Entrevista. Cláudia Varejão: “Os filmes são um apaziguamento com a Humanidade”
Frio, noite, vento, carros ruidosos e o desconforto da pedra da calçada. Foram estas as condições atípicas que sucederam ao visionamento de “Lobo e Cão” (ler crítica), na segunda-noite do Encontro Audiovisual Açoriano.
No início de Janeiro, o Auditório da Madalena, na ilha do Pico, recebeu uma variedade de profissionais do cinema e da televisão para palestras e debates acerca do atual panorama audiovisual da região autónoma, sem esquecer a exibição de curtas e longas-metragens. Um dos títulos que mais repercussão teve foi a última ficção de Cláudia Varejão, realizadora, diretora de fotografia e montadora, natural do Porto. Estudou realização no Programa de Criatividade Artística da Fundação Calouste Gulbenkian, em parceria com a German Film und Fernsehakademie Berlin, e na Academia Internacional de Cinema de São Paulo. Estudou, ainda, fotografia no Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, em Lisboa.
Rodado durante o verão de 2021, o filme acompanha Ana, uma adolescente dum grupo de amigos LGBTQI+, nascida e criada em São Miguel, ilha marcada por religião e tradições. Interpretada por Ana Cabral, a protagonista vive entre casa, escola e trabalho, com o irmão, a mãe, a avó, o melhor amigo Luís, “que gosta tanto de saias como de calças”, e Cloé, uma rapariga recém-chegada do Canadá. “Lobo e Cão” teve estreia mundial no Festival de Veneza, em Setembro. Foi distinguido com o Prémio dos Realizadores Giornate degli Autori, atribuído pelo júri encabeçado pela francesa Céline Sciamma, realizadora de “Retrato de Uma Rapariga em Chamas” (2019).
“O mundo imersivo criado no filme permite-nos relacionar com o importante assunto retratado, apresentando as personagens queer tal como são no seu espaço seguro. Descobrimos que os elementos documentaristas contribuem para o efeito e a autenticidade da narrativa. O Júri também apreciou que o filme não se bajule perante o espetador com o seu retrato franco, honesto e impactante de uma comunidade queer coesa. Nós enquanto júri achamos que a mensagem desta história é imensamente importante e temos o prazer de conceder este prémio ao filme merecedor de Cláudia Varejão.”
Giornate degli Autori
Produzido pela portuguesa Terratreme e a francesa La Belle Affaire Productions, “Lobo e Cão” chegou aos cinemas portugueses em Dezembro e continua em exibição. As datas e salas podem ser consultadas nas respetivas redes sociais.
Na sessão de perguntas e respostas, a realizadora descreveu o afeto que mantém pelos Açores. As primeiras ideias para “Lobo e Cão”, aliás, surgiram em 2016, aquando de uma residência artística em São Miguel. Relatou o “choque de realidades” a que assistiu e que muito a surpreendeu: um encontro entre os pescadores locais e um grupo de miúdas transgénero, filhas, sobrinhas, primas desses mesmos trabalhadores.
Terminada a fila de elogios acumulada à entrada do Auditório da Madalena, a Comunidade Cultura e Arte sentou-se para conversar com a realizadora, que descreveu as suas posições acerca dos contextos que aceitam ou renegam os cidadãos LGBTQI+, o papel do (seu) cinema e o respetivo percurso profissional.
Antes de te colocar algumas perguntas, gostava de saber se concordas com isto. Quando se tenta traçar um perfil de Portugal social, económico ou até psicológico dentro do contexto da União Europeia, se quisermos, normalmente diz-se que Portugal é um ilhéu. Existe um oceano de terra que é Espanha e depois existe um oceano (de mar) que é o Oceano Atlântico. Uma das coisas que isto provoca é o nosso país estar de costas voltadas para a Europa. Curiosamente, o que parece acontecer nos arquipélagos é o mesmo fenómeno — estão virados para si mesmos, para os seus costumes, para as suas pessoas, etc. —, mas, ao mesmo tempo, acontece o oposto: parece que têm uma abertura muito maior e um caráter mais amável, de muita maior confiança a tudo o que vem de fora.
É uma generalização, que eu reconheço naquilo que observei durante o tempo em que estive a viver na ilha. É um paradoxo, de facto, porque, se repararmos, por exemplo, a maior parte das casas nas zonas costeiras das ilhas não tem as portas voltadas para o mar, tem as portas voltadas para dentro da terra. Eu acho que o isolamento desperta muita abertura para o exterior e esta presença constante do mar — o mar é o infinito e também é a porta para o mundo —, tudo o que vem daquela direção é muito bem recebido. Desde logo, com enorme curiosidade, com um interesse de que o mundo vem com aquela pessoa, que traz algo de novo, portanto, eu acho que essa gentileza, essa doçura das pessoas, de facto, vê-se. Acho que há um comportamento insular, um comportamento de quem vive, quotidianamente, a ver as mesmas caras, a ouvir as mesmas vozes. Portanto, a curiosidade pelo outro, pelo estrangeiro, aquele que vem de fora, eu acho que é muito compreensível e reconheço — e reconheci — em São Miguel isso.
“Aprendo muito com as pessoas. É por isso que me fascina tanto o documentário — porque não vem só de mim. Eu olho, mas as pessoas dão. E dão-me a vida e dão-me os comportamentos e dão-me o ser humano.”
Cláudia Varejão
Então como é que a história destas pessoas e desta ilha é contada por alguém que é de fora, que tem, como a maioria dos continentais, esta perspetiva generalizada, mas, ao mesmo tempo, sente uma necessidade de fazer justiça?
Aí é que está a grande inversão do olhar: é que eu não faço um filme sobre os outros, eu faço um filme sobre mim. Ou seja, eu parto do lugar da intimidade, de denominadores comuns do ser humano que reconheço em mim. Portanto, o filme nasce dentro de mim, num encontro com o outro, e não é o oposto, não é alguém que vem de fora, curiosa pelo exótico do outro. É um encontro íntimo e interno e muito pessoal de mim com pessoas que são muito próximas, em muita coisa, das minhas próprias vivências. Eu cresci numa cidade que, nos anos 80, era uma espécie de ilha, que era o Porto, e era também uma cidade muito fechada, muito voltada para si mesma, com muitas tradições religiosas. Portanto, eu quando cheguei a São Miguel pela primeira vez, eu senti… “Voltei a casa”. É nesse lugar de encontro com a casa, com o íntimo, com o pessoal, que este filme se constrói, e não o olhar sobre o outro, e é aqui que eu acho que há grande diferença do estrangeiro que vem de fora fazer um filme.
Pegando nisso. Tu começaste por apresentar este visionamento contando aquele episódio em que tão depressa viste os pescadores a trabalhar, homens portugueses do antigamente, micaelenses tradicionais, e, do outro lado, uma série de adolescentes trans. Como é que achas que isso se concilia? Ainda achas que é uma coisa muito hostil ou, no contexto que retrataste, é uma coisa que já existe de maneira unânime?
Eu quando vi essa situação, ecoou no meu pré-conceito, que é de vida, de experiência de vida, de que estes opostos, normalmente, não coabitam, não é? O tradicional e o queer — o queer quer dizer “aquilo que não habita no centro”. O tradicional vem, se pensarmos numa sociedade como um círculo, de um núcleo. Há um núcleo e esse núcleo tem esse centro, que é o centro tradicional, de uma série de símbolos e regras de organização social, e há as periferias. Na minha experiência de vida, como pessoa queer também, eu sei, por aquilo que vivi e pelo meu olhar e pelos filmes que tenho feito, que o periférico, normalmente, não coabita de uma forma harmoniosa com o centro. E nessa situação parecia que coabitava. Portanto, essa curiosidade vem da minha experiência, de uma imagem que eu vejo — “Espera lá, mas isto não é exatamente aquilo que eu tenho vivido”. Aqui, a curiosidade foi o motor para fazer o filme todo.
E são coisas contrárias. Tens num lado religião e paganismo, tradições que modulam comportamentos, no caso dos homens, de uma certa violência, daquela noção básica de masculinidade, e, ao mesmo tempo, tens quase uma performance, que se vê naquele quadro maravilhoso em que todos eles se juntam para fazer aquela composição, que vem romper com isso tudo. E continua a não ser aceite.
Qual é a maior performance? Será esse despojamento desse momento, em que as personagens sobem a uma espécie de altar e nos olham como são? (E aqui eu não vejo performance.) Não será, antes, o oposto? Não será a grande performance o papel da virilidade que os homens herdam da educação e que são milénios de História? E agora estamos a falar dos homens, mas podemos falar do papel de género também da mulher. Enfim, não será essa a grande performance que aprisiona mais o ser humano? O que eu vejo neste filme, nestes jovens, é que eles quebram a performance e trazem uma coisa muito interessante: Nós não somos só uma coisa, somos múltiplas coisas. E se nos permitirmos a brincar com as máscaras que pomos, esse lado performático, com mais liberdade, somos mais completos. Se formos múltiplos, somos completos. E o que eu vejo na sociedade em que eu cresci e que ainda habito é que a performance social é feita de papéis mais pequenos, mais isolados. Um homem é de uma determinada forma, uma mulher é de determinada forma. As máscaras são únicas, não são múltiplas, as pessoas não se permitem a esta multiplicidade de máscaras e o que estes jovens no filme trazem é “Nós somos muitas coisas e somos muito diversos e temos máscaras de lobos, de cães, de pássaros, de leões, somos muitas coisas. E mais: podemos tirar e trocá-las uns com os outros.” E eu acho que é a quebra da performance aí. A performance é o outro lado.
“Interessa-me muito a desigualdade social (…), sou muito atenta a isso. E eu acho que o cinema é uma ferramenta brutal de comunicação, de transformação social, de olhares, permite-nos parar para ver. E quando paramos para ver, entramos em contacto com o nosso mundo interior e, por sua vez, com o mundo envolvente.”
Cláudia Varejão
Falaste em multiplicidade e isto pode ser por acaso ou pode não ser. Tiveste colaboração da Leda Cartum, a escritora brasileira. Curiosamente, no filme, existe aquela personagem brasileira, que é a patroa da Ana. Isso foi propositado?
Foi uma coincidência, mas é interessante pegares nisso. Eu convidei a Leda Cartum por ser alguém de fora que me podia permitir eu construir o filme de dentro e ter um olhar de fora. Eu fui partilhando ao longo do processo aquilo que escrevia e ela, como estrangeira, como alguém que está no outro lado do Atlântico…
Ainda mais do que nós somos com ilhéus e vice-versa…
Muito mais, muito mais! Completamente de fora. Lia o que eu ia escrevendo e ia-me devolvendo o seu olhar de estrangeira. Isso era muito importante para mim no processo de construção do filme. A Leda vem de uma família de judeus. A Raquel [a personagem] vem de uma família de judeus. E os judeus, pela sua história de vida, têm a viagem e a diáspora no seu próprio DNA quase, hoje em dia, não é? Portanto, esta personagem traz de uma forma muito simbólica — Ela diz “Eu tenho uma casa ali, tenho uma casa ali, tenho outra casa ali, não são casas de tijolo, são casas do coração.” — essa multiplicidade de lugares a que nós podemos aceder ao longo da vida e que é muito estimulante para a Ana. Ela percebe que não tem de ser só daquele território, que pode ser de muitos territórios. Isto vem de uma personagem que, quando fala, diz “a minha casa da Polónia, a minha casa do Brasil”, para o espetador mais atento pensar “Bem, provavelmente vem de uma família judaica e tem esta história”. Enfim, são pequenas delicadezas que não foram totais coincidências e acho que a experiência da Leda também me ajudou a construir esta personagem, que tem muito a ver com a história de vida dela e da família dela, que fogem da Europa na altura da Segunda Guerra e que estão todos espalhados pelo mundo. A Raquel também, também tem isso na sua família.
Agora sobre coisas mais técnicas, dentro desta coisa que está muito presente na tua filmografia que é ou documentário ou ficção sempre com veias documentais. Neste caso, em que usaste não-atores ou aspirantes a atores, pessoas que deduzo que participaram num casting propositado…
Maior parte dos que acabaram por ficar são pessoas que eu fui encontrando ou na rua ou em sítios que foram puxados para a experiência. Nunca pensaram na vida em ir a um casting, sequer.
E tiveram alguma participação no guião? É perfeitamente português, mas o sotaque pode ser um entrave não à compreensão emocional, mas apenas literal. Ou foste tu que, enquanto “vampiresca”, foste absorvendo naturalmente?
Tiveram participação total. Eu não tinha essa capacidade de saber e ir buscar as expressões mais íntimas e mais quotidianas e o calão, foram eles todos que deram — “Eh Cláudia, isto não se diz assim!” — e reescreveram tudo, tudo. Os diálogos – as ideias estão todas lá — eles dizem todos como diriam e não como a Cláudia escreveu. Há uma colaboração muito íntima de todos, de todos sem exceção, dos pais, das mães, dos mais novos. Eu não dominava, é um português muito específico o micaelense.
Para fechar, por falar em intimidade. Depois desta experiência, olhas para o Porto com outros olhos?
Essa pergunta é… Talvez, não olhe para a cidade com outros olhos, mas olhe para a minha vida com outros olhos, com uma doçura pelas pessoas. As pessoas vão fazendo aquilo que melhor sabem fazer mediante do contexto. É como o pai neste filme. Nós não conseguimos odiá-lo, ele é agressivo, mas nós vemos naquele rosto o contexto, a história de vida dele. Nós pensamos “Este homem também herdou um papel de género que não lhe permitiu experimentar outra forma de ser”. Ele não quer que o filho arrisque ser outra coisa, porque ele também não pôde ser, ele não conhece outro lugar. E, portanto, se calhar, o filme permite-me olhar para as pessoas com quem eu me fui cruzando ao longo da vida, com mais ou menos preconceito, com mais humanidade. Os filmes são um apaziguamento com a Humanidade, para mim. Vão-me ajudando a conhecer melhor a vida, as pessoas, como é que nós nos comportamos. Aprendo muito com as pessoas. É por isso que me fascina tanto o documentário — porque não vem só de mim. Eu olho, mas as pessoas dão. E dão-me a vida e dão-me os comportamentos e dão-me o ser humano. E, por isso, aprendo muito, apaziguo-me muito com a vida, com o absurdo que é isto tudo, os filmes ajudam-me muito a curar e a entusiasmar-me também.
“Eu parto do lugar da intimidade, de denominadores comuns do ser humano que reconheço em mim. Portanto, o filme nasce dentro de mim, num encontro com o outro, e não é o oposto, não é alguém que vem de fora, curiosa pelo exótico do outro.”
Cláudia Varejão
Já é uma coisa muito recorrente (o documentário) na tua carreira como o próprio tema é recorrente. Tu fizeste parte do Encontro de Mulheres de Coragem, no Palácio de Belém. Foste recebida pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Polémicas à parte — achas que esse encontro, em específico, e outros são uma espécie de rampa de lançamento para as discriminações serem descuradas? Achas que tens um papel nisso? Ou a tua missão, por enquanto, é apenas sensibilizar este público e este e aquele?
Eu não faço filmes no sentido de missão. Mas interessa-me muito a desigualdade social, interessa-me como injustiça, sou muito, muito atenta a isso. E eu acho que o cinema é uma ferramenta brutal de comunicação, de transformação social, de olhares, permite-nos parar para ver. E quando paramos para ver, entramos em contacto com o nosso mundo interior e, por sua vez, com o mundo envolvente. E eu acho que esses encontros validam e dão voz àquilo que acontece dentro dos filmes, portanto validam as pessoas, validam as vidas mais periféricas, mais invisíveis. Mas é uma causa daquilo que eu faço, não é o ponto de partida. Ou seja, não é uma missão, eu não faço cinema por missão, faço porque me aconteceu na vida. Vir parar ao cinema foi, até, um acaso. Gosto muito do que faço, sou muito privilegiada e acho notável quando há esse interesse, acho muito saudável. Por exemplo, nessa conversa lá no Palácio, não foi propriamente notável ser no Palácio. O que foi incrível nessa conversa com o Marcelo foi o público serem escolas, escolas de vários sítios do país, e muitos destes miúdos são estes miúdos periféricos. Portanto, o que foi mais notável nesse encontro foi o encontro com a periferia, que vai ao Palácio de Belém e que se vê projetado no trabalho que eu trago. Naturalmente, estão no Palácio de Belém, o senhor Presidente da República está ali e está a validar aquela voz. E ao validar a minha voz valida a voz deles que estão no público. Porque se fosse um filme… a Cláudia é convidada porque faz filmes sobre receitas tradicionais de doçaria portuguesa [risos] e é exímia a fazer este trabalho, aquilo, se calhar, para os miúdos dizia pouco. Validava o meu trabalho, mas não havia este espelhamento neles próprios. O que eu acho que foi notável neste encontro, como noutros, é este encontro com as periferias, no meu trabalho, mas nas pessoas que também estão ali. É um coro! Novamente, o coro acontece dentro do filme e acontece depois nas sessões. Os filmes não terminam na tela.
As pessoas levam-nos com elas…
E dialogam e transformam-no com o seu olhar! Estas devoluções que estão a dar aqui fazem-nos olhar para o que acabamos de ver doutra forma — “Ah, não tinha pensado nisso!” —, portanto, são acontecimentos vivos, transformadores. Amanhã acordamos e há uma cena qualquer que ecoa doutra forma que hoje na sessão não percebemos e isso é fascinante! Diria na arte, em geral. Fica connosco, ecoa no nosso mundo interior, nas nossas experiências, ensina-nos a olhar e ampara o medo que temos de, muitas vezes, olhar de determinadas formas. Nisso, o cinema é exímio! Este lugar escuro em que estamos sós, mas acompanhados, é… eu não conheço nenhuma outra arte que tenha este poder. Talvez a música, também é um lugar de silêncio e de escuta, ao mesmo tempo. E de união.