca para galinha que subir de galinha para vaca, e, só no fim da vida, Fugui é capaz de dar valor a um boi, mesmo um boi velho, como ele. Este homem, que inicialmente tratava os outros humanos como animais, acaba precisamente a identificar-se com o sofrimento e a angústia de um animal, ao ponto de dar a um boi o mesmo nome que o seu.
Mas a vida que lhe trouxe essa humildade e essa ânsia de viver é a mesma que lhe traz a desgraça, a morte e a solidão. Jiazhen, a sua mulher, vê-se a braços com uma doença que a deixa incapaz; Fengxia, a sua filha, fica surda-muda após uma febre; e Youqing, o seu filho, cai vítima de um Estado que, afirmando a igualdade de todos, dá mais valor à vida de uns que de outros. Na sua família passa-se fome, na altura da Grande Fome Chinesa, e trabalha-se de sol a sol, mas, precisamente no meio dessas contrariedades, Fugui nunca desiste de viver, determinado a, tal como o boi a quem chama Fugui, aproveitar aquilo que a vida lhe dá.
Yu Hua parece ser da crença que a impotência marca a nossa vida, que nada podemos fazer para alterar as grandes questões do mundo e dos nossos tempos. No fundo, apenas a resignação à nossa condição e aos prazeres mais simples da vida parecem ser apresentadas como o caminho para a vida. E enquanto arquétipo do camponês resignado à sua simples vida, Fugui pode ser um exemplo para que demos valor ao que temos. Mas será isso suficiente, num mundo onde cada vez mais fazem por nos tirar aquilo que outrora tomáramos como garantido? Devemos resignar-nos a isso?