A vida de George Steiner, um dos mais conhecidos e conhecedores críticos literários do século XX

por Lucas Brandão,    26 Novembro, 2019
A vida de George Steiner, um dos mais conhecidos e conhecedores críticos literários do século XX
George Steiner / Ilustração de Marta Nunes – CCA (@martanunesilustra)

George Steiner permanece como um dos mais conhecidos e conhecedores críticos literários do século XX e, também, do próprio século XXI. No entanto, o seu trabalho não se limita à crítica, mas também ao próprio estudo da sociedade e da literatura com as ferramentas que as suas leituras lhe proporcionaram. Conhecedor de vários idiomas, tornou-se responsável por popularizar diferentes autores em diferentes lugares, contribuindo para um conhecimento mais global, sustentado nas suas palestras e nos seus ensaios científicos. Deu aulas em Génova, em Oxford e em Harvard, tendo “estacionado” em Cambridge, onde, há mais de cinquenta anos, se tornou membro extraordinário do Churchill College, na universidade da cidade. Casado com Zara Steiner, também ela autora e historiadora, cresceu e viveu sempre em torno da intelectualidade.

Francis George Steiner nasceu em Paris a 23 de abril de 1929 no seio de uma família judaica, originária de Viena, que havia migrado de lá para França numa fase em que o nazismo se tornava numa ameaça ao seu bem-estar. A sua mãe foi a responsável por ensinar três idiomas a George: o alemão, o inglês e o francês; mesmo com o intuito de se poder desenvencilhar em qualquer lugar. Do lado do pai, aprendeu o grego original, com o qual pôde começar a ler os ditos “clássicos” da literatura. Mal entrou no liceu em Paris, a família viu-se forçada a emigrar de novo, desta feita para o outro lado do Atlântico, mais precisamente para Nova Iorque. Corria o ano de 1940 e os nazis tinham ocupado Paris. Dos alunos de origem judaica da sua turma, só George e outra criança sobreviveriam ao conflito. O Holocausto seria um tema ao qual voltaria mais tarde na sua carreira, nomeadamente através da literatura.

George Steiner continuou a sua formação na Universidade de Chicago, onde estudou literatura, mas também matemática e física. Em 1950, dois anos depois de concluir o bacharelato, tornar-se-ia mestre em Harvard e terminaria com o doutoramento em Oxford, com a tese “A Morte da Tragédia”, que seria editada em livro anos depois. Enquanto fazia o doutoramento, colaborou com o jornal “The Economist” alguns anos, numa fase em que conheceria a sua esposa, Zara Shakow, uma novaiorquina com ascendência lituana. Apesar de ambos terem estudado em Harvard, só se conheceriam em Londres. Regressariam juntos à América, mas o périplo pelo mundo de Steiner só estava a começar então. Foi de Princeton para a Áustria dar aulas, voltando para a primeira com a mesma função. Voltaria a Inglaterra para ajudar a fundar o Churchill College, em Cambridge, no ano de 1961. Apesar de não muito bem acolhido, acabaria por ser eleito em 1969 como membro extraordinário. Daí, e de várias viagens feitas entre Inglaterra e Estados Unidos, em paralelo com uma carreira de palestrante e de escritor, aceitou lecionar Literatura Comparada e Inglesa em Génova no ano de 1974, dando aulas em quatro línguas lá durante vinte anos. A sua reputação firmava-se, assim, como um consolidado professor académico e como um membro notável da academia europeia. Tal perceber-se-ia quando foi nomeado professor emérito em Génova, mas também membro honorário do Balliol College, de Oxford.

A carreira académica fomentava-o a redigir ensaios e, nessa sequência, a efetuar críticas literárias – mais de duzentas foram aquelas que escreveu para o “The New Yorker”. A Universidade de Chicago foi a mais beneficiada, assim como os jornais “The Times” e “The Guardian”. Destas críticas, ressalve-se “Nenhuma Paixão Desperdiçada” (1996), onde se debruça sobre vários temas, como a filosofia de Kierkegaard, a teoria onírica de Freud, a literatura de Homero e a própria Bíblia. O seu discurso nas críticas denotava um apetite pela descoberta e por um pensamento abrangente e internacional, sem as restrições impostas pelos países ou pelos continentes. Considerava igualmente importante deter conhecimento de causa das artes e humanidades e das ciências, achando que ambas tinham o seu papel na formação de um discurso humanista, em muito influenciado pelo flagelo do Holocausto. Aliás, uma das críticas apontadas, tanto nas críticas, como na própria atividade académica, foi este ênfase exacerbado de Steiner em relação ao Holocausto, não cansando de o mencionar e de o expor. Nesta mais de meio século, procurou, através do que escrevia, denunciar as anomalias da cultura ocidental e da própria linguagem daqueles que a construíam. Obras que se destacam do seu percurso de literatura comparada são “Tolstoy ou Dostoievski” (1960), em que coloca o ideário destes dois autores e a sua literatura em confronto, a sua tese de doutoramento “A Morte da Tragédia” (1961), traçando um percurso desde as tragédias gregas até às que se fizeram até meados do século XX.

Arte, música e literatura significativas não são novas, como são, como se esforçam por ser, as notícias dadas pelo jornalismo. A originalidade é antitética à novidade. A etimologia da palavra alerta-nos. Fala de «início» e de «instauração» de um regresso, em substância e em forma, ao início. Directamente relacionadas com a sua originalidade e com a sua força de inovação espiritual-formal, as invenções estéticas são «arcaicas». Trazem em si o pulsar de uma fonte distante.

Presenças Reais (1991)

Nesta fase, seria autor de “Depois de Babel” (1975), em que colocava em comparação o desentendimento que Deus viria a provocar entre aqueles que construíam a torre de Babel para chegar ao céu (neste episódio bíblico, Deus condena-os ao colocá-los a falar idiomas distintos e impercetíveis entre si) e a existência de várias linguagens. Aqui, o professor tenta discutir minuciosamente a importância de uma boa tradução – e de como fazê-la – para colocar em relação saudável e integral as diferentes culturas e suas formas de comunicação. Steiner redigiria, também, alguma ficção, em especial pequenas histórias, lançando-as em pequenas coleções como “Anno Domini” (1964), “Provas e Três Parábolas (1992) ou “As Profundezas do Oceano” (1996). Controverso, no entanto, seria o livro “O Transporte para San Cristóbal de A.H.” (1981). O professor voltava à temática do nazismo e colocava a figura de Adolf Hitler (A.H.) vivo na Amazónia e encontrado por caçadores judeus de nazis. Passavam trinta anos depois da Segunda Guerra Mundial e Hitler seria levado a tribunal, após ser capturado. Aquilo que geraria polémica seria o suposto discurso dele, em que alegava que Israel devia a ele a sua existência e que era um verdadeiro “benfeitor” dos judeus. O fascínio de Steiner pelas valências do discurso humano e da sua expressão das relações de poder ajudaram-no a compor esta obra, assim como a intenção de perpassar por uma análise moral da história, colocando o próprio terror em discurso direto.

Esta obra só pôde ser concretizada após a escrita de “No Castelo do Barba Azul: Algumas Notas para a Redefinição da Cultura”, de 1974. Tratam-se de quatro breves palestras do professor em que se apresenta o pós-Revolução Francesa e a crescente fragmentação e dissolução da cultura ocidental, em rutura com as tradições cristãs, mas também latinizadas, gregas e judaicas.  A partir desta argumentação, procura meditar sobre o futuro da própria cultura e o processo do seu desenvolvimento pelo tempo. Assume as potenciais repercussões do Holocausto no longo prazo nos valores e nas expressões da cultura ocidental e alega, até, que o próprio Holocausto se tratou de uma resposta aos desafios que o pós-Revolução Francesa trazia. Uma resposta pela qual se procurava a perfeição através de supostos “valores supremos” e que atuava como vingança pelos judeus terem inventado a consciência.

Conversa entre George Steiner e António Lobo Antunes, que ocorreu no dia 9 de outubro de 2011.

Outras obras da sua autoria de relevo são “Errata: Revisões de uma Vida” (1997), uma obra semi-autobiográfica em que cruza os seus conhecimentos com a sua vida, e “Gramáticas da Criação”, que se inspiram nas palestras dadas na Universidade de Glasgow em 1990, as conhecidas Gifford Lectures, e por onde passa por uma série de temas, desde a ciência e a cosmologia até à religião e à poesia. “Presenças Reais” (1991) é um outro contributo bastante considerável da sua literatura, em que a presença/ausência de Deus (ou de algo transcendental) é questionada perante a criação artística, seja ela de uma música, de um quadro ou de um poema. Mais recentemente, “A Poesia do Pensamento” mostra o exercício da filosofia ocidental na voz e nas palavras da linguagem, mostrando a sua relação quase umbilical e que permite que os raciocínios possam ser registados, interpretados e confrontados. Também recente é “Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento” (2015) mostra o esforço de Steiner de se manter mais contemporâneo, assumindo uma questão intemporal – a do pensamento – com as interrogações e exclamações que a consciência e as emoções suscitam.

George Steiner traz, desta forma, um pecúlio literário notável, que percorre décadas de trabalho académico e de inúmeras obras lidas. Uma literatura que quis sempre que fosse global, que transpusesse as eventuais fronteiras geográficas e até culturais, pugnando por um conhecimento menos restrito à nacionalidade e mais aberto a todos. O conhecimento, afinal, é de todos e, como tal, Steiner, como poliglota e como um académico viajado e conhecedor, procurou dotar o mundo de mais saber, mas também de mais inspiração, de mais ferramentas para que a própria cultura ocidental se pudesse reconhecer. Dotou-o de um contributo que podia ter sido obstado pelo Holocausto, mas que, no que resta desta cultura ocidental, conseguiu ir mais longe, sem deixar de olhar para trás, no que poderia ter sido irremediável.

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