A (MEC)a da peste

por Romão Rodrigues,    2 Fevereiro, 2020
A (MEC)a da peste
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Ler. Uma palavra de ordem. Um mandamento não inscrito na Bíblia. Uma atividade que prima o prazer, o conhecimento e a autoanálise. A engrenagem da máquina cerebral. O digestivo após uma refeição farta. O chilrear da cotovia mais primaveril. A música que retrata determinado momento e preenche determinada fissura. O beijo terno trocado entre os entes queridos. A inspiração integral de um pasto verde e oxigenado. A fuga ao mundano. A existência perante a subsistência. A flor que não murcha. (Sim, considero ser possível que o leitor tenha lido isto numa homenagem feita à Bertrand ou coisa parecida. Eles adulteraram as minhas escrituras!)

Neste momento, debruço-me sobre a permuta constante entre Miguel Esteves Cardoso e Albert Camus. Não tentem, a toda a força, uma comparação imediata. Não bate a cara com a careta. Um vai suportando e servindo de muleta ao outro. O ceticismo perante coincidências induz ao pensamento de que a leitura simultânea e dividida possui uma razão de ser. Ora, “A Peste” e “Escrítica Pop”, sem tempo para atribuições mais do que conhecidas, representam o meu estado mais idílico dos últimos anos. Ao lê-los, cresce a sensação de êxtase proporcionado, a dicotomia querer/não querer chegar ao término do livro e o fascínio pela temática que cada qual relata. (Sejamos sinceros, a Bertrand tem coisas piores…)

“A Peste”, literatura pós-guerra de Camus, exibe ao leitor um cenário de peste após a observação crua de um rato morto: a epidemia distende-se ao longo de uma cidade argelina, encerram-se as comportas, espera-se o estanque da doença e a recuperação rápida da população afetada. Contudo, o leitor, na penumbra das páginas que o absorvem, contempla, atonitamente, a desintegração e posterior metamorfose das personagens e a subsistência dos valores morais. (Asseguro o leitor do facto de a Bertrand ter esta obra!)

Miguel Esteves Cardoso dispensa apresentações. O supérfluo faz-lhe comichão. Por essa razão, redige “Escrítica Pop”, entre Manchester e Lisboa. A música como princípio fundamental de sobrevivência, de crescimento ideológico e de transgressão social. O livro é encetado com um prefácio informe e uma nota sobre a desorganização do mesmo que tantos outros mereciam; de modo psiquiatra, propõe ao leitor como ser um crítico rock, e, como analítico refinado, erige a opinião sobre a década que cessava (aconselho aos amantes do Boney M e Bee Gees), define conceitos e realiza um questionário, digamos, “de resposta difícil”. Além disso, existem apenas centenas de crónicas compiladas que atentam na profundidade daquilo que a forma de Arte compõe. Um indispensável aos olhos de quem a vive, de quem a sente e de quem a respira.

Na transição da década de 70 para a década de 80, Portugal estava epidémico. A sociedade portuguesa, fragilizada pelo surto da cacofonia do Disco Sound que vomitado já puxava o coágulo mais recôndito e com as defesas em baixo dos ritmos cinquentenários do ié-ié, o movimento hippie dos sessentas e muitos e o intervencionismo de “setentas e picos”, mostrava sinais de preocupação face àquele que seria o futuro da música portuguesa. À semelhança de vultos como António Sérgio, Luís Felipe Barros, Júlio Isidro e Jaime Fernandes, Miguel Esteves Cardoso deixou a sua própria marca no panorama que, à data, se vislumbrava catastrófico: “Escrítica Pop” representou nada mais, nada menos, que a mistura de múltiplas substâncias (rockabilly, pop, rock, reggae, ska, muzaque, funk, punk) resultante no elixir da New Wave. Um cocktail servido para todos os gostos e despejado no cálice de variadíssimas bandas portuguesas, que o bebiam sofregamente de modo a não serem infetados pelo vírus da decadência musical. Ora, o paralelismo é meu e a Bertrand, dito à boa moda do povo, que não venha meter o bedelho uma vez mais.

O boom do Rock Português é obra divina? É mais um sinal de Deus? Não. É fruto de um trabalho intensivo que tinha em Manchester o principal laboratório de criação: a Factory. A sala onde as junções mais eletrizantes, espirituais e cinzentas se faziam. O ninho de bandas como os Joy Division, Durutti Column ou A Certain Ratio, percursoras da nova onda e nova maré. A partir daí, tudo é conhecido aos nossos olhos, tudo se transformou em história. Os divulgadores supracitados, através da rádio ou de crónicas distendidas por jornais generalistas ou musicais, compunham uma espécie de backstage do movimento e construíam o puzzle que rapidamente ganhou vida e despoletou: jovens reacionários, atentos, na medida do possível ao panorama internacional, e estimulados pelo espírito reacionário e vanguardista que os caracterizava, depositaram na música toda a confiança que possuíam. E que bem fizeram!

Para não correr o risco de o maçar (ainda) mais, deixo uma nota breve. Na capa da obra de Miguel Esteves Cardoso figura em dois frames Ian Curtis desempenhando a dança esquizofrénica conhecida. Se for do seu agrado, dance defronte da peste musical que o atormenta e adquira o livro. Não sei é se a Bertrand o tem…

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