“Aniquilação”, de Michel Houellebecq: a Bíblia de tudo e nada
“Mais do que nunca, a escrita de Houellebecq procura fundar se não uma esperança, pelo menos novos valores. […] Em pleno vigor das suas forças, propõe-nos uma moral que torna possível habitar o mundo e suportar a vida.”
Le Monde
Não sei por que caminhos andam a crítica portuguesa e ainda menos a internacional, mas parece-me quase absoluto o fascínio por este novo romance de Michel Houellebecq que, de seu nome “Aniquilação”, encontro mote de paródia para a factual auto-aniquilação no que se consagra a este romance de 600 páginas: marasmos do quotidiano, da política, da sociologia e da medicina.
Há, com efeito, uma trama que se vai desenvolvendo dentro da família Raison, uns burgueses ligados à cultura e aos mais altos serviços do Ministério das Finanças e das Secretas Francesas. Numa substancial porção do romance, esta família é disfuncional, os filhos de Édouard não se cruzam e todos têm casamentos penosos — excetuando Cécile, religiosa frívola e doméstica, que encontrou o par perfeito em Hervé, um notário de humildes famílias, embora de adolescência rebelde —; foi necessário o patriarca Raison ter tido um AVC para que, com mais dinamismo, a família passasse da dianteira para o plano principal: digo isto porque, segundo escrupulosa análise, nas primeiras 80 páginas do livro tudo se baseia em dossiês e no trabalho de Paul para Bruno, o super-ministro das finanças, calculista, reservado, e que levou a França a um bom patamar de influência nos mercados.
Voltando a Édouard, todos os filhos se cruzam com a sua nova companheira, Madeleine, à qual muitas reservas lhe concedem até se aperceberem da pureza e do esforço cabal desta mulher para estar vinte e quatro horas por dia ao lado do seu amado, alimentando-o, levando-o a longos passeios na sua cadeira elétrica, a decorar o quarto hospitalar com fotos (mesmo que nelas se veja a antiga mulher, uma defunta escultora). Entretanto, Édouard melhora, planeia-se a sua fuga da EVC-EPR para a sua casa em Saint-Joseph , com a ajuda da auxiliar Maryse, mais tarde amante de Aurélien, um dos irmãos Raison. A partir daí dá-se a hecatombe total na trama: Paul, sexualmente impotente com a sua mulher Prudence, descobre que a mais dotada das sobrinhas é uma prostituta de luxo capaz de o reanimar na sexualidade, a eleição do novo Presidente da República é uma fachada para, no futuro, o predecessor se recandidatar, Aurélien suicida-se ao saber do iminente desemprego de Maryse, Cécile segura Hervé para que este se afaste dos antigos colegas da Extrema-Direita e, por última instância, Paul encontra-se canceroso.
Paul canceroso, eis as últimas 120 páginas do livro. Cento e vinte páginas de ocultação de factos, sexo frenético e irritante, perfusões químicas como alternativa à cirurgia da mandíbula e a leitura de Conan Doyle e Agatha Christie como alimento intelectual dispersor do fastio. Perante tal cenário, a morte está para breve e Houellebecq, talvez para se redimir em grande medida do volumoso romance, dá-lhe alguma dignidade e piedade: Prudence entrega-se corpo e alma a Paul, assim como tudo faz para que ele se sinta bem, tendo o desfecho sido concedido nas alamedas da floresta de Compiègne, sob égide de tons outonais, esplendidos, ainda que insuficientes para declarar a morte. Aqui, nesta floresta, talvez esteja o diálogo mais intenso do casal:
“ — Não acho que estivesse nas nossas mãos mudar as coisas – disse ele por fim.
[…]
— Pois não, meu querido. — Ela olhava-o nos olhos, com um meio sorriso, mas algumas lágrimas brilhavam no seu rosto. — Teríamos precisado de maravilhosas mentiras.”