A legítima causa da independência da Catalunha
No dia 30 de julho, acordei em Réus, cidade da Catalunha, que uns dizem ser a terra natal do arquiteto Antoni Gaudí. Com os dias anteriores passados em Barcelona – onde, janela sim, janela não, pendia um laço amarelo ou uma bandeira com a frase ‘llibertat presos politics’ -, foi ali, em Réus, que senti o verdadeiro peso desses símbolos. Enquanto bebia o típico vermute e o fim daquela manhã de verão se avizinhava, irrompeu, pela praça, um grupo de idosos com bandeiras catalãs, cartazes com a mesma mensagem de liberdade e acessórios amarelos, quaisquer que fossem, desde o boné ao lenço do pescoço. Eram cerca de 30 e, após terem dado uma volta à praça, posicionaram-se em fila, exigindo, em coro, a liberdade dos independentistas. Era dia 30 de julho, mas podia ser qualquer outro. Como a minha amiga, natural da cidade, me explicou, todas as manhãs, sempre à mesma hora, aquele grupo de pessoas tinha encontro marcado naquela praça; todos os dias, os abuelos ocupavam a rua para, por uns minutos, reivindicar, lembrar, alertar, num dos apelos mais sinceros à democracia.
A partir do dia 1 de outubro de 2017, data da realização do referendo, a questão da independência da Catalunha, que nos colocava a discutir o direito à autodeterminação dos povos por oposição à inconstitucionalidade que tal ato implicaria, obrigou-nos a discutir algo bem mais estrutural – a democracia e os princípios básicos onde esta assenta. A partir de 1 de outubro de 2017, a questão da independência deixou de ser “a questão” porque Rajoy, ao empurrar a sua solução para a justiça, proibiu-a. A argumentação deixou de ser em torno da viabilidade ou inviabilidade de uma Catalunha independente, para passar a ser sobre a legitimidade de um regime democrático com presos políticos. Foi como se, de repente, se tivesse retrocedido no tempo e no debate.
Desdobrando o meu argumento anterior, é a democracia que permite que um povo seja livre para reclamar a sua independência. Neste caso em particular, foi a democracia que permitiu, em 2015, a existência de eleições livres e justas que levaram à vitória da coligação independentista “Juntos Pelo Sim” e que, consequentemente, permitiu que a vontade do povo catalão tivesse representação governamental. Em 2017, a repressão policial a que assistimos no referendo e a posterior determinação de prisão para os líderes independentistas envolvidos na sua realização demonstrou-nos que a luta dos catalães voltou a ser pela democracia, pela liberdade que lhes permite escolher se querem, ou não, pertencer a Espanha, pelo direito a ser-lhes apresentada uma resposta à sua reivindicação, seja ela contra ou a favor das suas vontades.
A manifestação, que falava no início desta crónica, é a prova disso mesmo. Os abuelos “perderam” a manhã de 30 de julho, como as anteriores e as que se seguiram, a gritar pela liberdade dos políticos, os mesmos que eles elegeram, e não pela independência da Catalunha. Atrás deles, penduradas nas varandas das casas, estavam bandeiras da Catalunha e não bandeiras da Catalunha independente (estas últimas distinguem-se das primeiras por terem uma estrela).
Dir-me-ão que, não obstante, estas pessoas, tal como as que nesta última semana se têm juntado aos protestos contra as penas de prisão dos independentistas, são, elas próprias, defensoras de uma Catalunha independente. É bem provável que assim seja mas, desta forma, regresso ao meu argumento: se os meios – desde o uso do referendo à representação institucional -, que permitem a uma sociedade lutar por uma vontade que, praticável ou impraticável neste caso em concreto, todos reconhecemos como legítima (autodeterminação), lhe são negados, a luta principal deixa de ser essa vontade, para passar a ser o retorno ao acesso a essas mesmos meios.
A resposta a esta reivindicação legítima faz-se por via do diálogo, não da repressão. Enquanto assim for e enquanto a questão da independência da Catalunha estiver proibida, não podemos esperar que as pessoas deixem a rua. E, eu própria, espero que não o façam.