A luta e a paz de Jorge Sampaio
Jorge Sampaio foi dos estadistas com mais protagonismo diplomático em Portugal. Isto porque, para além da resolução e mediação de contendas internas — que implicou o surgimento de quatro executivos durante os seus mandatos presidenciais —, teve um papel arguto e ativo na relação com países/regiões com ligações históricas seculares com a nação portuguesa. Por esses e por demais feitos e feitios, trata-se de uma das figuras de destaque do período democrático português pós-25 de abril, entre o exercício de funções de autarca, diploma e, acima de tudo, Presidente da República.
Jorge Fernando Branco de Sampaio é o nome do homem que nasceu a 18 de setembro de 1939 em Lisboa, e que faleceria 81 anos depois, a 10 de setembro de 2021. Na sua ascendência, existem políticos, desde logo o avô materno, Fernando Branco, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e da Marinha nos inícios do Estado Novo. O pai, Arnaldo, médico e especialista na área da Saúde Pública, foi também pai de Daniel Sampaio, que seguiria as suas pisadas na medicina, embora na psiquiatria; já a mãe, de ascendência judaica, era professora de inglês e a sua grande parceira de conversas sobre literatura. A carreira do pai forçaria Jorge a deambular entre os Estados Unidos, Inglaterra, Sintra e Lisboa, com o Norte como pano de fundo nas férias de verão, começando por ganhar uma forte afeição à música (e ao piano) e à língua inglesa, que dominou desde cedo e que usaria como uma autêntica língua-mãe no seu futuro. Nos Estados Unidos, chegaria a frequentar um conservatório, nutrindo as paixões pela música, pela literatura e até pelo futebol, que jogou desde novo e que lhe motivou uma afeição ao Sporting Clube de Portugal. Aliás, seria o presidente durante um dos mais relevantes eventos do desporto em Portugal, o Euro 2004.
Depois de uma passagem pelos liceus Pedro Nunes e Passos Manuel, ambos em Lisboa, viria a matricular-se na célebre Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Seria esta mesma passagem que pautaria o caminho profissional e político de Jorge, enquadrando-se na Associação Académica da faculdade e na redação da sua conhecida publicação, “Quadrante”. Por escrito (e também falado, já que se tornou num orador esmerado), ficavam as inquietações dessa efervescência académica, que denunciava, de forma subtil e meticulosa, os constrangimentos políticos e sociais que se iam sentido. Lideraria, assim, essa mesma Associação Académica entre 1959 e 1961, para além de assumir a secretaria geral da Reunião Inter-Associações Académicas (RIA), na tentativa de comungar princípios de luta e de contestação anti-regime e nos primeiros momentos da crise académica em Portugal, que abalaria o país até à Revolução de Abril. Nesses tempos, também criaria o Movimento de Ação Revolucionário (MAR) e colaboraria com algumas outras publicações culturais e literárias.
Jorge Sampaio tornara-se, assim, advogado e começava a sua carreira profissional na comarca de Lisboa pouco tempo depois de se licenciar, no ano de 1961. Como a sua formação académica ditava, para além da sua participação assídua nas manifestações cívicas organizadas pelos seus colegas, defendia, em muitas ocasiões, episódios de contestação e eventuais presos políticos em tribunal (ele próprio chegou a ser preso nos tempos de estudante), procurando zelar pelos seus direitos, tantas vezes atentados pelo governo. Constituiria, mais tarde, já na década de 1970, uma sociedade de advogados com, entre outros, os futuros ministros Júlio Castro Caldas e José Vera Jardim: a, então, Jardim, Sampaio, Caldas e Associados. Faria, também, parte do I Congresso dos Advogados Portugueses, corria o ano de 1972. Porém, a carreira política mantinha-se viva, já que se candidatara às legislativas para os quadros da Assembleia Nacional de 1969, pela Comissão Democrática Eleitoral (CDE), que assumia, como uma das bandeiras da campanha, o fim do colonialismo.
Cruzando esta atividade profissional com a política, procurava manter-se atualizado sobre as formas de fazer política e de pensar e de sentir a sociedade europeias, nomeadamente com o cunho de um socialismo moderno e europeísta. No rescaldo do 25 de abril, quis movimentar-se e criar um espaço de atuação política. Para isso, fundou o Movimento de Esquerda Socialista (MES), ainda distanciado do já formado Partido Socialista, já que mantinha uma veia mais radicalizada, resultado de uma presença mais assídua na luta contra o Estado Novo e de uma maior fusão entre sindicalistas e académicos. No entanto, Sampaio abandonaria, ainda em 1974, este movimento, mas manteve-se integrado nas movimentações políticas e partidárias que se iam proporcionando. Assim, atuou como uma espécie de braço direito de Ernesto Melo Antunes, membro da facção mais moderada Movimento das Forças Armadas (MFA), o conhecido “Grupo dos Nove”, e mediou a transição entre o MFA e o sistema pluripartidário, para além de ajudar a rechaçar as investidas do general António Spínola. No executivo de Vasco Gonçalves, tornou-se secretário de Estado da Cooperação Externa, auxiliando o então Ministro dos Negócios Estrangeiros Melo Antunes. Isto no ano de 1975, que avizinhava mais uma iniciativa da sua parte, já que se tornou parte da Intervenção Socialista, um grupo de reflexão sobre o estado sociopolítico do país.
Em 1978, e depois de adquirir algum calo na diplomacia e no novo sistema democrático português, juntou-se ao Partido Socialista, assim como outros membros do MES, e, no ano seguinte, tornou-se deputado na Assembleia da República. Por força da sua experiência e da sua formação, foi nomeado para a Comissão Europeia para os Direitos Humanos e, futuramente, nomeado líder parlamentar da bancada socialista da Assembleia e responsável pelas relações internacionais do partido. Em 1989, novamente na liderança, assume a candidatura à presidência da autarquia de Lisboa e assume uma coligação inusitada (e, como tal, mediática) com o Partido Comunista, entre outras forças partidárias de teor marxista, vencendo a de Marcelo Rebelo de Sousa, do PSD. Foi o ano em que, de igual modo, assumiu a liderança do Partido Socialista, embora perdendo esse cargo para António Guterres no ano de 1992. Porém, não encararia a derrota como definitiva, mas antes como um impulso, impulso esse direcionado para a sua reeleição como autarca, depois de um trabalho que se direcionou para o urbanismo da cidade (foi com ele que se formulou o primeiro Plano Diretor Municipal) e a sua renovação (com a aparição dos Museus da Música e de Arte Contemporânea do Chiado, já após o incêndio neste quarteirão, emergentes ao abrigo da Capital Europeia da Cultura), e, dois anos depois, abdicando da Câmara de Lisboa, para uma candidatura à Presidência da República. Bateu-se de frente com o ex-primeiro ministro Aníbal Cavaco Silva, do PSD, que o havia vencido nas legislativas de 1991, e venceu-o com 54% dos votos. Desta forma, foi indigitado em 1996 e, em 2001, viu a sua presidência ser renovada por mais cinco anos, até 2006.
Nesse período, viu a maioria parlamentar socialista, liderada por Guterres, mas também as vitórias de Durão Barroso — que seria sucedido por Pedro Santana Lopes (sendo encaminhado para o cargo pelo próprio presidente, gerando grande desconforto no seio do seu Partido Socialista) à data da nomeação do primeiro para a liderança da Comissão Europeia — e de José Sócrates, este com maioria absoluta, após Sampaio exonerar o executivo de Santana Lopes e dissolver a Assembleia, depois de quatro meses. Tratou-se de um período que foi pautado por uma crise económica e, de certa forma, política no país, que também já ia mostrando sintomas em escândalos envolvendo ministros, como o da Administração Interna Armando Vara, na demissão apresentada por Guterres ao presidente Sampaio e no silêncio na questão da invasão ao Iraque, concertada pelos executivos do eixo formado por Estados Unidos, Reino Unido e Espanha. Também por isso Sampaio procurou formar um Conselho de Estado plural, com membros de diversas proveniências, mas também um Conselho Económico, que o apoiasse na formação dos seus pareceres presidenciais.
Não obstante, nos dois mandatos, procurou estar junto da sociedade civil, tanto do tecido económico nacional — com a Expo 98 e a fundação da COTEC Portugal, destinada à partilha de competências técnicas e tecnológicas ao nível inter-empresarial —, mas também no que toca às relações com o exterior, nomeadamente na ligação entre os países de língua oficial portuguesa, na questão de Macau — na sua transição para parte do território da China — como na da independência de Timor-Leste, da qual foi acérrimo defensor e pela qual se bateu com agentes diplomáticos indonésios. Manteve, assim, um estilo de presidência ativo e crítico, já que deu uso ao poder de veto por mais de 70 ocasiões, sem que, no entanto, pusesse de lado a possibilidade de aproximar os partidos entre si, com base nos valores de abril. De igual modo, atravessou vários processos que causaram incómodo junto da sociedade civil, como o Processo Casa Pia, assim como dois referendos, sendo eles o da interrupção voluntária da gravidez e o da regionalização, ambos reprovados.
No final da sua atividade política nacional, aceitou o desafio do secretário-geral da ONU de então, Kofi Annan, e integrou várias frentes diplomáticas, nomeadamente na luta mundial contra a tuberculose e na iniciativa da Aliança das Civilizações, tendo em vista uma maior cooperação internacional, no aprofundar do diálogo entre culturas, religiões e nações, em especial na questão Ocidente-Oriente. Foi, por diversas vezes, condecorado, do Ocidente ao Oriente, da América à Ásia, entre Europa e África, e honrado com doutoramentos honoris causa nas várias universidades nacionais, para além de ser sempre uma referência na sociedade civil, convergindo os diversos agentes da atividade política e social na democracia portuguesa (exemplo disso foi a fértil colaboração com a comunicação social, como com o Expresso, o Jornal de Notícias, o Público e o Diário de Notícias).
Aliás, nos últimos instintos da sua vida, manteve-se enérgico no apoio aos jovens afegãos e sírios, na tentativa de lhes proporcionar um futuro com formação e com rumo. Tratou-se do prolongamento de um trabalho que nunca deixou de praticar, enquanto presidiu a vários organismos de cooperação e de interação entre as várias cidades do mundo. Como publicações em livro, ficam “A Festa de um Sonho” (1991), que agrega vários dos seus escritos políticos, e “Quero Dizer-vos” (2000), contendo a sua visão sobre a sociedade portuguesa (e estrangeira) contemporânea; assim como estão publicadas as comunicações emitidas em função das intervenções feitas no exercício das suas funções como Presidente da República.
Jorge Sampaio pugnou, em vida, sempre pelo que achava mais justo para todos. Não só para Portugal e para os portugueses, mas também para todos os demais. Em essência, para a humanidade. Um percurso feito como manda a tradição, passando pela academia e pela advocacia, que o encaminhou para a vida partidária e parlamentar. Aqui, as competências de liderança e de eloquência fizeram-se valer em português e no inglês e abriram portas para uma projeção cívica relevante. Entre conciliações e ruturas, Sampaio tentou encontrar-se com a paz, embora assumindo-a, paradoxalmente, como uma luta, como indica a sua juventude. Apesar da fragilidade que a sua saúde lhe provocou, foi galgando terreno e chegando, como uma boa sonata, que tanto interpretava, a uma paz de espírito em prol da paz que tanto visou para os demais.