Entrevista. Carlos Pereira: “Somos muito individualistas e temos pressa de chegar onde não sabemos que queremos chegar”

por Linda Formiga,    30 Dezembro, 2021
Entrevista. Carlos Pereira: “Somos muito individualistas e temos pressa de chegar onde não sabemos que queremos chegar”
“Barman” / Fotografia de Many Takes
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Carlos Pereira nasceu em São Tomé e foi aí que viveu com a avó até ter 15 anos. Até se mudar de armas e bagagens para Portugal só tinha passado alguns meses em Lisboa, mas nem por isso deixava de saber sempre quando nevava na Covilhã, graças aos noticiários da RTP que via tão atentamente que diz, em jeito de piada, que os seus ídolos de infância eram Carlos Daniel e Paulo Catarro. Portugal sempre lhe foi próximo e a adaptação à sua nova vida na escola de Queluz não lhe foi difícil, só estranho nas pequenas coisas.

Depois de trabalhar vários anos num das maiores e mais míticas discotecas de Portugal, o Lux, — e onde fazia pausas na casa de banho a ouvir Carlos do Carmo com Sassetti, Carlos Pereira assina agora a série Barman, disponível na RTP Play. É sobre a série e sobre as pequenas coisas da vida que falámos com o humorista de 29 anos, uma das 100 personalidades negras da Powerlist da Bantumen e falador nato. 

Depois de toda a adaptação à escola secundária, foste para a Universidade tirar Ciência Política? O que te levou até aí? 
Nunca tive grandes planos. Lembro-me de estar no secundário e de não vislumbrar grandes coisas para fazer. Quis ser arquitecto, mas percebi que não sabia desenhar. Depois quis ser médico, porque a minha avó era doente e eu queria tratar dela. Depois quis ser advogado e já na última fase quis ser publicitário. Fascinava-me muito ver anúncios na televisão e pensar como é que eles escreviam aquilo. 

Por causa do poder da palavra? 
Eu sempre escrevi. E gostava muito de ler — agora não leio nada, o que me valeu foi o tempo em que eu li e é assim que continuo a enganar as pessoas. Mas eu escrevia todas as notícias num caderno para ler à minha mãe, que chegava tarde a casa porque trabalhava muito. Então eu lia tudo e escrevia tudo. Quis ser publicitário porque via um anúncio e imaginava como poderia escrever esse anúncio. Depois disse à minha mãe e ela disse “não, vais ser publicitário para quê? Conheces algum de nós que seja publicitário”. Mas eu tive a sorte de conhecer pessoas que estavam muito à frente, e em conversa com um colega meu, ele disse-me “és um conformista, eu vou tirar ciência política no ISCTE, vou fazer o master em política em Londres e vou mudar o mundo à minha maneira”. Entrei em Direito em Braga, entrei em jornalismo na ESCS e na segunda fase entrei em Ciência Política. Adorava ver debates, lia muito sobre política e por causa desta conversa com o meu colega, avancei. Ele não entrou. 

Achas que vais tu mudar o mundo? 
Não, o que seria.  

E como é que a comédia entra na tua vida? 
Foi por acaso. É sempre com pessoas que me vão mostrando. Costumo dizer uma frase que é “conheço muito através das boas pessoas que lidam comigo”. A comédia surge em finais de 2012. Na altura ouvia muito o Tubo de Ensaio na TSF e houve uma edição ao vivo no São Jorge, com a primeira parte do Salvador Martinha. Fascinou-me muito o que o Salvador fez. A destreza, a espontaneidade, a ousadia de subir a um palco. Ele na altura actuava todas as semanas no Ritz, no Chiado, e eu comecei a ir todas as semanas até que alguém me disse “tu conseguias fazer isto”. Passado algum tempo, um amigo da escola mandou-me uma mensagem a dizer que havia umas noites de comédia de microfone aberto e decidiu inscrever-me. E correu bem. Nunca levei isto muito a sério, sabia-me bem a atenção que recebia das pessoas, o facto de lhes mostrar os meus pensamentos e elas rirem-se. Uma coisa boa do stand-up é a instantaneidade com que se recebe o feedback. Costuma-se dizer que é no stand-up e na cozinha, que dás a provar e recebes logo. E os convites foram surgindo. 

De certa forma, é ser um pouco publicitário. Tens de escrever, tens de ler… 
De pensar.  

“Barman” / Fotografia de Many Takes

Enveredas por um humor mais existencialista, que se nota na série Barman. Estás ali a lidar com as fragilidades e com as fragilidades da tua geração, de vínculos laborais precários, etc. Enveredas por isso para uma auto-reflexão? 
Costumo dizer que pensando pouco, penso muito. Se tenho uma oportunidade para partilhar com as pessoas os meus sentimentos, quanto mais não seja para me dizerem que não estou sozinho, então vou fazê-lo. Não sei se é importante, mas é o que eu sei fazer, é o que eu gosto de fazer, também pode ser porque estou à procura de ajuda — no sentido de interacção com pessoas que estejam a passar pelo mesmo. Não é com presunção de me mostrar, é com esperança de que alguém se identifique e me dê um abracinho. Porque no fim de contas, o que eu quero é um abracinho e uma lambidela do meu cão. Se essa pessoa conseguir vislumbrar nas minhas coisas um está tudo bem para ela, óptimo. 

Estamos muito absortos nos nossos ecrãs, às vezes vir alguém dizer que está aí e as coisas não são assim tão cor-de-rosa também é importante. 
Tenho achado que o mundo está muito chato. Passamos metade do tempo a colocar estigma nas coisas e a outra metade a retirar o estigma sobre as coisas. Há relativamente pouco tempo, os homens que pintavam unhas eram isto e aquilo, agora todos os homens pintam as unhas sem terem bem noção por que o estão a fazer e daqui a alguns tempos vão dizer outra coisa qualquer. Durante imenso tempo também havia aquela ideia de “não sofras, não partilhes os teus sentimentos” e agora “sofre à vontade, é bom estares frágil” e agora os influencers filmam-se a chorar. Agora fala-se muito da terapia, é bom fazer terapia e finalmente fala-se finalmente em terapia, mas depois tens um influencer a fazer publicidade a um carro a dizer “este carro é óptimo porque o uso para ir à terapia”. No meio disto tudo estão coisas boas. É óptimo falarmos sobre isto, é óptimo normalizar, mas não tem de ter esse show-off.

Somos muito individualistas e temos muita pressa de chegar onde não sabemos que queremos chegar. Esta geração sofre com isso, com ansiedade, e é também por isso. Crescemos a dizerem-nos como as coisas deveriam ser, nós já percebemos que não é assim e que podemos levar o nosso tempo, mas temos a mochila cheia de pedras com coisas que nos meteram lá e temos de tirar as pedras todas para escolhermos um caminho. 

Mas também há peso do perfeccionismo. É cliché, mas é um cliché que não cai. 
Há o peso do perfeccionismo e o da felicidade. Dizem-te como podes ser feliz, mas é só se tiveres isto, isto e isto. Também nos vendem a ideia de que há um final feliz. Não há. Somos todos infelizes como merda. Não há essa coisa de felicidade plena.  

“Barman” / Fotografia de Many Takes

Mas há um intermédio. 
Mas levas tempo a encontrá-lo. Tu vais encontrar a tua cena, mas às vezes o tempo que levas a encontrá-la mais as pedras que trazes às costas… estamos sempre a cascar nas redes sociais, mas isto vem muito de lá. A ideia da pressa também, porque tu queres chegar a um lado e as outras pessoas já lá estão.  

Na tua série retratas um pouco aquela fase de vida de 26 — 27 anos em que não tens estabilidade no trabalho, não sabes muito bem para onde vais e estás um bocado perdido. 
Ainda é pior quando tens pressa para lá chegar. Não saber para onde se vai é uma angústia muito grande porque estás sempre a olhar para o lado. E muitas das vezes as propostas nem sequer são as mesmas. Às vezes perguntam-me se não me melindrava aparecerem pessoas novas, mas a verdade é que as propostas não são as mesmas. 

Mas a “concorrência” também te ajuda a melhorar. Assim como as coisas novas farão também o seu caminho, assim como as antigas — do Herman ou dos Gato Fedorento — também fizeram. 
As coisas antigas terão sempre o seu lugar, porque também marcaram uma geração e fizeram de muitos o que são, mas também têm de deixar espaço para quem vem a seguir também marcar uma geração. Esse espaço é receber, perceber, e não percebendo, aceitar. É bom para quem cria e é bom para quem recebe. No final, ganhamos todos. 

Há agora também uma maior educação do humor, especialmente com a Netflix. 
Há mais coisas, há mais mundo, há mais abordagens. E o público está mais exigente e os comediantes também. Às vezes, essa exigência é um bocado arrogante. Com aquela ideia de “isto em inglês é que é”. Trouxe aquele treinador de bancada que diz que aquele americano é que é, mas trouxe também mais público que quis sair da bancada e quis conhecer comediantes portugueses. O que ainda se vê muito em Portugal é que não tens fãs de comédia, tens fãs de artistas. Sai-se de casa para ver determinado artista, não para ver comédia. Mas é todo um processo. 

Criativamente, quais são os teus maiores desafios? 
É criar. Agora estou naquela fase de “não tenho piada nenhuma”. Sempre testei as minhas coisas em conversas, as pessoas riam-se e eu apontava. Depois ia para o palco e dizia. Agora comecei a ficar muito mais chato quando comecei a ficar consciente das coisas.  

Como é que surge a série? 
Trabalhei primeiro num bar na TimeOut, depois quis ir estudar publicidade, mas para abrir a minha própria agência. Na altura falei com o Manuel Reis, que me disse para ir para o Lux para ter tempo para estudar. Como a discoteca abria mais tarde, passávamos muitas horas a falar e um tipo contou uma história e eu pensei que um dia ainda ia escrever uma série. Agora surgiu a oportunidade.  

Quais são os próximos passos? 
Queres a minha resposta das entrevistas? 

As duas, já agora, parece que há uma para as entrevistas e outra real. 
A das entrevistas é que gostava de fazer mais duas séries e um filme. Depois morro. 

Metaforicamente, claro. Ou reformas-te? 
Digo sempre isto porque o mundo é um sítio muito chato para se estar. Esta é a minha resposta automática. E é de facto. 

Mas dizes isto porque o artista tem de saber onde sair, ou onde parar? 
O mais difícil é saber quando parar. Eu não sou um artista viral. Pouca coisa minha viralizou, e às vezes dizem-me que falta isso. Por um lado não me importava, por outro ainda bem. Porque é uma merda quando viralizas, porque ficas refém daquilo. Vemos músicos assim. Há gajos que encontraram aquela fórmula e depois a melodia é toda igual. É a velha questão da fórmula. Vês um gajo que tem muito sucesso e depois custa sair dali. E quando começas a receber o retorno disso, seja financeira ou mediaticamente, não é fácil sair dali. 

Viralizar castra criativamente? 
O dinheiro castra sempre criativamente. E o viralizar pode ser interpretado como dinheiro. Quando um artista faz uma música e ela toca em todos os sítios, tu interpretas que é aquilo que as pessoas querem fazer. Tu queres fazer outra coisa, mas ao mesmo tempo vais estar no dilema sobre se as pessoas vão querer outra coisa ou não. Fazes uma coisa que tem muito sucesso e ficas refém daquilo.  

Criativamente é o que queres fazer (as duas séries e um filme) e depois queres saber onde parar? 
A curto prazo, quero voltar aos palcos, voltar a fazer stand up. É algo que gosto de fazer. Não há coisa mais gratificante do que ter tempo e de todos os bens que podemos ter e mais difíceis de ter é tempo. Tempo para pensar, tempo para criar tempo, para ler, tempo para cultivar. O tempo é a maior dádiva e é o maior privilégio. Eu sei que sou um privilegiado por ter tempo, só sou comediante porque tenho tempo. A questão de achar que a cortina fecha cedo faz-me querer despachar. Se calhar chego aos 36 com 3 séries e o filme feito e penso “e agora?”. 

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