A relação paradoxal entre arte e dinheiro
Os artistas, a arte e o dinheiro – leia-se também poder – têm uma relação paradoxal e passivo-agressiva. Hoje, ainda há, entre elas, uma série de dilemas éticos e morais, que surgem por diversas razões: pela aura quase sagrada que é dada ao ato de criação artística e que pode ser corrompida pelo dinheiro e pelo mercado; pelo facto de a arte estar, muitas vezes, numa posição de contrapoder; por questões de liberdade e puritanismo criativo que muitos consideram necessário nos artistas; e até porque grande parte dos artistas não gostam de encomendas, nem de verem as suas obras serem compradas por privados, mas, ao mesmo tempo, precisam deles para sobreviver. Para além disso, a arte é um produto, mas não é um produto como os outros, o que levanta algumas questões. Posto isto, embora seja certo que a arte existiria na mesma sem dinheiro, não podemos negar que esta esteve sempre – desde que coexistem – a par com o mesmo.
Uma breve (mas não muito breve) contextualização
As artes plásticas nem sempre foram consideradas uma manifestação criativa e intelectual na civilização ocidental. Embora tenham chegado aos nossos dias objetos e monumentos que hoje consideramos de alto valor artístico, isso não significa que, na época, tenha sido dispensada uma atenção de reconhecimento aos seus autores e, por vezes, às próprias obras. Na verdade, os pintores e escultores, por exemplo, foram durante muitos séculos (exceto em algumas civilizações) tidos como meros artesãos. Muitos sobreviviam sob a égide de cortes régias e entidades de poder. Outros, não recebiam nada em troca das suas habilidades. Há sempre variações e casos específicos, mas basta pensarmos que são poucos os nomes que conhecemos na História destes “artesãos” até à Época Moderna. Vejamos um pequeno exemplo de duas das civilizações que mais influenciaram a cultura ocidental e que se definem em lato sensu como Grécia Antiga e Roma Antiga: enquanto alguns pensadores gregos viam a pintura como a primeira das artes liberais, na civilização romana esta era considerada uma arte servil. Os romanos dividiam as artes em Artes Servis e Artes Liberais. As primeiras, inferiores, abrangiam tudo aquilo que exigia a utilização das mãos (como a pintura e a escultura). As segundas, eram divididas em trivium (gramática, dialética, retórica) e quadrivium (geometria, aritmética, astronomia e música), e eram consideradas superiores. No entanto, isto não significa que na Antiguidade Clássica e na posterior Idade Média, as artes plásticas não tivessem assumido um papel fundamental na identidade cultural das civilizações. Simplesmente não eram vistas com uma dimensão intelectual e, por relação, os seus autores também não.
Contudo, num processo que se fez paulatinamente, a Época Moderna trouxe mudanças cruciais para as artes plásticas e os seus respetivos artistas. Os valores humanistas do Renascimento potenciaram tanto uma evolução no estatuto do artista e na valorização da sua obra, como uma necessidade de as figuras nobres demonstrarem a sua sensibilidade intelectual ao rodearem-se de pensadores e artistas. Neste sentido, para não irmos para o exemplo mais comum do mecenato de Lorenzo de Médici, podemos ver outro caso: na segunda metade do século XV, Frederico de Montefeltro – o Duque de Urbino – mandou revestir o seu studiolo com obras de vários artistas – incluindo Botticelli – e com retratos de pensadores. Também em obras se fez representar a ler ou rodeado de pinturas, para assim cimentar uma ideia intelectual da sua imagem. Ou seja, os artistas e as suas obras começaram a ser vistos de outra forma por parte dos detentores de poder, aumentando assim o seu estatuto social e afastando-os aos poucos da definição de artesão.
Este mecenato e valorização, assim como a busca pelo passado da Antiguidade Clássica, impulsionou o trabalho das Oficinas e a troca de objetos e cópias da antiguidade, que, mais tarde, se iriam manifestar nos Gabinetes de Curiosidades, já com um vislumbre de colecionismo. Posto isto, é neste contexto que, na Flandres, nos Países Baixos e em Itália, começa a brotar um proto-mercado da arte. E é aqui que quero chegar. O mercado nasce quando há compra para apenas ter e não a compra com uma função (religiosa, decorativa, retratística, etc). A lenta transformação de artes consideradas oficinais para liberais e esta nova postura do comprador, foi libertando os artistas da encomenda e alargou a sua liberdade de criação. Um momento marcante nesse sentido foi a criação da Academia Real de Pintura e Escultura, em 1648, em França. Isto porque, esta Academia – embora inspirada em modelos anteriores- assumiu um rolo importantíssimo nas artes, normalizando a educação dos artistas, o acesso destes a cargos superiores, e uma quase profissionalização. É também a partir deste fenómeno que a critica de arte começa a dar os primeiros passos a par das exposições nos Salons, o que levou a arte para uma esfera mais pública, embora ainda muito confinada a um nicho elitista.
Com estas dinâmicas em torno da arte e dos artistas em construção, vão-se lentamente criando narrativas acerca dos artistas e da arte – principalmente no período do Iluminismo e Romantismo – que contribuíram para a construção cultural acerca dos mesmos, cruciais nas gerações seguintes. Quanto ao mercado, na transição da Época Moderna para a Época Contemporânea, o crescimento da classe burguesa na Era das Revoluções, trouxe uma nova classe compradora de arte, que se viria tornar a dominante. Antes desta, os artistas estavam confinados às encomendas das cortes régias, da Igreja ou da nobreza.
Esta contextualização muito transversal, pouco científica e com muitos momentos por assinalar, serve para percebermos um pouco do processo de evolução e de construção dos artistas, da arte e do seu mercado. Mas serve, ao mesmo tempo, para percebermos que, embora haja momentos realmente transformadores, as nuances que vemos hoje no mundo da arte são fruto de um processo evolutivo. Contudo, a partir do século XX, com o ritmo da Revolução Industrial – que começou a permitir comprar coisas sem necessidade – e o rescaldo das duas Grandes Guerras, essas mesmas transformações assumiram um ritmo frenético.
Já nos séculos com dois X’s
Os grandes mestres até ao século XX deixaram obviamente legado histórico e artístico para as futuras gerações, mas nem todos tiveram uma vida abonada financeiramente por causa da sua arte. É que, apesar de tudo, se estes artistas não tivessem sob a égide de gente com dinheiro e poder, eram raros os casos a terem sucesso na sua subsistência. Mas será que isso mudou assim tanto? Depende. Se pensarmos no século XX, vimos artistas a tornarem-se autênticos ícones e celebridades. Vimos realmente Picasso, Dali ou Andy Warhol a enriquecerem com a sua arte e a transformarem a imagem do artista, romantizando-a e pondo-a num palco de atenções mediáticas. Mas, ainda hoje, aqueles que enriquecem com a sua arte são uma percentagem mínima à escala da quantidade de artistas que existem.
A verdade é que o mercado da arte assumiu proporções monstruosas a nível financeiro, mas não tão benéficas para os artistas. Com exceção de uma minoria, a maior parte recebe comissões mínimas pelas suas obras. Poucos são aqueles que querem mesmo entender o mercado e usufruir dele. Há um tabu e um complexo, que parte dos artistas, nesse sentido, e que não é de agora. Como diz Nathalie Quintane na sexta edição da Revista Electra:
“Os impressionistas, por exemplo, tinham ainda muito em conta uma premissa de Flaubert que era algo como: “Les honneurs déshonorent”; e que por isso tinham que rejeitar os valores da burguesia, do dinheiro e do lucro. Mas por outro lado havia os pompiers, que já na época eram conhecidos. A burguesia comprava-lhes as obras e pagava-lhes muito bem.”
Isto acontece ainda hoje. Pompiers – passo o anacronismo – como Jeff Koons ou Damien Hirst, por exemplo, souberam entender as dinâmicas de mercado. No caso de Damien Hirst fez-se até história, quando este vendeu diretamente parte da sua obra por 100 milhões de dólares, sem o uso de agente intermediário. Todavia, na outra face da moeda, temos artistas como Gerhard Richter- um dos pintores contemporâneos vivos mais conceituados – que diz que preferia ver as suas obras todas em Museus e não a serem vendidas em leilões. Isto diz-nos que, em primeiro lugar, a partir da venda, o artista perde controlo das suas obras. Em segundo, mostra-nos mais uma vez a relação amarga que grande parte dos artistas tem com o mercado. E caso os artistas não saibam dominar o mercado, este engole-os. Porque o mercado da arte está hoje completamente dominado pelos padrões de pensamento empresarial.
Foi nos anos 60, já em velocidade do espírito capitalista, que a Arte começou a ser vista como um investimento. Contudo, é nos anos 80 que ganham força os investidores de arte e aumentam o número de feiras, galerias e leilões. Para além disso, deu-se uma viragem no mercado, quando as obras de arte contemporânea passaram a ter, aos poucos, tanto valor como as obras dos antigos mestres. Hoje, cinco décadas depois da primeira feira de arte, há cerca de 18.000 galerias e mais de 250 feiras de arte contemporâneas. Neste sentido, estima-se que o mercado da arte movimenta 4% da economia mundial e as estatísticas correspondem praticamente só aos leilões, galerias e feiras, porque é a parte do mercado com mais registos. Quanto aos leilões, estes têm um impacto enorme no mercado, e uma completa responsabilidade na inflação do preço das obras. Porquê? Porque neles há uma competição acesa pela compra, onde é importante vencer. E por quê? Por distinção. Ser detentor de arte também dá prestígio, estatuto e é uma forma de demonstração de poder. E o mundo da arte vive dessa distinção.
Colecionadores, investidores e acervos de museus são os grandes agentes compradores do mercado. Os museus são uma indústria também, no entanto, na maioria das vezes, não conseguem competir com os privados, devido aos valores altíssimos das obras. No caso dos privados há diferentes posturas: o comprador casual, o colecionador e o investidor, sendo que a linha que separa os colecionadores dos empresários é cada vez mais ténue. Muitos destes investem o dinheiro em obras de arte como meio de evasão fiscal. Não em obras de arte suscetíveis de perder valor, mas sim em obras com um valor seguro como Van Gogh, Modigliani, Basquiat, etc. Estes investimentos ficam ao abrigo da fiscalidade, assim como a criação de Fundações e o Mecenato, que servem muitas vezes para camuflar negócios e ganhar favores públicos.
Neste sentido, o mercado da arte já é um ciclo que se movimenta à parte da arte, e embora ainda dependa dela, já há algum tempo que o artista não é o agente principal desta indústria. Para além disso, o mercado e os seus agentes moldam os nossos gostos e controlam o que vemos de forma consciente e inconsciente. Se um artista expuser numa Feira ou Galeria prestigiada, isso vai lançá-lo por todas as correntes do mercado. Os próprios historiadores de arte, os curadores, os mediadores, os críticos e a imprensa participam todos numa narrativa construída em torno dos artistas que enriquece e publicita a obra desses mesmos artistas para o público, num marketing utilizado por Museus, Leiloeiras, Feiras e até marcas de alta costura. Sim, marcas de alta costura. É que o território da arte contemporânea também é hoje dominado por instituições que operam a transferência simbólica da mesma para os produtos de luxo, e vice-versa. Marcas como a Louis Vitton, associam-se constantemente à arte para se valorizarem também. Mas isso tem repercussões na forma como recebemos a arte. E se por um lado há um marketing com efeitos positivos, por outro, esse distanciamento financeiro e o distanciamento de compreensão da arte contemporânea, faz com que haja uma desistência e um complexo por parte da maioria do público, em relação às artes plásticas, principalmente.
Mesmo a terminar
Gavin Brown- um “Art Dealer” – considera que o Dinheiro e a Arte são, neste momento, como gémeos siameses inseparáveis. O mercador acredita, inclusive, que os artistas e a arte estão a ter dificuldades em sair desta premissa económica, ao mesmo tempo que esta já lhes causou mutações. Mas a verdade é que a arte acaba por estar sempre ligada a esta relação de produto e consumidor, desde que ela e o dinheiro coexistem. E ainda assim, nunca deixou de ser importante na sociedade. Pelo contrário, o dinheiro ajudou a arte a assumir um papel ainda maior. É que a arte será sempre um produto com características próprias. O preço da arte não se baseia só no tempo de trabalho, no material usado ou na técnica, mas sim em fatores que não são mensuráveis. A arte tem uma aura em seu torno e, se pensarmos numa pintura, por exemplo, percebemos que ela nunca é totalmente reproduzível, nem pelo próprio artista. Então como definimos o valor de uma obra? Pela sua raridade, pela assinatura e o respetivo estatuto e prestigio do artista em questão, pelo conhecimento que há sobre o mesmo e as narrativas em seu torno, os donos precedentes e, caso seja vendida em leilão, pela competição inerente a este. Tudo isto são critérios em conta, mas cada caso é especifico. Não mais serve apenas a capacidade técnica mimética do artista, desvirtuada já há mais de um século. E já não tanto, mas ainda, a opinião de críticos e especialistas.
A bolha do mercado da arte é frágil e não sabemos até quando vai durar, mas sabemos que é bom que esta tenha um preço, mesmo existindo um complexo conflituoso entre ambos. É que o facto de ter valor, protege-a. Porque nós, seres humanos, temos tendência a proteger principalmente o que tem valor financeiro. E tal como diz o colecionador Stefan Edlis: “Há muita gente que sabe o preço de tudo, mas o valor de nada.”.
Nota:
O texto está pensado e direcionado apenas para o exemplo das artes plásticas em relação à sua evolução ao longo da história e à atual situação no mercado contemporâneo.
A revista Electra é um projeto da Fundação EDP lançado em março de 2018. É uma revista trimestral de pensamento e de crítica, conta exclusivamente com trabalhos originais de pensadores nacionais e estrangeiros. É editada em português e em inglês. A revista é vendida nas bancas, em livrarias, na loja do MAAT e online (aqui).