A importância social de Allen Halloween, ou como pescar homens através do rap

por André Gamito,    10 Fevereiro, 2023
A importância social de Allen Halloween, ou como pescar homens através do rap
Allen Halloween / DR
PUB

Pelo que indica o post de despedida de Allen Halloween (ler entrevista), o rapper retirou-se de vez da música por não conseguir servir a dois senhores. Um dos senhores é a música, e, o outro, o próprio Deus. O intuito de servir a Deus seria o de pescar homens, a forma conhecida de evangelizar, que seria, supostamente, fora da música. Ainda assim, que tem feito, então, Halloween, dentro dela?

“Há muita mentira no rap. Pessoal que vende uma imagem que não corresponde à realidade”

Disse Allen Halloween em entrevista à Comunidade Cultura e Arte em 2018

Por toda a discografia do rapper, que fala da vida de um “bandido”, há um aviso predominante dos perigos que escolher este caminho acarreta. Se separarmos alguns tipos de música entre vita ativa e vita contemplativa, já que estamos num contexto religioso, Halloween entra na personagem ativa do bandido, com mentalidade determinada, que ambiciona ser o melhor do jogo, quase com um manual de instruções de como sobreviver nas ruas, mas nunca perde o compasso moral. Mesmo sabendo como estar dentro do jogo da venda e dando conselhos para fugir da “thug life” o mais rápido possível, parte do narrador tem uma espécie de dedicação ao ofício de bandido, desenvolvida por necessidade, e este é retratado psicologicamente.

A personagem da vida ativa tem sabedoria de rua, sabe as dinâmicas e perigos da vida do crime, e além de ter algum brio no que faz, diz sempre a si próprio e aos outros que aquela vida não o levará a nenhum lado. É apenas algo temporário. Na vita contemplativa, há a personagem da reflexão sobre a vida de bandido. O sábio, o “bandido velho” que fala daquilo que o persegue e do que foge. O bandido, que sabe o que aquele tipo de vida tem para oferecer, reflete acerca do caminho dos bandidos que foram apanhados. Prisão, decadência, perda do amor, e uma vida manchada que cria um círculo vicioso.

O bandido é atirado para uma vida que não escolheu, não tem nada a perder, e por isso tenta a sua sorte. Se correr mal, que é o mais provável, vai para a cadeia, perde tudo, e quando volta não se adapta ao mundo, e por isso, volta ao que sempre fez e ao que conhece, e tudo se repete. Mas ainda que corra bem, o que é quase impossível, ser o verdadeiro bandido, o que transcendeu a “carne para canhão”, não permite também uma vida feliz, porque “dinheiro que destrói vidas” não dá felicidade real. Mais tarde ou mais cedo será apanhado, e a punição será ainda mais grave. Não há como singrar na vida do crime. A solução está em seguir Jesus e tornar-se num homem moralmente correto, o que passa por uma redenção pelos males causados no passado.

No Projeto Mary Witch começa o caminho de redenção psicológica, o caminho da moralidade. Na Árvore Kriminal, Halloween está cada vez mais perto de Deus, mas ainda com algumas desavenças (“Deus abandonou-me, Deus já não me ouve mais/ Mas não é tarde, um dia a gente faz as pazes”). Em Híbrido, Halloween caminha diante de Deus, e dá-Lhe graças por ainda estar vivo. Agradece a Jesus por o amar, mas ainda tem a missão de mudar o mundo à sua volta, o de pescar homens, como um bom cristão. Enquanto que muitas canções dos primeiros álbuns parecem salmos do rei David a falar dos seus inimigos (“my enemies” para Halloween), e outros parecem profetizações do apocalipse, no último álbum, Híbrido, o Bandido Velho é já quase o sermão do pastor. “Ninguém ouve, ninguém ouve, irmão”, quase como o Sermão de Santo António aos Peixes.

Halloween pregou ao longo de anos a sua mensagem para tirar os “putos” da má vida, mas eles não querem saber. A personagem da música já tem um filho que parece ir pelo mesmo caminho. O bandido velho vê todos cometerem os mesmos erros e nada muda. Surge agora um novo problema. Já que a própria vida está encaminhada, resta resgatar as próximas gerações da vida de crime. E onde está a resposta? Na moralidade por via divina. Deus é o caminho para a vida decente e para sair das ruas. E como se sai das ruas? Todos os álbuns nos dizem aos poucos o que fazer, mas, intencionalmente, ou não, o último álbum parece o que mais nos pode instruir sobre o caminho de redenção. 

Podemos usar exemplos do álbum Híbrido, como a canção Youth, que se foca na despedida da vida passada de bandido e a procura de um novo caminho, o que requer cortar com relações antigas e pedir a compreensão de quem deixamos sem julgamento da parte deles. Da importância de abdicar do ódio e substituí-lo por amor. Zé Maluco é a disciplina e a abstenção de não continuar no jogo da rua, de não ir até ao fim, e deixar o pó branco em paz pelo aviso do homem de barbas brancas. Em vez de tomar o último passo na vida de bandido, está na altura de realizar de facto a redenção e deixar a bandidice. Tudo o que havia para ver, Halloween já viu.

Jesus Loves Me parece aludir a uma espécie de intervenção divina: foi feito um assalto sem Halloween, e os assaltantes foram apanhados. Seguir Jesus Cristo foi o que evitou que a personagem fosse parar à prisão e todas as consequências pesadas e as vidas destruídas. Marmita Boy fala da transição da vida de bandido para um cidadão comum e que tem um emprego de pessoa “normal”. Um cidadão que já não anda a roubar, e em vez de estar exposto às vicissitudes do crime, está agora às dos autocarros cheios, do julgamento alheio dos que o olham sabendo de onde vem, mas, acima de tudo, da disciplina de continuar no “caminho da virtude”. Agora que há outro caminho na vida, com novas dificuldades, o personagem considera voltar para a vida de bandido. Vê “o gang a rolar”, e o mundo que ele conhece, com todas as suas dificuldades, são dificuldades conhecidas para ele, e o caminho fácil é o de bandido (“É mais fácil viver a thug life”).

“Não só a obra é importante para uma função moral nas ruas onde andam jovens sem rumo, esta devia ser prioritária para aqueles que ignoram as consequências da segregação social e os impactos indiretos que têm na vida de toda a gente, porque todos somos incluídos no álbum de Halloween (“O Doutor dorme descansado com a sua família, até acordar e encontrar-me na sua cozinha”), e esta indiferença divide a sociedade, o que acaba por gerar um conflito de classes.”

Resta resistir à tentação e manter o caminho batalhado por tantos anos para sair da vida de rua e valorizar os esforços da família sem desculpas e assumir responsabilidades. Bairro Black é a denúncia de grandes instituições, num registo um pouco ativista, que mostra como a narrativa é manipulada pelos que criam a opinião pública. A mudança do nosso ambiente e a denúncia da injustiça é essencial à mudança pessoal e à contribuição para a nossa comunidade. O Rei da Ala aborda um tema já explorado no primeiro álbum, em Procurar: “Antes de morrer, Jesus Cristo perdoou um kriminal, e ele foi para um lugar onde Gs descansam em paz.”: com a crença em Deus, é apenas natural questionar se um “G” pode entrar no paraíso ou se está condenado ao inferno.

Por último, Livre-Arbítrio, que dá o título ao livro de poemas do cantor, parece ser o mais importante conceito na ideia que tem sido desenvolvida ao longo do percurso de redenção, que é o da responsabilidade pessoal, ou o da decisão moral, ideia bastante enfatizada na Bíblia Sagrada, e implícita à mudança espiritual, a cumprir os mandamentos e a ser um homem de Deus: porque a decisão de fazer o certo ou o errado decide o que é ou não pecado e, em última instância, as nossas ações são o que nos define enquanto pessoas e o caminho que nos é reservado depois da morte dentro do contexto religioso. Num ambiente de tantas más influências, em que crianças são criadas “na lei da rua, sem pai nem mãe” não há uma bússola moral, há apenas a necessidade de sobreviver. Jesus Cristo é o guia, o caminho da salvação e moralidade, e a responsabilidade pessoal é o passo final para deixar a vida de bandido. Consoante as instruções e sabedoria bíblicas, há agora a possibilidade de escolha, porque uma alternativa moral existe.

Com isto, toda esta epopeia de redenção baseada no pensamento cristão parece uma forma bastante eficiente de pescar homens. Se o narrador das canções de Halloween cresceu sem uma bússola e foi atirado para a vida que viveu, certamente o rapper será o guia de gerações vindouras que crescem no mesmo meio. As músicas de Halloween funcionam como uma tragédia que inculca medo à audiência e também a catarse, e basta uma pequena viagem pelos comentários em diferentes plataformas online para ter noção da quantidade de pessoas que agradecem os conselhos do rapper e de como estes ajudaram muita gente a sair da vida que levavam e a encontrar um caminho mais moral. Allen Halloween tem “pescado” muita gente através das suas canções, e esse seria um papel fundamental enquanto artista e um exemplo a seguir. “Queres seguir um homem, segue Jesus Christ, puto, não me sigas a mim”: por mais que o autor não o queira, muita gente o seguirá, mas este pode, indiretamente, levar a audiência até Jesus Cristo. 

A obra vive na mesma depois de o seu criador se aposentar, com uma função social importante no contexto em que cresceu, e além disso, seria de conhecimento obrigatório para entender a mentalidade de quem ainda cresce em certas condições sociais e se vê obrigado a sobreviver. Não só a obra é importante para uma função moral nas ruas onde andam jovens sem rumo, esta devia ser prioritária para aqueles que ignoram as consequências da segregação social e os impactos indiretos que têm na vida de toda a gente, porque todos somos incluídos no álbum de Halloween (“O Doutor dorme descansado com a sua família, até acordar e encontrar-me na sua cozinha”), e esta indiferença divide a sociedade, o que acaba por gerar um conflito de classes.

Independentemente do estrato social, a obra de Halloween é importante para entender um mundo que tem sido alvo de preconceito, e para criar pontes que permitam um melhor entendimento no que toca à divisão social e como lidar com certos problemas retratados nas músicas do autor. Esta obra muda mentalidades de todas as pessoas porque humaniza o “bandido” que é julgado mas não entendido, e percebemos então de onde realmente ele vem, do que está rodeado, e o que fez dele aquela pessoa, que experiências o moldaram. Indiretamente, a pesca dos homens no rap é feita num mar cheio de cardumes de todas as espécies, e de peixes solitários, oriundos de todos os estratos sociais, e ainda que esta pesca não leve os ouvintes a Jesus, leva-os até a uma obra de arte com uma das mensagens mais importantes na música portuguesa e capaz de mudar mentalidades para o melhor.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.