As contradições do amor, em ‘O Meu Inimigo Mortal’, de Willa Cather

por Miguel Fernandes Duarte,    16 Março, 2018
As contradições do amor, em ‘O Meu Inimigo Mortal’, de Willa Cather

Como pode uma mulher vibrante, idiossincrática e amável – a inveja de todos os que de fora observam o seu sucesso – ser também fria, vingativa e colérica? E como pode um marido sensível, bravo e apaixonado, ter necessidade de procurar conforto fora da sua relação conjugal, sendo, ainda para mais, desmazelado a escondê-lo?

A novela O Meu Inimigo Mortal, da americana Willa Cather, agora publicada em português pela Relógio d’Água, conta, através da voz da jovem Nellie, a história da relação entre Myra e Oswald. Nellie, que no início do relato vai com a sua tia visitar Myra a Nova Iorque, sempre ouvira falar das maravilhosas histórias da mulher que abandonara a terra natal para fugir com Oswald, o amor da sua vida, fazendo-o à revelia do seu tio-avô, seu único familiar, que lhe fizera saber que a deserdaria se ela assim o fizesse. Mas, se neste primeiro contacto com Myra, aos 17 anos, Nellie se deixava impressionar pelo carisma da mulher, nada dando a entender que a fuga de Myra tivesse sido uma decisão errada, ao voltar a encontrá-la 25 anos mais tarde, numa pequena cidade da Costa Oeste dos Estados Unidos da América, já não é capaz de vê-la com os mesmos olhos.

Willa Cather

Não só porque a situação de Myra e Oswald mudara, mas também por lhe parecer evidente, tantos anos mais tarde, o carácter destrutivo e explosivo da relação do casal. Em Nova Iorque, Myra e Oswald, não sendo endinheirados, viviam uma vida decente, recebendo em sua casa artistas e organizando festejos de passagem de ano com eles. Vinte e cinco anos depois, vivendo já na cidade da Costa Oeste onde Nellie os encontra, a situação do casal é precária. Oswald fora despedido, tendo tido de se contentar com um novo emprego de muitos menores recursos, e Myra, doente, praticamente sem se conseguir mover, depende agora do marido para ver até as suas necessidades mais básicas satisfeitas. Nenhum amigo os visita já, e Oswald, no tempo que consegue arranjar pelo meio do seu trabalho precário, trata de cuidar da sua mulher da melhor maneira que consegue. Myra não é, no entanto, já capaz de aceitar a situação em que está. Oswald torna-se inevitavelmente a personificação da herança que Myra perdeu, ao ter fugido da sua terra natal, e ela fica incapaz de ver nele mais do que a razão de estar ali naqueles aposentos pobres, doente e sem condições.

A grande força e qualidade da novela está precisamente neste carácter duplo de Myra e Oswald, as diferentes faces que exibem – como se parecem aos outros, que os observam de fora, e como se parecem um ao outro – e na forma como só a inversão da situação do casal permite aos de fora vislumbrarem o verdadeiro carácter da relação. A personagem de Nellie, a narradora, acaba por isso por ter como função principal precisamente a ilustração desse facto (acabando por transformá-la em não mais que instrumento narrativo). Aquilo que Nellie não tinha conseguido ver 25 anos antes, era agora evidente: a relação de ambos não era perfeita, como faziam crer as histórias que de Myra se contavam. Aquilo que estava escondido surgia agora à superfície, impelido pelos anos e pela deterioração das condições de ambos.

Se, no início da relação, tudo tinha sido perfeito como parecia, com o acumular dos desapontamentos da vida, que em nada se relacionavam com o amor partilhado, o amor não tinha como não se quebrar, tornando-se inevitavelmente amargo por entre as boas memórias que dele sobram. Mas como pode o amor de uma vida tornar-se, afinal, o nosso inimigo mortal?

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