Dia mundial da poesia: celebrar o confronto da linguagem com o silêncio
A 21 de Março assinala-se mais um Dia Mundial da Poesia, esta celebração foi instaurada na 30.ª Conferência Geral da UNESCO, a 16 de novembro de 1999 em Paris. Para celebrar esta sublime forma de produção cultural, de tradição e inovação linguística, de sentimento na palavra escrita e de memória, destacamos alguns poemas de poetas lusófonos imperdíveis, mas primeiro tentamos definir o que é a poesia (dentro do possível).
“Os críticos podem dizer que determinado poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.”
“Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa
Este pequeno excerto remete para a qualidade imaterial da experiência poética e dá a entender que a mesma está intimamente ligada à percepção particular da linguagem e aos limites da sua expressão. Neste sentido, o professor de Filosofia Sousa Dias (1956-) no seu livro “O Que É Poesia?” (Documenta, 2014) infere que “a experiência poética é experiência da linguagem e, ao mesmo tempo, do que resiste ao seu poder. A poesia é experiência de uma impotência de dizer como horizonte da linguagem que a poesia força a linguagem a mostrar, ou a dizer. Todo o poema diz a impotência da linguagem, diz um indizível, ou mostra, no modo «metafórico» de dizer, a indizibilidade do que diz.”. Sousa Dias complementa esta linha de pensamento, sobre a experiência poética, com esta definição que cimenta a produção poética enquanto parte indivisível dessa mesma experiência: “A poesia é pois experiência dos limites do dizível, confronto da linguagem com o silêncio ou a impotência de dizer, mas justamente o recorte dessa impotência ou desse silêncio num dizer é a operação específica da arte poética, a sua insubstituível criação.” (“O Que É Poesia?”, de Sousa Dias).
Os poemas que decidimos destacar neste artigo são da autoria de Sophia de Mello Breyner Andresen, Al Berto, Manuel António Pina, Ana Luísa Amaral, Ruy Belo, Florbela Espanca e Alice Neto Sousa.
Liberdade
O poema é
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba —
O acompanha
Sílaba por sílaba
O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos
“O Nome das Coisas”, de Sophia de Mello Breyner Andresen
*
Vestígios
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas – noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool – pernoita-se
onde se pode – num vocabulário reduzido e
obsessivo – até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva – vamos pela febre
dos cedros acima – até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
“O Medo”, de Al Berto
*
A um Jovem Poeta
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser
que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças
como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.
Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da razão
e passagem para o que não se vê.
“Todas as Palavras”, de Manuel António Pina
*
Apontamento em Voo
Não conseguiu o tempo
do poema
coincidir-lhes voo,
um vento atrás:
ao das jovens cegonhas
pelo céu,
lisas e puras
Só tentar-lhes compasso
em arremedo
E o passo arrastado
do poema
ficou-se nesse atraso:
o motor raso,
os dedos sob a asa —
do avesso
rasgando, sem rasgar,
o dúctil ar
da folha —
“O Olhar Diagonal das Coisas”, de Ana Luísa Amaral
*
Cinco Palavras Cinco Pedras
Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
E em parte resume o que penso da vida
Passado o dia oito de cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
E delas vem a música precisa
Para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo
Antigamente quando os deuses eram grandes
Eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas
“Todos os poemas”, de Ruy Belo
*
Ser Poeta
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim…
É condensar o mundo num só grito!
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!
“Sonetos”, de Florbela Espanca
*
Poeta
Eu era pequena,
Escola primária,
Inocente,
Mas curiosa nas palavras.
Peguei nos lápis,
Aqueles,
Com todas as paletas de cores,
Amarelo-torrado,
Azul-marinho,
Cor…
Com o lápis na mão,
Sem nem esconder a minha confusão,
Olhei para o lápis, e para mim,
Que eu ainda era da altura de a língua afiar,
Tocar os sinos presos na garganta,
Dizer o que sinto e me espanta:
— Professora.
— Sim.
— Que raio é um lápis cor de pele?
Levei uma reprimenda, uma criança de tão tenra idade
A questionar a autoridade,
E olhava para o lápis,
Olhava para a minha pele,
Olhava fixamente para aquele lápis cor… de pele.
Poeta.
Naquele dia, desisti de falar sobre unicórnios
E fazer citações,
Porque ser-se poeta é falar de emoções,
Mas bem podia citar Luís de Camões, Fernando Pessoa
Sem dizer um poeta preto.
Pensei em então citar Martin Luther King ou Nelson Mandela
Só para ficar bem na tela.
Ignorar o vazio do mundo,
Fazer dos ouvidos mudos,
Porque preferem um poema com o sol no canto do papel,
As nuvens pintadas a azul,
Sem a dor no fundo.
Falar do que incomoda?
Andar a afiar a língua,
O que é que isso importa?
Porque naquele dia fizeram de mim uma
Poeta cor de pele,
De lápis cinza aguçado acastanhado,
No nevoeiro dos mares
Dantes e sempre navegados,
A minha língua é o lápis
Onde escrevo a cor dos meus sentimentos,
Quem vai perder tempo a escrever versos de amor
Com estes tempos, estas tempestades, estes sismos, ismos
E eu sei, podia ser menos uma poeta a falar sobre racismo
Mas preferiram o quê?
Que em vez do lápis a carvão pegasse uma arma na mão?
Que caísse em tantas outras estatísticas, noticiários?
Que me escondesse por detrás dos armários?
Que nunca tivesse chegado a terminar o secundário?
“Falas tão bem português”, fecho os olhos a engolir todos os clichês.
“Mas não ouves kizomba, ah, claro que sabes dançar”, dizem enquanto meto os Arctic Monkeys a dar.
E já se sabe, quanto mais talento, mais se tolera a cor, porque a Beyonce pode ser preta afinal de contas o que importa, é o interior.
Ouço as palavras a fazer ricochete,
Num corpo em bala,
Eu vejo,
De sol a sol,
Mantemo-nos fortes,
Que as mães têm calos de pensar,
Os pais as mãos a esbranquiçar.
Fazemo-nos de fortes,
Que mais poderíamos ser?
Numa sociedade de moldes,
A fingir entender,
A rir no eco a seguir,
A pensar que Black Lives Matter é mais um post para curtir.
Mas Muxima Uamiê está sofrendo,
Respira,
Mãos ao alto, levanta a poesia,
Esta poeta cor de pele,
já pintou a carta de alforria.
Alice Neto Sousa