Ensaio. A coragem de Eros
O amor parece uma força fugaz.
Num dia estás apaixonado,
no outro dia já não estás.
Será que se pegarmos em 300g de carinho, mais 450g de comunicação, 3 abraços inteiros, 200ml de empatia e 1 colher de sopa de paixão conseguimos a receita para o amor? O amor não é um bolo. Para o amor não existem receitas. O amor é esta coisa que nos acompanha por dentro (no estômago e no peito) ao longo da vida, que nos une uns aos outros, que nos faz sofrer, mas também nos faz crescer. Somos seres sociais e durante a infância, para crescermos de forma saudável, tanto a nível físico como a nível emocional, precisamos de um outro, um cuidador. Este é o nosso primeiro amor. A seguir, crescemos em interacção com amigos/as, colegas, namorados/as. Criamos laços familiares, fraternos, amigáveis e românticos. Para além disso, só somos, porque o outro é. Construímos a nossa identidade (ou self) em relação com o outro (com os pais, com os amigos, com os amantes).
O amor habita uma casa subjectiva. Apesar de considerar ousado e difícil teorizar sobre o tema, considero que é pertinente pensar sobre como poderemos estar a viver o amor nos dias de hoje. Não vos trago respostas, trago-vos perguntas. Focando o amor romântico, será que houve alguma mudança? Alguns amaram num tempo onde não existia uma sociedade hiperativa, onde não existiam redes sociais, onde não existiam smartphones e onde não se escolhia um futuro amante a fazer swipe right. Para pensarmos, também precisamos de um outro e por isso irei invocar alguns autores que me poderão ajudar a pensar sobre o tema em foco.
Considero que para amar é preciso coragem. Esta última palavra, tem origem no latim coraticum, um termo composto por cor, que significa coração, e o sufixo aticum, utilizado para indicar uma acção referente ao radical anterior. Coraticum significa, uma acção do coração, isto porque se acreditava que era no coração que se encontrava a coragem (Mikaela Oven no livro Heartfulness). Esta ideia cruza-se com a de Bauman (2004) no livro “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos”, quando o mesmo afirma: “Sem humildade e coragem não há amor. Estas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e contínuas, quando se entra numa terra inexplorada e não-mapeada. E é a esse território que o amor nos leva ao se instalar entre dois ou mais seres humanos.”. Podemos considerar que tanto a coragem como o amor parecem ser alunos da mesma escola, a escola do coração.
Será hoje o amor uma força fugaz? Bauman (2004) diz-nos que a súbita abundância e a evidente disponibilidade das experiências amorosas podem levar à convicção de que amar (apaixonar-se, instigar o amor) é uma habilidade que se pode adquirir e que o domínio dessa habilidade aumenta com a prática e assiduidade do exercício. O autor acrescenta a ideia de que podemos acreditar que as habilidades do fazer amor tendem a crescer com a acumulação de experiências e que o próximo amor será uma experiência ainda mais estimulante do que a que estamos a viver actualmente. Porém o autor afirma em seguida que esta crença se trata de uma ilusão. O conhecimento que aumenta com a série de eventos amorosos é o conhecimento do amor como uma série de episódios intensos, curtos e chocantes. E desta forma (Bauman, 2004) as habilidades que são adquiridas não são sobre o amor, mas sim as de “terminar rapidamente e começar do início”.
Outro autor que pensa sobre o amor romântico contemporâneo (arrisco-me a utilizar esta expressão) é Byung-Chul Han (2012) no livro “A Agonia de Eros”. O filósofo diz-nos que hoje pensa-se que o amor findou (deixou de existir) devido à liberdade de escolha ilimitada, às numerosas opções e à coação do óptimo. Byung-Chul acredita que num mundo de possibilidades ilimitadas, o amor não é possível. Em simultâneo denuncia-se o arrefecimento da paixão. Se o amor e a paixão tivessem uma árvore genealógica poderíamos considerar que são familiares directos. Eva Illouz (2011) no seu livro “Porque Dói o Amor”, atribui este arrefecimento à racionalização do amor e à extensão da tecnologia da escolha. Segundo Byung-Chul não é somente o excesso de oferta de outros que conduz à crise do amor, mas fá-lo também a erosão do outro. Com efeito, o desaparecimento do outro trata-se de um processo que se desenvolve sem que, infelizmente, muitos se deem conta. Vivemos num tempo onde o sujeito não é capaz de reconhecer o outro na sua alteridade (Byung-Chul Han, 2012). O que é ver o outro na sua alteridade? É sermos capazes de reconhecer que o outro é uma pessoa distinta de nós, com o seu lado positivo (“qualidades”) e o seu lado negativo (“defeitos”). Contudo, é importante salientar que ver o outro, não é ter poder sobre o outro. Se fosse possível possuir ou captar o outro, este deixaria de o ser.
Vivemos numa época em que o amor parece tornar-se numa fórmula de satisfação (a tal receita do início). Hoje o amor está livre da negatividade, do assalto e da queda. Cair (no amor) seria agora demasiado negativo (Byung-Chul Han, 2012). Mas é precisamente essa negatividade que constitui o amor: “o amor não é uma possibilidade, não se deve à nossa iniciativa, é sem razão, invade-nos e fere-nos” (Emmanuel Levinas, 1979, no livro “Le temps et l’autre”). A total ausência de negatividade faz com que o amor hoje se atrofie como um objecto de consumo e de cálculo hedonista (uma postura hedonista significa a procura de satisfação do prazer momentâneo). É importante salientar que esta negatividade, não é a negatividade que existe numa relação tóxica. Ver o negativo, não é ser-se vítima de agressões físicas ou verbais. É por outro lado, ser-se vulnerável, é ver para além do que já se viu, é olharmos para o outro com o seu lado positivo e negativo, vermos o outro como um ser inteiro. Só vendo o outro realmente é que é possível amar. Tal como o Byung-Chul Han (2012) diz: “O amor é uma cena do dois. Interrompe a perspectiva do um e faz com que o mundo surja do ponto de vista do outro ou das diferenças.”.
Desconfio, à semelhança de Bauman (2004) que não é ansiando por coisas prontas e concluídas que o amor encontra o seu significado. O autor considera que o amor é outro nome para o impulso criativo e, como tal, é carregado de riscos, pois o fim de uma criação nunca é certo. Amar poderá significar abrir-se “ao destino”, à mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde com a alegria numa amálgama irreversível. Abrir-se “ao destino” significa, em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no outro, o companheiro no amor (Bauman, 2004). Parece-me que hoje em dia, assentar torna-se ainda mais difícil (e adiável) do que antes. Estar em movimento, antes um privilégio e uma conquista, torna-se uma necessidade. Manter-se em alta velocidade, antes uma aventura estimulante, torna-se uma tarefa cansativa. Mais importante, a desagradável incerteza e a irritante confusão, supostamente escorraçadas pela velocidade, recusam-se a sair de cena (Bauman, 2004).
Para onde estaremos a guiar o amor ao fazer swipe right? Bauman (2004) diz-nos que toda a proximidade está agora no limite de medir os seus méritos e falhas pelo modelo da proximidade virtual. Será que esta habilidade de “terminar rapidamente e começar do início” estará ligada à forma como nos conhecemos hoje em dia? Antes trocávamos cartas, flirtávamos por mensagens, mas existia um contacto inicial na vida real. Será que esse contacto inicial ainda existe? Parece-me que existe uma crença de que o contacto imediato (através dos smartphones, dos computadores) nos aproxima. Mas será este movimento uma aproximação ou ao contrário um afastamento?
É preciso viver com coragem o amor, de viver o Eros. O Eros é o amor romântico e este hoje pode ser encontrado em qualquer parte, mas parece que não permanecerá por muito tempo em lugar nenhum. “Se me apetece fico onde estou, se alguém me impede de partir eu vou” letra da música “Minha Cara Sem Fronteiras” do António Variações.