“A Queda”, de Albert Camus: uma história sobre o questionar existencial da condição humana
Jean-Paul Sartre descreveu “A Queda” como sendo o livro “mais belo e incompreendido” de Albert Camus. Esta afirmação vem de um facto pouco conhecido: o evento base desta narrativa tem como inspiração a própria vida pessoal de Camus e da relação com a sua mulher. Esta curta obra, organizada numa sequência de monólogos, pode ser interpretada como um pequeno tratado filosófico existencialista. Muitas das reflexões que Camus aqui conjura poderiam ser aplicadas a qualquer um de nós.
“O sentimento do direito, a satisfação de ter razão, a alegria de nos estimarmos a nós próprios, são, caro senhor, molas poderosas para nos suster de pé ou nos fazer avançar. Pelo contrário, privar disso os homens é transformá-los em cães raivosos”, pode ler-se em “A Queda”, de Albert Camus.
O personagem central e narrador é um antigo advogado especializado em “causas nobres”, Jean-Baptiste Clamence, este intitula-se a dado momento de “juiz-penitente” (sem aprofundar muito o que significa). Leva-nos numa viagem de reflexão moral baseada nas suas supostas falhas e virtudes. Isto enquanto frequenta bares duvidosos em Amesterdão após ter abandonado a sua atividade legal em Paris. De forma narcisista (situação recorrente), declara perante um companheiro de bar: “Eu tinha o coração nas mangas. Era mesmo de crer que a justiça dormisse comigo todas as noites. Tenho a certeza de que o senhor admiraria a exactidão do meu tom, a justeza da minha emoção, a persuasão e o calor, a indignação controlada das minhas defesas. A natureza favoreceu-me quanto ao físico, a atitude nobre surge-me sem esforço.“
Podemos perceber que, como qualquer pessoa dada a extensos monólogos sobre si próprio, é propenso ao narcisismo e ao autoelogio. Clamence fala e age de forma virtuosa e performativa, manipulando a percepção dos que o rodeiam, enaltecendo o bom e relativizando o mau na sua pessoa. Existe um debate racional constante sobre a acção real e a acção hipotética alternativa. Diria tratar-se de um mecanismo de defesa (do ego) de teor relativista, que serve para o próprio se ilibar das suas falhas. O que o leva a uma suposta superioridade humanista, plena de razão, lógica e moralidade. Este método racional, que por vezes não se percebe se é deliberado, tanto serve para se valorizar como para se colocar ao nível do cidadão comum, para assim criar um efeito de humildade e de pertença à sociedade: “Somos todos casos excepcionais. Todos queremos apelar de qualquer coisa! Cada qual exige ser inocente a todo o custo, mesmo que para isso seja preciso inculpar o género humano e o céu.”
Os seus valores pessoais moldam-se consoante o seu interesse moral momentâneo. Esta dinâmica intercambiável da moralidade é um dos pontos de interesse do livro, pois leva-nos a pensar se nós próprios não o fazemos, consoante a situação. No entanto, isto não o impede de desconstruir alguns dos seus defeitos de forma objectiva e intuir a forma como alguns até o beneficiam. Curiosamente revela: “A face de todas as minhas virtudes tinha assim um reverso menos imponente. É verdade que, noutro sentido, os meus defeitos revertiam em meu favor. A obrigação em que me encontrava de esconder a parte viciosa da minha vida dava-me, por exemplo, um ar de frieza que se confundia com o da virtude, a minha indiferença valia-me ser amado, o meu egoísmo culminava nas minhas liberalidades. Fico por aqui: a muita simetria prejudicaria a minha demonstração”, lê-se no livro.
Existe também neste “A Queda” uma quebra gradual com o narcisismo, que leva o personagem central a ponderar o seu papel em diversas situações com que se deparou ao longo da vida. Esta evolução autocrítica traz à sua atenção que, por vezes, poderia ter agido de forma realmente impactante além da satisfação básica do seu ego. Uma situação que o atormenta de forma crescente e exemplo de acção inadequada, ou inacção neste caso, foi ter assistido à queda de uma mulher para a sua morte numa ponte em Paris e o que poderia ter feito de diferente em relação a isso. Fica neste ponto evidente que título pode remeter para uma queda física (o suícidio), uma queda moral do personagem, da sociedade contemporânea ou nossa, se nos identificarmos com a narrativa. Desenrola-se o colapso da percepção idealizada de si próprio, do seu sistema de valores, da sua noção de realidade e verdade. A consequente transformação existencial de Clamence manifesta-se e nas suas palavras afirma: “Aceitei a duplicidade em vez de ficar desolado com ela. Nela me instalei, pelo contrário, e nela achei o conforto que busquei durante toda a minha vida. Errei, no fundo, ao dizer-lhe que o essencial era evitar o julgamento. O essencial é poder permitir-se tudo, mesmo se for preciso proclamar, de tempos a tempos, em altos brados, a própria indignidade.”
Essencialmente, esta é uma história sobre o questionar existencial da condição humana, concretizado de dentro para fora. Mesmo partindo de uma posição de desmedida autoestima, o personagem narrador consegue pôr em causa as suas certezas. Fica a sensação de que a obra tem um teor intimamente terapêutico, hipoteticamente, os monólogos poderiam ser direcionados a um psicólogo imaginário. O formato de monólogos sequenciais de Clamence nem sempre é fácil de acompanhar, podendo degenerar numa mistura de questões e respostas que necessitam de uma atenção redobrada à narrativa. Acredito que o valor intrinsecamente filosófico desta obra justifica esse esforço. Tanto em “A Queda” como em boa parte da sua obra, Albert Camus questiona a condição humana de forma magistral, com particular interesse no existencialismo e na exploração do absurdo. Fica aqui evidente a razão pela qual se estabeleceu como um dos grandes pensadores do seu tempo.