Alexandre O’Neill, o publicitário surrealista
Não há dúvida de que a língua portuguesa está fortemente marcada pela poesia e pelos seus ilustres poetas. O facto de ser uma língua bastante dúctil e virtuosa faz com que a construção de frases de modo a criar poemas seja bastante exequível. É claro que esta construção requer uma habilidade que nem todos têm, como se fosse quase um dom. É por isso que os poetas portugueses são de tal modo venerados por todos nós. Todos eles são excepcionais, independentemente do seu estilo mais complexo ou mais simplista no uso das palavras, todos têm a sua maneira única de se expressar e é isso que os torna especiais.
Escrever um poema pode parecer fácil se tivermos as palavras e a combinação certa entre elas, o que não implica a existência de rima ou métrica. No entanto, arranjar essas mesmas palavras e combinações de modo a formar um poema que tenha impacto, cause emoção, e marque quem o leia, não é tarefa fácil. Por vezes temos que inventar maneiras de o fazer, “brincar” com as palavras, e, através desta brincadeira, podem surgir esplendorosas frases que dão origem a poemas deliciosos. Existem vários poetas que fizeram este tipo de brincadeira e que se tornaram únicos na sua maneira de escrever poesia. É certo que Alexandre O’Neill é um deles.
Nascido em Lisboa a 19 de Dezembro de 1924, Alexandre O’Neill foi dono de uma habilidade de escrever poesia quase única na língua portuguesa e muitos dos seus poemas têm origem em simples brincadeiras de palavras que, quase do nada, se convertem em poesia. Como publicitário que foi, aperfeiçoou a sua criatividade através dos slogans que era convidado a fazer, grande parte deles rejeitados devido à tamanha brincadeira que muitas vezes se transformava em sátira. Slogans bastante sonantes de determinadas marcadas, até bastante conhecidas, foram feitos pelo próprio Alexandre O’Neill. “Há mar e mar, há ir e voltar.”, foi um dos slogans de sua autoria, este usado numa campanha de prevenção de afogamentos.
Contudo para o Metro de Lisboa propôs “Vá de metro, Satanás!” fazendo um trocadilho com a expressão popular “Vá de retro, Satanás!”, tendo sido obviamente rejeitada e visto como algo de mau gosto. A verdade é que O’Neill estava inserido no Grupo Surrealista de Lisboa juntamente com Mário Cesariny, António Pedro Vespeiro e José-Augusto França, grupo algo controverso devido à manifestante oposição à poesia neorrealista e sobretudo ao regime de Salazar. Tendo sido várias vezes perseguido pela PIDE, um dos poemas mais célebres de sua autoria intitula-se Perfilados de Medo, que descreve de uma maneira geral e num estilo algo contido a opressão vivida pelo regime que quase durou meio século em Portugal.
“Perfilados de medo, agradecemos
O medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
E a vida sem viver é mais segura.
Aventureiros já sem aventura,
Perfilados de medo combatemos
Irónicos fantasmas à procura
Do que não fomos, do que não seremos.
Perfilados de medo, sem mais voz,
O coração nos dentes oprimido,
Os loucos, os fantasmas somos nós.
Rebanho pelo medo perseguido,
Já vivemos tão juntos e tão sós
Que da vida perdemos o sentido.”
Este poema em forma de soneto, publicado no livro Abandono Vigiado em 1960, retrata profundamente a perseguição e opressão vividas durante esta época, mostrando também um lado mais melancólico e crítico do poeta. José Mário Branco interpretou-o numa das suas canções do seu conhecido álbum Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, lançado em 1971.
Obviamente que a tal brincadeira de palavras não é tão notória neste poema. Essa vertente está mais presente nos seus poemas dedicados à cidade de Lisboa, Uma Lisboa Remanchada, nos quais descreve de uma maneira alegre os locais por onde várias vezes passeava à procura de inspiração, e também nos seus inventários, na utilização de palavras simples de forma a fazer magia com estas. O famoso poema Sigamos o Cherne inspirado no documentário de Jacques-Yves Costeau O Mundo do Silêncio, mostra como a partir de uma simples espécie de peixe se consegue criar um poema ainda hoje muito ilustre na poesia portuguesa.
“Sigamos o cherne, minha Amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo,
Senão já com amor, com alegria…
Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa de passado
Circula o cherne: traído
Peixe recalcado…
Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa…”
Neste poema, a brincadeira de palavras é mais nítida e, inspirando-se num peixe absolutamente banal como o cherne, Alexandre O’Neill conseguiu fazer um dos mais ilustres poemas da poesia contemporânea portuguesa, poema esse que embora algo brincalhão mostra sentimento e musicalidade. Musicalidade essa que fez com que o seu trabalho fosse adaptado em variadíssimas canções sendo a mais conhecida A Gaivota, interpretada por Amália Rodrigues no álbum Com Que Voz em 1970 e posteriormente pelo grupo Amália Hoje que prestou homenagem ao legado da fadista portuguesa.
A 21 de agosto de 1986, Alexandre O’Neill faleceu devido a complicações cardíacas que sofrera algum tempo antes da sua morte, assinalando-se em 2016 trinta anos do seu desaparecimento. Contudo, deixou-nos uma das mais sublimes obras poéticas que ainda hoje se mantém actual e que pode ser saboreada por todos nós. A língua portuguesa ficou mais simples, mais afável e também ao mesmo tempo mais rica com a sua poesia e a habilidade no uso das palavras. Seria interessante terminar um texto sobre Alexandre O’Neill com um poema de sua autoria mas que tivesse mais a ver consigo mesmo. Eis que no livro Poemas com Endereço de 1962 encontra-se um poema cujo o título é, somente, Alexandre, quase como algo dedicado a si mesmo.
“Alexandre, meu projecto,
estás a bater errado ou certo?
Errado ou certo, ainda bates!
Será viver disparate?
Esse coração que pulsa
é apenas literatura?
Esse amuo e essa ânsia
disparates de criança?
E o A que tens bordado
no coração? Só vaidade?
E o filho ainda de bolso?
Será pouco?
Alexandre, meu projecto,
bate, bate, errado ou certo!”
Esteja o projecto errado ou certo, resta-nos apenas dizer: obrigado, Alexandre!