Aulas de crioulo em Lisboa, alunos e professores falam em benefícios
A língua crioula faz parte do dia-a-dia de Lisboa “há séculos” e o seu ensino está a ser assegurado por dois professores, que consideraram fundamental o domínio da língua materna para que as comunidades africanas possam aprender português.
“A verdade é que o crioulo, em Portugal, está presente há séculos. Nas músicas. Nas ruas. É uma presença de séculos“, afirmou Sara Simões, aluna de crioulo guineense no Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa.
As aulas que frequenta são lecionadas por Abdelaziz dos Reis Vera-Cruz, professor de crioulo guineense há dois anos, para quem, “a nível social, as pessoas vão atrás do crioulo”.
Em contacto diário com a camada mais jovem, Vera-Cuz está certo de que “é difícil encontrar hoje um adolescente em Lisboa que não sabe uma ou outra expressão de crioulo ou que não tenha vontade de aprender crioulo”.
O motivo inicial da inscrição de Sara Simões, arqueóloga de 37 anos, foi a ligação que tem ao país através do seu trabalho sobre as questões do tráfico negreiro, contudo, a aluna afirmou que as razões se multiplicaram depois de ter visitado o país.
“Aí foi mesmo uma necessidade, que não veio só de uma necessidade profissional, mas mesmo dessa vontade de me poder expressar e me poder comunicar e me relacionar com as pessoas com quem vou estar a trabalhar”, contou.
Numa iniciativa da Câmara Municipal de Sintra, os profissionais de saúde foram desafiados a inscreverem-se no curso de crioulo guineense. Teresa Teotónio Pereira é enfermeira e foi uma das interessadas por sentir que a aprendizagem da língua “era importante para conhecer melhor a cultura e a compreender melhor”.
A dificuldade da comunidade guineense em falar português tem justificado a presença de um tradutor nas suas consultas médicas. A solução apresentada, porém, deixou a profissional insatisfeita, que afirmou que, com um maior domínio da língua, consegue “compreender melhor o sentido da conversa”.
“Aprendendo a língua, também se aprende melhor a cultura e aproximamo-nos da cultura e aproximamo-nos da comunidade“, afirmou.
Após ter iniciado o curso de crioulo, a enfermeira relatou sentir melhorias significativas na relação com os seus pacientes guineenses.
“Quando percebem que eu percebo alguma coisa, não é, que há alguma compreensão e, que compreendo também a cultura, sentem-se mais à vontade, partilham mais e confiam mais“, referiu.
As melhorias não foram, contudo, só a nível relacional. Teresa afirmou, “sem dúvidas”, sentir-se uma melhor profissional depois de ter iniciado as aulas do ensino crioulo.
“Quando nos identificamos, conhecemos alguém que fala a nossa língua, sentimos uma coisa diferente e sentimo-nos também mais identificados com essa pessoa do que com uma pessoa que não fala a nossa língua. A língua é uma forma de juntar e aproximar mais as pessoas”, explicou Vera-Cruz.
Para Sara Simões, o começo das aulas foi também um ponto de viragem. O contacto que tinha anteriormente com a cultura crioula “era reduzido” e feito, sobretudo, através da música, mas afirmou que o ensino da língua lhe permitiu ampliar o modo como a perceciona.
“Eu acho que a aprendizagem de uma língua e, neste caso, do crioulo, ela não abre só um maior entendimento a nível linguístico. Ela permite-nos ter um acesso a um entendimento cultural e social que vai muito para além do que é entender um texto ou entender a música de uma letra. É perceber o que é que culturalmente, o que é que socialmente, o que é que historicamente está por detrás daquilo que resulta naquele texto ou naquela música“.
As duas alunas relataram, ainda, a dificuldade sentida no acesso ao crioulo escrito. Para Sara Simões, “isto tem uma razão”.
“O crioulo é a língua nativa de muitos portugueses. E quando isso não se reflete no acesso que nós temos isso tem uma razão, na minha opinião, que é ainda uma sociedade muito fechada“, sustentou.
Simões defendeu que este é um preconceito que não é novo e está inscrito num contexto muito próprio.
“Essa marginalização dos crioulos não se fez só nas ex-colónias. Ela aconteceu também em Portugal. E isso é algo que se repercute até hoje. Continua a acontecer e, para mim, esta marginalização faz parte de um racismo estrutural que ainda existe na sociedade portuguesa, em que essas línguas são consideradas ainda a língua do outro.“
Sónia Tavares é aluna de crioulo cabo-verdiano desde 2021 e pertence a uma terceira geração de afrodescendentes que já nasceu em Portugal. Descobriu o curso através da partilha de uma amiga nas redes sociais. Até lá, “não fazia a mínima ideia que existia um curso de crioulo” e decidiu inscrever-se para conhecer melhor as suas raízes.
A mãe é cabo-verdiana, mas já nasceu em Lisboa e nunca soube falar em crioulo. “Não era permitido à geração dela, aquela geração que nasceu em Lisboa, em 1940, não era permitido falar crioulo por causa da escola”, explicou.
“Há aqui uma geração de afrodescendentes que perdeu um pouco a sua identidade, a sua cultura. Esta preocupação que havia em que os filhos não se adaptassem o mais rapidamente à escola que conseguissem, acompanhar a escola, levou a que se perdesse um pouco desta identidade“, confessou.
Abdelaziz dos Reis Vera-Cruz, lamentou, sobre isso, a exclusão da opção do crioulo como língua estrangeira nas matrículas escolares, uma atitude que o faz acreditar que “o próprio Portugal não considera o crioulo como uma língua”.
Vera-Cruz sublinhou que esta situação tem dificultado a identificação dos alunos que precisam de ser encaminhados para aulas de português.
“O crioulo é o elemento que mais identifica os cabo-verdianos”, concordou Lonha Heilmair, professor de crioulo cabo-verdiano há 7 anos na Associação Caboverdeana Lisboa.
Os professores argumentaram que o desempenho de uma boa aprendizagem da língua portuguesa da comunidade africana está intimamente ligado ao ensino consolidado da língua materna. “Para um guineense ter mais domínio do português, é preciso conhecer melhor a sua língua materna, que é o crioulo”, disse Vera-Cruz.
O professor reforçou a importância do conhecimento da estrutura linguística para que os alunos sejam capazes de estabelecer comparações e consigam compreender as transformações que se fazem de uma língua para a outra.
“Quando a pessoa conhece mais a sua língua materna, tem a tendência de ter noção, quando vai aprender uma língua que não é a sua língua materna, de aprender melhor e poder fazer comparações, de poder saber que nessa língua as coisas funcionam assim. E na minha língua não é assim que funciona. Então, como isso não acontece, o guineense sabe falar crioulo, tem domínio do crioulo, mas não tem consciência gramatical, consciência do crioulo, da sua língua, como funciona. Não tem essa consciência, ou seja, não tem o crioulo como uma língua explícita”.
A crença de que o ensino em crioulo é benéfico para uma melhor aprendizagem do português, foi comprovado, na opinião de Heilmair, com as aulas bilíngues que Ana Josefa leciona no Agrupamento de Escolas da Moita.
O professor de crioulo cabo-verdiano acompanhou as aulas, desde 2013 até 2018, e constatou que as crianças africanas ao terem aulas em crioulo reagiam de forma diferente. “Os alunos estão concentrados, não querem falar”, contou.
Lecionadas na sua língua nativa, aquela que conhecem desde sempre, Lonha Heilmair testemunhou uma “proficuidade muito maior” nas crianças, que “não chumbavam, por exemplo, no terceiro ano, que costuma ser um ano em que há muitas reprovações”.
“De repente toda a fantasia que existia naquelas crianças explodia, vinha ao de cima e podiam falar livremente”, afirmou o professor.