Chelas Nha Kau: música e humanidade na capital de Lisboa
Numa sexta-feira de Julho estaciono o carro nas imediações da praça Eduardo Mondlane. São seis da tarde, corre uma brisa que suaviza o calor do dia. Primeiras impressões: à minha volta há mais verde do que numa série de zonas mais centrais de Lisboa; os blocos habitacionais erguem-se e apresentam-se com uma densidade considerável, mas a sombra das altas árvores frondosas, o espaço livre, a largura da avenida e os relvados evocam um sentimento de calmaria e tranquilidade. É a minha primeira vez na Zona J de Chelas, aliciado por um convite que me foi feito no documentário Chelas Nha Kau.
Tudo começara exactamente três semanas antes. No âmbito de um congresso na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e depois de um dia cansativo de conferências e comunicações, sou surpreendido pela exibição do filme no auditório principal da faculdade. Ao longo da hora seguinte sou sucessivamente interpelado por aquele universo vibrante: um subúrbio, jovens motivados, preconceitos, dificuldades e a música ao serviço da vida e do melhor que cada ser humano tem para dar. A montagem do filme, o ritmo do mesmo, não me saíram da cabeça. E — as boas montagens têm este poder particular — a mensagem faz eco dentro de mim ao longo dos dias seguintes.
Em particular, uma frase não me saía da memória, pronunciada por um dos rapazes logo na cena inicial do filme: “Pensam que Chelas é um bairro problemático, mas deviam vir cá ver como é que é”. Tomo uma decisão, diante de uma proposta tão tentadora: não vou escrever sobre o Chelas nha Kau antes de eu próprio ter ido conhecer aqueles protagonistas à Zona J.
‘Chelas Nha Kau’: um documentário vibrante
Mas comecemos pelo filme. O Chelas Nha Kau teve a sua estreia nacional e mundial no 18.º DocLisboa, em Outubro de 2020. É um filme colectivo produzido em conjunto pela cooperativa de criação multimédia Bagabaga Studios e pelos membros do grupo Bataclan 1950. O documentário foi produzido entre 2016 e 2019, numa montagem a dezenas de mãos que inclui footage de natureza radicalmente diversa, com planos estáticos a conviverem com outros mais dançantes e caóticos. Entrevistas formais e conversas informais lado a lado com performances, momentos de descontração e testemunhos dolorosos, um olhar sobre a arquitectura da cidade e sobre a expressão musical que vibra nestes jovens de Chelas. É um exercício polifónico cuja montagem alcança um raro equilíbrio: directo, intrigante, divertido e emocionalmente impactante.
Mas o que é, afinal, o Bataclan 1950? É um grupo de amigos, de produtores, de MC’s, jovens das várias zonas de Chelas, que se reúnem na Zona J, numa arrecadação desocupada num prédio junto à praça Eduardo Mondlane. Os Bataclan equipam o espaço com um sofá, uma mesa, uma Playstation. Passa a ser um spot de convívio e de criação artística — de expressão. O filme apresenta-nos o espaço e toda a envolvente da rua que é também deles. É uma história de lugares e de pessoas — com 1950, o código postal do bairro, a servir de mote agregador.
O filme relata ainda o processo de gravação e realização do videoclip de “Chelas City”, tema dos Bataclan 1950 / MBM que conta, à data, com mais de 1.660.000 visualizações no Youtube. Este tema constitui quase o esqueleto do documentário, em torno do qual tudo é construído. A letra, em crioulo, reflecte o o dia-a-dia dos jovens em Chelas e o propósito de união do grupo: “Chelas city nha kau / Zona I, Zona M, Zona J, Zona L, N1, N2 / Eh nos / Nu sta junto e misturado / União di tudo bairro” [Chelas City, meu lugar / Zona I, Zona M, Zona J, Zona L, N1, N2 / Somos nós / Estamos juntos e misturados / União de todos os bairros].
Em várias etapas, Chelas Nha Kau desdobra-se em diferentes reflexões. “O que é ser jovem na zona J?”, o mote que estrutura o documentário, desdobra-se numa série de diferentes problemáticas: a música como veículo de expressão; a convivialidade no espaço público; os preconceitos projectados sobre as pessoas e o lugar; a tensão entre a polícia e os habitantes; os episódios de violência; as injustiças sociais; as dificuldades e os sonhos de jovens que querem expressar-se e levar mais longe o nome do seu bairro.
Praticamente metade do documentário é filmado pelos próprios membros do Bataclan 1950. A câmara nas suas mãos capta circunstâncias e expressões a que não conseguiríamos aceder de outra forma: a confiança entre todos gera um conforto que se traduz em cenas descontraídas para o espectador. E o desafio de o controlo total sobre a câmara revela-lhes outras facetas de Chelas, com aquilo que o olhar artístico quase sempre imprime de novo sobre as realidades que habitamos. A certa altura, e enquanto assistimos a uma panorâmica do vasto espaço aberto que separa duas zonas do bairro, ouvimos a Rita partilhar atrás da câmara: “Oh, a zona é linda, ganda videoclip que a gente pode fazer. Isto é lindo, tudo”.
Chelas Nha Kau não pinta uma Zona J ficcionada: os conflitos existem, os problemas sociais, as dificuldades, a exclusão. Mas todas essas realidades — que nos entram pelos olhos dentro nos noticiários e jornais — conseguem por vezes ficcionar uma Chelas que não existe para lá disso. O documentário incide luz sobre tudo o que o mediatismo escolhe ignorar. “Nós queremos o melhor para a nossa zona. Se acontecer o pior, a gente tenta melhorar. É sempre assim. Temos é de estar sempre juntos e unidos”, partilha um jovem no início do filme.
O documentário abarca ainda outras perspectivas. É dada a palavra às mães destes jovens, e ao trabalho árduo que sustenta a promessa de um futuro diferente que aquelas querem dar aos filhos. “Eu não tinha condições, mas eles estudaram até ao fim”, partilha uma delas a dada altura. Há um cuidado em conhecer estas visões complementares.
E, como todos os bons filmes, também Chelas Nha Kau ressoa para lá da realidade objectiva que retrata, e nos convida a reflectirmos sobre nós mesmos. Quando a jovem Rita é desafiada de improviso a recordar umas rimas — e embora admita já ter deixado de cantar — há uma torrente de paixão a jorrar de forma envergonhada mas sentida, numa performance introvertida mas emocionada. Ressoa em mim, enquanto espectador, uma convicção: que os obstáculos e a exigência da nossa vida não nos roubem o direito de nos expressarmos e a oportunidade que é sentirmos e partilharmos o melhor de nós. É este um dos manifestos implícitos do documentário: que o orgulho pelo que somos e a confiança (em nós mesmos e nos outros) sejam passos na construção de um futuro partilhado, mais brilhante e justo.
“Ver como é que é”: uma ida à Zona J
Três semanas depois de ter visto o filme no Porto sou recebido junto ao coreto na praça central da Zona J pelo Ricardo Venâncio Lopes e pela Luciana Maruta, dois dos membros dos Bagabaga Studios responsáveis pela produção do Chelas Nha Kau. Partilho com eles que me estou a sentir dentro do filme, a pisar pela primeira vez os espaços que antes visitara à distância por meio da tela de projecção. “Aqui é o Bataclan”, diz-me o Ricardo, apontando para a minha direita. Sinto um respeito súbito e inexplicável pelo prédio ali ao lado: no interior daquele edifício uma arrecadação ocupada tornou-se vórtice de criatividade e efervescência, para lá dos limites que a institucionalização das práticas tantas vezes dita sobre a produção artística. A cultura é muito mais do que as organizações formais e do que os acontecimentos distribuídos e publicitados pelos meios estabelecidos.
Reconheço o jardim, espreito o intervalo entre os prédios, o campo de futebol… e a paisagem é realmente bonita (lembro-me da jovem que no filme exclamava “A zona é linda”). O filme serve-me de ponte e escorrega para uma realidade que antes desconhecia, e pela qual agora sinto uma curiosidade que me atrai e, de certa forma, me deslumbra.
No compasso de espera pela chegada dos Bataclan 1950, com quem me vou poder encontrar daí a pouco, a Luciana partilha comigo que um dos factores que distinguiu a produção do Chelas Nha Kau foi o tempo: quatro anos de trabalho, muita dedicação e a vontade de levar o projecto até ao fim. Há uma diferença fulcral entre o processo de produção deste documentário e o de muitos projectos de acção social na Zona J, de natureza temporária e/ou intermitente. É que quando o financiamento inicial do projecto de intervenção “Dá-te ao Condado E6G” terminou os Bagabaga Studios continuaram a correr por amor à camisola, movidos pelos laços criados com os membros do Bataclan 1950.
Essa continuidade, que se estende no tempo ao longo de anos, resulta de uma visão e uma motivação: contar esta história, fazê-lo de uma forma artística e bonita, e espalhá-la a todos os que estiverem disponíveis para a conhecer. Num contexto de construção colaborativa, a interligação emocional entre os intervenientes passa a ser o motor capaz de impulsionar o projecto. A esse propósito, os Bagabaga Studios estão a preparar um livro que se debruça sobre a aventura da realização de um filme colectivo, alargando o debate aos universos das artes, da academia e da sociedade civil.
Chelas Nha Kau tem estado a percorrer nos últimos meses um interessante circuito de festivais de cinema – para além do DocLisboa, teve a sua estreia internacional no passado mês de Junho no Sheffield DocFest 2021, um dos mais conceituados do mundo na área do documentário. O filme ganhou ainda em Maio todos os prémios de cinema atribuídos no Festival Política. Vão-se seguir mais uns quantos festivais antes de o filme vir a ser, num futuro não muito distante, disponibilizado online em plataforma de acesso gratuito, conta-nos o Ricardo; e, se os Bagabaga conseguirem encontrar apoios, uma sessão no espaço público da Zona J (imagine-se a força que esse momento terá).
Neste circuito, os Bagabaga Studios fazem questão de trazer sempre com eles membros do Bataclan para os debates que se seguem às sessões; afinal, são eles os “produtores artísticos”, os protagonistas. A autoria de Chelas Nha Kau é obra de dezenas de mãos, num processo construído em diálogo continuado ao longo de quatro anos. O sorriso do Ricardo e da Luciana, satisfeitos com o acolhimento que o filme está a ter junto dos públicos que já tiveram a sorte de os ver, revela a realização pessoal que o “filme-processo” também lhes tem dado.
Conhecer os Bataclan: “O que é que estás a achar de Chelas?”
A dada altura surge o Sandro junto ao coreto. O Sandro Santos, membro do Bataclan 1950 desde o início, tem hoje 24 anos. Apesar do grupo ter muitas flutuações de pessoas, é hoje um entre os cerca de vinte e cinco membros mais assíduos. Reconheço-lhe de imediato a cara e a voz — o Sandro é um dos membros mais intervenientes ao longo do filme, assumindo um papel de anfitrião, fazendo perguntas e estabelecendo pontes entre muitos dos jovens e das suas histórias.
Talvez por ser verão, os Bataclan têm estado mais pela rua do que no spot do prédio. “Actualmente estamos parados ali na praça”, diz-me o Sandro, apontando para um grupo a cem metros de onde nos encontramos. “Estamos aí sempre, 24 sobre 7, a conviver”.
Partilho com o Sandro o quanto gostei do documentário; e faço-lhe umas quantas perguntas que levava na algibeira. Como é que ele se sente por o videoclip de “Chelas City” ter mais de um milhão e meio de visualizações no Youtube? O Sandro conta a história: “Ainda antes do clip ter sido realizado, já o som circulava em grupos de Whatsapp entre a juventude de Chelas. Muita gente já tinha o som no Whatsapp. Não estava bem misturizado, mas a malta ia partilhando”. Depois de lançado o clip, “vimos que foi estrondoso. Não só pessoas da zona mas também muita gente de fora viu”. E — como não é raro quando se trata de arte — o sucesso tem consequências que extravasam o objecto artístico: “Nós actualmente vamos a certos sítios e sabem quem somos. Sabem que somos proactivos, que tentámos procurar alguma coisa na nossa geração, não deixámos só o tempo passar.”
A música, claro, é uma constante na sua vida. Especificamente o rap. “Basicamente a música está sempre no nosso meio”. Que artistas mais te inspiram hoje?, pergunto-lhe. “Tenho vários. Considero o Baguera uma inspiração, sinto o que ele canta. Eles estão a dar freestyle, ali à frente”.
Avançamos para ir ter com a meia dúzia de membros do Bataclan 1950 que se encontram ali ao pé, a improvisar rimas ao som de uma coluna portátil. Sou apresentado pelo Sandro e pelo Ricardo ao grupo, e partilho com eles o quanto gostei do filme.
Um dos membros do Bataclan presentes é precisamente o Baguera — nome pelo qual é conhecido Bruno Borges. “A música sempre fez parte de mim. Gosto de vários estilos”, partilha, embora confesse que ultimamente não se tem dedicado tão activamente como há uns anos. “Tenho a cabeça noutras cenas, outras prioridades. Mas é uma cena que não vai morrer, porque está dentro de ti. No rap também acontece haver fases. São momentos. Agora estás mal, agora estás contente, agora estás triste…”. Mas mesmo quando os Bataclan 1950 não actuam nem lançam coisas novas, isso não significa que não haja correntes submersas que continuam a ser veículos de expressão vibrantes: “Para fora não estamos a mostrar nada mas dentro fazemos as nossas coisas, temos as nossas músicas e partilhamos entre nós. A gente faz, faz para nós”.
Pergunto ao Baguera o que significa para ele o Bataclan. “Às vezes as pessoas podem pensar que o Bataclan é uma granda coisa, mas… o Bataclan somos nós. A questão nem sequer é se vamos ou não actuar, ou onde. Podemos ir a uma festa, podemos ir a Espanha visitar… é o Bataclan”. É, portanto, uma comunidade. “Se forem a ver, em todo o lado, até no Porto, no Algarve, há um Bataclan. Só que com nomes diferentes”. Mas faz questão de frisar: “Em todos os lados há um Bataclan mas nem em todos os lados há Chelas”.
Pergunto ao Baguera o que é que Chelas tem de especial para ele. “Hoje em dia há bué gajos que andam a fazer música, que sim senhora, estamos a ouvir, porque a melodia e o beat são engraçados. Mas eu acho que os de Chelas são diferentes. Vais ouvir o Tchapo, Sam the Kid… mesmo os putos de hoje em dia, do Bataclan, cenas que ninguém lançou para fora, que cantaram aqui entre nós… Temos o Rato do Bairro Chinês. Buéda gajos. Como Chelas há poucos sítios. É uma cidade dentro de outra cidade. Por isso é que nós dizemos que Chelas é a capital de Lisboa. Chelas é grande, mano. Só o nome tem força”.
O Bataclan 1950 é composto, na sua maioria, por frutos da geração do final dos anos 90 e do início dos 2000. Mas entretanto vão surgindo novos grupos de pessoas mais novas. “Na nova geração também já aí vários grupos, com vários putos de várias zonas”, diz-me o Sandro. Mas foram os Bataclan os primeiros, segundo parece, a quebrar as barreiras que antes dividiam as várias zonas de Chelas. O Baguera diz que “Chelas tem algumas zonas, e vários tentaram juntá-las, pessoas mais velhas, tentaram, tentaram… e nós conseguimos isso. Juntámos e criámos algo”. Como é que isso aconteceu? O Sandro explica: “Nós na escola já nos conhecíamos um bocadinho uns aos outros. Eu também não era da zona, eu não sou daqui. Estou aqui desde que o Bataclan começou, e sinto-me da zona, actualmente posso dizer que sou da zona. Era da zona ali à frente, esses prédios que se estão a ver daqui. Deixou de haver esse rótulo por pessoas como eu e como outros tantos”.
O Sandro orgulha-se do resultado final do documentário: “A gente fez uma cena diferente”. E, já próximo do final da conversa, quando ia lançar mais uma questão, o Sandro interrompe-me: “Deixa-me fazer-te uma pergunta só para gravarmos a tua resposta também, pode ser?”. Ao fazer-me sinal para eu aproximar da minha boca o telemóvel em que eu estava a gravar tudo, pergunta-me: “O que é que estás a achar de Chelas?”.
No documentário, era sempre o Sandro que fazia as perguntas para os seus companheiros responderem. Desta vez fazia-me a mim: ao espectador curioso que respondera ao convite de ir conhecer aquele lugar. Dificilmente poderia ter imaginado uma melhor primeira impressão da Zona J. É a partir do melhor que temos e somos que podemos reescrever as narrativas e as visões sobre os lugares e uns sobre os outros. Espero voltar brevemente. Chelas não é a minha capital, mas de hoje em diante eu sou um bocadinho mais dela.