Ano Agustina: um combate chamado amor em ‘Ternos Guerreiros’

por Catarina Fernandes,    30 Setembro, 2018
Ano Agustina: um combate chamado amor em ‘Ternos Guerreiros’
Ilustração de Luisa Silva Gomes / CCA
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Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.

Domingos, um rapaz de vinte anos de pele branca e “olhos amoráveis”, está a olhar para o mar enquanto espera a chegada de uma mulher. É inacreditável o tempo que passamos à espera, ao longo das nossas vidas, seja por uma pessoa, pelo momento ideal; ou por um sentimento que nunca chega a nascer. Domingos esperou no cais mais de duas horas por uma mulher que nunca lhe pediu que esperasse por ele; esperou sete anos para encontrar o homem que o tentara matar. Mas como a viagem é sempre mais importante do que o destino, também a espera é mais importante do que o alcançar da graça esperada. É na espera que nasce e morre esse combate chamado amor.

Domingos cresceu na Beira, “em pleno chafurdal de palha onde escorriam os excrementos dos gados quase junto da água que se bebia”, sob a silenciosa guarda de um pai “calado e duro como um santo de madeira”, sem a presença da figura materna, substituída pela protecção oferecida por uma Lavradora, a quem lia passagens do velho testamento. Um adolescente simplório em trajes e gostos, orgulhoso da sua pobreza, vai estudar para Lisboa com dezasseis anos. Durante dois anos arruína a fortuna dessa boa mulher, a Lavradora, que o toma sob sua protecção, em frívolas despesas com alfaiates; artigos de sport e, claro, com raparigas. É neste ambiente que se cruza com Porfírio, e, se há encontros que estão marcados pela mão do destino, este é um deles.

Temos de um lado Domingos, um homem sem afetos, “um homenzinho pacato, pouco dado a experiências excitantes”, que, cruzando-se com Porfírio, se torna o receptáculo das veleidades e façanhas desse homem sem paixões, mas com uma capacidade inigualável para criar a desordem e empolar a sua realidade com elevados requintes de malvadez. Porfírio vê em Domingos o confidente que buscou a vida inteira, partilha com ele as suas canalhices e quer que ele seja, mais do que conhecedor delas, a testemunha da ausência da sua consciência. Esta relação que é sempre de tensão e de tentativa de dominação resvala na tentativa de assassinato contra Domingos. A razão é clara: “pensamos sempre na morte daqueles em cujas mãos colocamos, por sublime tentação, a nossa consciência”. Porfírio ao fazer de Domingos seu confidente, assina a sua sentença de morte, porque um homem como ele não pode encarar a sua consciência de frente, sem lhe vetar um ódio mortal.

Após sobreviver aos intentos do amigo, Domingos procura-o, mas só encontra a irmã Amina, com quem partilha a obscuridade do irmão. A sua intenção não é, no entanto, a de vingar-se do opressor mas sim “estudar-lhe os invisíveis laços do bem e do mal”. Não o encontra e passa os próximos anos à espera desse reencontro.

Na sua jornada de espera, Domingos vai encontrando outros ternos guerreiros, como Regina – uma mulher que vive presa dentro de casa entregue a sonhos irrealistas e sem direcção – que acaba por convencer a casar-se com ele, dizendo-lhe que “o amor não tem nada que ver com sentimentos (…) os homens do amor são muito poucos e os homens de amores são quase todos”. Este casamento rapidamente se torna num suplício, sobretudo para a mulher Regina que enfrenta a dura tarefa de viver com um homem que não consegue alcançar de maneira nenhuma, perdendo-o para outras mulheres como Belém e Amina.

Belém, mulher de beleza exuberante, expulsa de casa ainda adolescente por se entregar a uma noite de amor sem volta, cedo percebe que os homens a disputam mas nenhum lhe oferece amor; torna-se senhora da sua própria sorte e usa dos meios que dispõe para sobreviver. Jovino, pintor caído em desgraça gravita à volta desta mulher que alimenta e humilha, esquecendo-se, no entanto, que “a fome não basta, às vezes para fazer-nos esquecer a fantasia”, e Jovino sonha com o dia em que lhe seja reconhecido o valor da sua arte e talento, deixando, assim, de ser motivo de escárnio. Amina, irmã de Porfírio, apaixona-se por Domingos, por aquilo que ela acha que é a sede de vingança deste contra o seu irmão. Desilude-se, no entanto, quando compreende que Domingos não tem qualquer intenção de um ajuste de contas com o seu atacante, apenas fazê-lo admitir que tentou tirar-lhe a vida.

Nada há em comum entre eles, e, no entanto, nada é estranho entre eles. A sua guerra é impraticável, no fundo, porque mentem, porque há uma inviolável mentira nos seus corações; eles julgam dever uns aos outros um nome de combate, e esse nome é afinal amor.

Os ternos guerreiros somos todos nós: o homem que mente; o homem que busca o amor; o pintor que procura o reconhecimento da sua arte; as mulheres que lutam pelo direito de serem senhoras dos seus destinos; o assassino sem consciência que procura a redenção e a liberdade pela morte daquilo que ama; “sou como vós e nenhum de vós”.

Agustina sempre audaz e, mais do que isso, eficaz, mostra-nos como, independente da época, os medos e as lutas que travamos dentro de nós e entre nós são sempre os mesmos, e têm sempre na sua génese essa eterna expectativa do amor.

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