A importância de Tolentino Mendonça e de Cristo. E não, não sou católico
José Tolentino de Mendonça será o responsável por presidir as comemorações do 10 de junho de 2020. É necessário. Não me professo um católico, muito menos praticante — embora já tivesse sido — e longe estou de me rever na sua conduta. No entanto, está ali uma luz, uma luz que continua muito ofuscada perante, de um lado, os discursos monocórdicos e impercetíveis de quem tem poder nas matérias do quotidiano; e, por outro, as vozes de um humor mastigado e rotinado, sustentado em opiniões e ideologias que já há muito conhecemos e ouvimos nos debates da “especialidade”. É a especialidade que se diz do comentário político ou de outros palpites que se soltam, no poder que um fato ou uma camisa assumem em frente às câmaras, com transmissão integral por todo o país e arredores. Uma especialidade que, por mais que se ouça, parece que não chega. Falta alguma coisa mais.
Estou longe de assentir a muitos dos excessos da Igreja Católica. José Tolentino de Mendonça faz parte dessa Igreja Católica, na condição de arcebispo, de arquivista dos Arquivos Secretos do Vaticano e de bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana. Aqueles que deveriam funcionar como uma referência moral num panorama social prestam-nos casos ininterruptos de corrupção da sua integridade e dessa moralidade. Podem-se pôr em causa os excessos, os luxos, as extravagâncias e até as prevaricações. No entanto, há algo para lá disso. No seu âmago, está o cristianismo, com as suas valências e as suas fragilidades, como em qualquer filosofia que a vida possa apresentar e que qualquer um possa seguir. É nessas valências que estão princípios importantes e até urgentes, que têm caído no esquecimento dos cidadãos, daqueles que ouvem e que se procuram rever numa voz que faça algum confronto aos órgãos de poder.
Tolentino de Mendonça, para quem lê a revista do Expresso, reflete habitualmente sobre a nossa sociedade. Não reflete, contudo, com o uso da crítica ou a recorrência a esta ou aquela personagem para “expiar” as suas frustrações. Do que se lê, parece não existir nenhuma. Não quero, com isto, divinizá-lo, mas sim admirar o seu contributo para a sociedade civil. É um cidadão, um ser humano e português, três caraterísticas comuns a todos aqueles que procuram ouvir os que, com uma voz mais ativa e reconhecida, se expressam sobre o estado das coisas. No entanto, é na sua cristandade que reside uma certa aura que parece nublada nos dias que correm. Quem é que quer saber da caridade genuína atualmente? Dos valores da temperança, da justiça e da esperança senão para o proveito próprio? São valores inerentes ao cristianismo (e a outras religiões, é certo) mas que caíram no esquecimento de quem tem de ocupar as suas quarenta horas de trabalho semanais a trazer o pão para a mesa. O lazer procura deslocar-se dessa realidade e distanciar-se o máximo possível do dia-a-dia. É justificável e dá a parecer que não poderá ser de outra forma.
A fé é algo que se tem perdido. É sempre depositada em algo muito abstrato, em algo que se assume como a salvação, habitualmente personificada em Deus ou em alguém que se tenta equivaler a este. A fé é algo que deve, sim, ser canalizada para a humanidade, e é nisso que o cristianismo contribui com uma valiosa bagagem moral e até metafórica, que leva a transcender a interpretação palpável da realidade. Isto em busca de valores primordiais na forma de ser e de estar na vida, de melhorar a sociedade e não de a alienar. O contributo que Tolentino de Mendonça pode trazer é, a partir deste seu lirismo consubstanciado ao Pai (quem se lembra do Credo?), abrir as portas para que a religião assuma um papel construtivo em cada um, podendo iluminar algum interruptor que esteja desencantado ou até mesmo de costas voltadas com qualquer janela que possa ser apresentada pela religião.
Há aqui uma janela de oportunidade que não se prende com a evangelização, mas sim com a tomada de consciência para o que é fundamental. Para uma dimensão de valores que está inerente à palavra e a alguma da ação realizada em prol dessa cristandade. São valores, são princípios fulcrais para que, antes de se exigir à sociedade como um todo e com a política, que se exija a cada um. Trazer a religião para o dia-a-dia é trazer algo mais, ao qual não estamos habituados porque o pedestal, por norma, está em nós. É difícil aceitar que possa existir algo superior, que transcenda ao que é material e ao que se possa possuir, que possa ser palpável. Como tal, o ceticismo cerra-se a que se possa importar o melhor que esta dimensão tem para oferecer. Não que, sem a religião, não se possa ser sensível ou sentimental. No entanto, é um acréscimo, é um complemento a que uma perspetiva sobre o mundo possa evoluir e se possa tornar numa mundividência, isto é, numa visão articulada e fundamentada sobre aquilo que o mundo deu, vem dando e pode vir a dar.
Trata-se, enfim, de poder aproveitar o que o catolicismo não estragou durante os últimos séculos. Não aproveitar a fragilidade para proveitos obscuros e individualistas, que em muito lesaram e radicalizaram tantas formas de ver e de sentir o mundo. O cristianismo procura, em algumas das suas interpretações mais essenciais, buscar esse carinho pelo próximo, essa compaixão e essa crença numa superação perante o irremediável e perante o mais pérfido em que a humanidade se possa tornar. Abre o caminho da esperança, o caminho da luz a um entendimento mais vasto, mas, ao mesmo tempo, mais íntegro de quem somos e do que podemos esperar de nós em função do aclamado bem comum. Pois é disso que se trata quando se falar de política, que deve zelar por esses princípios basilares de uma sociedade equilibrada, justa e sadia. Depois do repto lançado para que houvesse alguma coisa em que acreditar, está aí a resposta: na potencialidade que, em nome da luz ou de uma outra coisa qualquer ligada ao bem, se possa ir mais além.