Decreto estado de monotonia
“Esperem aí, a situação pandémica não vai ser tão aborrecida como a estão a pintar”, dizia eu, quando regressava de Vila Real a arrastar a mala deficitária num rolamento. O meu pensamento dirigia-se para casa, concretamente para um compartimento bem específico — o sofá — apetrechado do material necessário à sobrevivência de qualquer jovem de então: um livro, um computador que permitisse a contínua produção de crónicas e música em altos brados (não confundir com ruído). Convém, caso pretenda não cair no engodo da desidratação, ter por perto água e alimento. Ou um bom digestivo que o posicione do outro lado da barricada — a alegria efémera. Frase encaixada quer num anúncio publicitário, quer no combate a uma pandemia: a escolha é sua!
“Ora bem, a evasão à realidade, que por si só é anormal, vem precisamente em situação anormal. Que engraçado!”. Do ponto de vista da lógica, existe um quê de fundamento: aulas, café, jantares de aniversário, jantares sem razão aparente, noites atrás de noites, pielas, queimas das fitas, conversas até às tantas da manhã (sim, o intruso na vasta lista é o vocábulo “aulas”). A enumeração pode conter alguma espécie de sarcasmo proveniente da ingenuidade e de um certo pedantismo que caracteriza a comunidade juvenil, mas a rotina não foge (quase) nada ao que supracitei. “Não sabes nada da vida” — é o que oiço, quando digo que interrompi a minha rotina — e efetivamente não sei. Mas a minha rotina era melhor do que a deles e isso reconforta-me!
Por sua vez, os pais metamorfosearam o queixume do cansaço e as críticas erigidas ao patronato em súplicas de voltar a sentir o maior cansaço possível e a acusar a pressão imposta por quem dita as regras de produção. Contudo, a labuta doméstica continua a ser desempenhada com maior vigor e, se anteriormente se voltavam para a roupa, a loiça, o pó, a cozinha e as casas de banho, hoje voltam-se para o mesmo, mas com empenho redobrado ao seu expoente. “Há sempre algo a fazer em casa” — mãe, um ser único — e a teoria desenvolve-se: eles desarrumam e arrumam propositadamente, vezes sem conta. Tenho a certeza…
No mundo exterior — e digo isto porque respeito as ordens dos órgãos máximos — tudo está civilizado. A páscoa aproxima-se, os sinos tocam a rebate e as condições meteorológicas são favoráveis. As pessoas cumprem as regras, caminham ordeiramente pelas ruas, respeitam o espaço de areia confinado a outrem e colocam corretamente o guarda-sol, não buzinam nem perdem a paciência na fila enquanto se dirigem para férias e açambarcam tudo à mão de semear nas idas ao supermercado. Tudo está calmo. A desobediência civil é só um pretexto para sugar o que custa a ganhar e para conferir às autoridades um poder exacerbado.
O tempo pré-surto e o surto propriamente dito não são muito diferentes entre si. Donald Trump continua a encabeçar a maior potência mundial, Jair Bolsonaro é o rosto atlético e engripado do Brasil, a União Europeia permanece desunida e não tão europeia quanto isso, Marques Mendes e Paulo Portas recusam a deixar o comentário político e epidémico, as redes sociais erigem-se como campo de batalha ideológica e Marcelo Rebelo de Sousa dimana o esboço sorridente.
Pensando bem, existe algo que se alterou: a propagação da informação que vigora. As atenções e o foco são canalizados para o tema que assola a humanidade. Já não se contemplam aquelas guerrilhas e crendices políticas, os escândalos que envolvem a Justiça e os diversos mundos pegajosos que a rodeiam, os assaltos e os homicídios, a cobertura de eventos culturais ou desportivos, as lutas sindicais e as manifestações exaustivas e toda essa panóplia de monotonia a que estávamos acostumados. Agora, tudo é monótono outra vez…
Preocupa-me o facto de todas as tarefas que mencionei anteriormente serem desempenhadas em período pré-pandémico e monótono. O facto de as continuar a realizar agrava, de que forma, a monotonia que já existia? Tal como o amor, monotonia com monotonia se paga!
Vou voltar à monotonia.