Emigrantes

por José Valente,    21 Julho, 2023
Emigrantes
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Eu sei, eu sei. Passaram-se meses desde da minha última crónica. A minha fortuna nesta evidente indisciplina é que vocês, caros leitores do Comunidade Cultura e Arte, tão pouco querem saber se eu entrego textos ou não. Coitado do director que nem um aviso recebeu, uma justificação para o meu desaparecimento. Mas, confesso, não tenho nenhum argumento que me favoreça. Falhei e nem tenho uma desculpa de jeito.

Pior do que isto só o motivo por detrás do meu regresso a estas crónicas sobre música. Um pretexto preguiçoso e egoísta. 

No próximo fim de semana, irei estrear um conjunto de 5 peças alusivas a 5 comunidades emigrantes do Porto. Relacionei esta notícia com uma crónica antiga e fiei-me na hipótese de redigir um breve testemunho sobre esta criação, sobre Sibila Bilíngue

O que é Sibila Bilíngue? Cito um excerto explicativo, retirado do site do Museu e Bibliotecas do Porto:

“«Sibila Bilingue» é um projeto que une a escuta, o encontro, a poesia, a música e um gesto de aproximação às comunidades migrantes que habitam a Invicta, comunidades das mais diversas origens que dão hoje um colorido novo, belo e desafiante a uma cidade que obriga a pensarmo-nos nessa ponte entre duas línguas: cidade-bilingue de universos culturais, sociais, religiosos, musicais.

Depois de um primeiro ano em que quatro jovens poetas portugueses se encontraram com cinco grupos de migrantes, sejam estes de facto ou de espírito, apresentamos os primeiros resultados desta colisão a baixa velocidade: os poemas de Francisca Camelo, Gisela Casimiro e Miguel-Manso passam pela invenção compositiva de José Valente, estendem-se ao ensemble improvável de músicos da Orquestra Filarmónica Portuguesa, para nos oferecerem um primeiro aroma das vozes da comunidade Cigana, da comunidade Brasileira, Africana, da Asiática, do Subcontinente Indiano e da Europa de Leste.

Rui Spranger empresta voz aos poemas lidos. O próximo ano deste projeto semeia-se nestas duas celebrações. Que a centralidade da cultura faz-se duma progressiva e urgente abertura às margens.”

Nos últimos meses ocupei-me sobretudo com a imaginação e concretização das obras pretendidas. O propósito motivou-me. Sinto prazer em conhecer pessoas diferentes, em aceder a culturas ricas, mas distintas e, nalguns casos, longínquas. Não se trata apenas do gáudio inerente à descoberta. Criar algo, fruto deste contacto com as comunidades emigrantes, impõe uma responsabilidade entusiasmante. Compor a partir de uma plataforma abrangente, farta de referências culturais, de outras músicas para ouvir, é fascinante. Garantir o respeito pela essência intrínseca das culturas emigrantes em causa, esse é o desafio.

No processo de Sibila Bilíngue usufruí da habitual generosidade emigrante. Ou seja, da disponibilidade das pessoas que, aliciadas pela oportunidade de contarem a sua história, seduzidas pela minha curiosidade sobre o seu país e costumes, aceitaram partilhar as suas opiniões e conhecimentos. Compreendo bem este sentimento. Também eu gostei (e gosto!) de exibir as qualidades culturais portuguesas durante os meus 10 anos de emigração. 

As conversas foram fluídas, fáceis, apesar da impertinência de algumas perguntas. Contudo, como me ensinou o guineense Generoso (nome próprio), nenhuma questão é incómoda. Tudo depende se a intenção que provoca a pergunta é verdadeira ou dissimulada. Se esta for falsa, maliciosa ou tacanha, há o risco de ofensa, de um desconforto causado pela agressividade inerente à ignorância.

Também entrevistei uma mulher extraordinária, moçambicana, que se formou em matemática no início dos anos 60 do século passado no Porto (um dos cursos mais difíceis na época). Criou vários filhos, viveu entre Moçambique e Portugal, ensinou em muitos lugares e sempre foi, e continua a ser, uma activista.

Conversei com um rapaz de Bangladesh. Apaixonado pelo seu país natal e pela música, explicou-me que o Bangladesh é “um sítio muito ribeirinho”, com aproximadamente 13 mil rios. Falei com uma russa, professora reformada, que se mudou para Portugal nos anos 90, para ensinar canto lírico nos Açores; com um malinês, um ávido coleccionador de arte, dono de duas importantes galerias de arte africana em Portugal.

Toquei com ciganos, no Bairro de Contumil. Aos anos que ansiava por esta experiência! Um dos participantes confessou que sempre tivera o desejo de ouvir um violino na música cigana. Eu não hesitei, peguei na minha viola d’arco (que não deixa de ser um instrumento parecido e da mesma família) e, juntos, improvisámos uma malha aflamencada. Foi palpável a satisfação dos meus comparsas após este diálogo musical inesperado. Então, um senhor disse-me que o talento dos ciganos é a música. Na sua opinião, a música é-lhes natural porque todos ciganos nascem com o dom da música. 

O meu caderno de apontamentos encheu-se de particularidades sobre as peripécias contadas, os sonhos sentidos, e os feitios únicos que desvendei nestes encontros.

Depois, enumerei uma lista de obras para ouvir e aprender. Uma biblioteca auditiva vasta que escutei exaustivamente até começar a assimilar intuitivamente certas nuances musicais determinantes para a caracterização das 5 culturas em foco.

Além da música, tinha que tomar atenção aos poemas. Quando já estava completamente inserido no processo criativo, quando já só respirava música africana, brasileira, clássica indiana, ucraniana, dos Balcãs, cigana etc. passei a interpretar os poemas. Analisei-os, destruí-os, voltei a juntá-los, agrupei os seus temas, distingui personagens, lugares, sentimentos e estruturei os versos a partir de semelhanças, metáforas correspondentes e denúncias equivalentes. 

Com esta investigação comecei, sem grandes sobressaltos, a encontrar a forma musical e os motivos principais que servem as 5 peças, entretanto, compostas.

Finalmente, dirigi os ensaios com um ensemble de 15 músicos: um quarteto de cordas, guitarra, contrabaixo, dois clarinetes, voz falada e muita percussão!

O objectivo é alcançar a melhor obra de arte possível. Por isso, os ensaios são momentos de rigor, transpiração e repetição, muita repetição. Mas também de compromisso, partilha e deslumbramento.

Não me alongo mais com esta viagem ensimesmada e limitada, reveladora apenas de um ponto de vista sobre o trajecto criativo de Sibila Bilíngue.

Resta-me convidar-vos a assistirem aos concertos de estreia:

pastedGraphic.pngSÁB 22 JUL, 18H
pastedGraphic_1.pngBiblioteca popular Pedro Ivo (Praça do Marquês de Pombal (Porto)
pastedGraphic.pngDOM 23 JUL, 16H30
pastedGraphic_1.pngCasa-Museu Guerra Junqueiro

E termino esta crónica com uma lista. Esta é a lista de músicas que me acompanharam durante este percurso criativo, editada a partir da lista original, reduzida de uma duração de dois dias para três horas e pouco e escuta. 

Esperemos que este chute para à frente, que a redacção desta crónica circunstancial, seja o arranque para uma série de reflexões sobre o melhor assunto do mundo: a música. 

Bom proveito!

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