Entrevista. Andrea Bagnato e Ivan L. Munuera: “Não consideramos a vulnerabilidade como uma desvantagem, mas como uma oportunidade”
“Seres Vulneráveis” é uma assembleia pública sobre o espaço e o tempo das epidemias, por Andrea Bagnato e Ivan L. Munuera que ocorre no MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia), em Lisboa. Com a curadoria de Andrea Bagnato e Ivan L. Munuera, o programa dividir-se-á em dois momentos: “Tuning In” (de 29 a 31/10) e “Sounding Out” (de 26 a 28/11).
No âmbito desta iniciativa, falámos com os curadores para sabermos mais sobre a iniciativa que tem como principal objetivo fazer-nos reflectir sobre o nosso espaço e vulnerabilidade.
Esta iniciativa no MAAT irá ocorrer em dois fins-de-semana. É acima de tudo sobre vulnerabilidade. Queria perguntar-vos qual foi o mote para esta iniciativa.
Andrea Bagnato: É uma iniciativa que o Ivan e eu temos vindo a desenvolver desde 2017, tanto individual como colectivamente. Estávamos ambos preocupados com doenças e infecções, não só pelas doenças em si, mas como a doença afecta e transforma as relações humanas, e, obviamente, as relações no espaço.
Ivan L. Munuera: Ainda que muitas pessoas pensem agora sobre a COVID-19, achamos que esta tem precedentes e não é a única epidemia que tem moldado, de certa forma, os espaços e o quotidiano de muitas pessoas em diferentes partes do mundo. Para nós, foi importante destacar esta ideia de vulnerabilidade, pois vimos recentemente como todos nós somos vulneráveis nas relações com outros humanos, não-humanos e com o espaço. Mas não consideramos a vulnerabilidade como uma desvantagem, mas como uma oportunidade. Somos todos vulneráveis e temos de reconhecer a vulnerabilidade como algo que todos partilhamos, ao tomarmos conta uns dos outros e do espaço que partilhamos. Podemos ver claramente como as epidemias moldaram o meio, podemos ver nos hospitais e agora na forma como viajamos, mas temos de ver como o ambiente está a moldar as pandemias. Temos de ver, por exemplo, a deflorestação e a urbanização que permitem que o contágio inter-espécies. Não é só como a pandemia molda o urbanismo, mas como o planeamento urbanístico está a ditar as pandemias.
Temos vivido num contexto bastante antropocêntrico, em que o Homem está no centro e o que o rodeia é secundário. É preciso pensar em tudo o que nos rodeia de forma a mudar a futuro, numa forma de que esta vulnerabilidade é o que irá moldar o futuro e não próprio Homem?
A.B.: É verdade que pensamos de formas diferentes sobre o que está à nossa volta. Os humanos foram sempre vulneráveis. Esta ideia de que podemos controlar o ambiente, de que conseguimos controlar vírus ou bactérias é muito recente. Em algumas décadas, especialmente depois de a medicina moderna se desenvolver, as vacinas e os microscópios poderem ver, pela primeira vez, os vírus e as bactérias, houve a ideia de que, na civilização ocidental, poderíamos vencer doenças bastante infecciosas. Quando aceitarmos que não conseguimos eliminar e que existem bactérias e vírus, e que existem dentro de nós também, não são só algo externo, podemos pensar em nós de formas mais produtivas.
I.M.: Até mesmo nas origens da arquitectura, por exemplo, no Tratado de Arquitectura de Vitrúvio, Vitrúvio estava bastante ciente de que temos de observar o ambiente e as condições de vida de forma a construirmos num ou noutro sítio. Houve sempre esta relação entre a arquitectura e a medicina que tem de ser tida em consideração. Nos tempos contemporâneos, com pandemias a afectarem de formas diferentes várias geografias, esta ideia de que a medicina ocidental poderia cuidar dos seres humanos foi, de certa forma, posta em questão, porque as vacinas não funcionavam ou porque há muitos outros factores a ter em conta. É importante destacar que até a definição de Humano mudou. Ou os humanos, em determinada altura, marginalizavam grupos específicos e definições específicas de seres humanos. Até a ciência foi construída sobre uma definição muito específica do que é um corpo saudável ou qual poderá ser o indivíduo privilegiado para a medicina. Por exemplo, com o vírus Zika, que afectava principalmente mulheres grávidas, não houve muitos estudos sobre esta parte da população, porque o indivíduo privilegiado na investigação foi sempre o indivíduo do sexo masculino, em termos binários. É importante redefinir o que é um ser humano, quem é o indivíduo privilegiado na medicina e no ambiente urbanizado e abrir esse plano para outras geografias e definições, para vermos que somos compostos por micróbios, germes, que são essenciais em todos os seres humanos. O nível de coexistência é muito importante neste equilíbrio.
As alterações climáticas são também algo que nos tornará mais vulneráveis e o impacto será ainda maior nas populações mais desfavorecidas. Para onde temos de ir para chegar ao equilíbrio para todas as populações, de uma forma equilibrada?
I.M.: Nós achávamos que, por exemplo, as coisas que aconteciam em Lisboa, afectavam só Lisboa, e que as decisões que eram tomadas em Lisboa só afectavam Lisboa. Mas o que temos de perceber é que Lisboa é uma realidade interligada, que depende de muitas geografias diferentes, que têm que ver, por exemplo, com regulações da UE, acordos específicos de empresas de todo o mundo. Verificamos que Lisboa, ou qualquer outro ponto no mundo, não é uma realidade isolada. Este esforço tem de ser coordenado e isto é um trabalho interligado. Está relacionado com os governos, com as populações, mas também tem que ver com alterações estruturais, e na forma como consumimos, como definimos saúde e até como definimos trabalhadores essenciais. Falei recentemente com trabalhadores essenciais no Haiti, em Port-au-Prince, que só agora estavam a receber a primeira dose da vacina contra a COVID-19. Isto não aconteceu porque não quiseram antes receber a vacina, mas sim porque foram fechados acordos que privilegiavam determinados grupos de populações em detrimento de outros, como nos EUA ou UE. Temos de deixar pensar de uma forma individual, mas sim interligada.
Esta iniciativa no MAAT será dividida em duas fases, o primeiro fim-de-semana será de Tuning in e o segundo de Sounding out. É de introspecção e de extrospecção? Qual é a base?
A.B.: Tuning In foi pensado de uma forma muito literal, como quando se sintoniza a rádio. Somos sintonizados em determinadas vozes e quais são as vozes que precisamos de ouvir. Durante a pandemia, um dos problemas foi haver pouca diversidade nas vozes que ouvíamos. Era fácil ouvir um médico ou virologista, mas era mais raro ouvir um activista ou alguém que vive com VIH-SIDA. É importante lembrarmo-nos que só quando ouvimos todas estas vozes podemos saber o que fazer. Sounding Out é um complemento, ouvir as histórias mais aprofundadas e de várias geografias. A COVID-19 não é a primeira pandemia, mas mais uma de uma longa sequência de pandemias na História. Muitas epidemias foram esquecidas, ou passadas para segundo plano. Dei o exemplo do VIH, por exemplo, porque podemos ver que muitas pessoas ou grupos de pessoas foram totalmente esquecidos, porque a doença não estava a afectar todas as pessoas da mesma forma. Sounding out é uma forma de ouvir outras experiências.
I.M.: Também é importante destacar que há muitas línguas diferentes. Na imprensa, temos visto governos ou médicos a falar, em termos muitos específicos, sobre esta pandemia. Mas há muitas outras tradições, muitas outras genealogias, que abordam precisamente o que poderá representar uma pandemia. Para nós, foi muito importante observar estas outras tradições e narrativas na forma como moldam o mundo. Podemos ter uma perspectiva artística, como Vivian Caccuri, e a forma como ela aborda, de uma forma muito pessoal, a pandemia. Podemos ver o grupo de activismo de Dan Glass e como têm trabalhado nestes tópicos. Também temos peças de som e imersivas, como João Polido ou Fado Bicha, que mostram como a vulnerabilidade pode ser redefinida com a música, ou na forma como a música nos rodeia.
Para nós, só com um esforço transdisciplinar, a partir de muitas disciplinas e de muitas narrativas, conseguimos abordar um tema deste tipo.