Entrevista. Mariana Santos: “Tendemos a esquecer-nos que nós, europeus, já estivemos no lugar de pessoas refugiadas no fim da Segunda Guerra Mundial”

por Helena Castro,    25 Fevereiro, 2022
Entrevista. Mariana Santos: “Tendemos a esquecer-nos que nós, europeus, já estivemos no lugar de pessoas refugiadas no fim da Segunda Guerra Mundial”
Afeganistão / Fotografia de Mohammad Rahmani / Unsplash
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A história da jovem portuense que está a lutar por um mundo mais justo. 

Com apenas 22 anos, Mariana, natural de Vila Nova de Gaia, fundou a organização não governamental Humanity On The Move, trabalhando no apoio e integração de refugiados e requerentes de asilo. Já conta com duas missões internacionais e o seu grande objetivo é chegar às Nações Unidas. 

Como começou o teu percurso na área do voluntariado?
A minha primeira missão de voluntariado foi num lar de idosos, por volta de 2015. A partir daí, comecei a trabalhar com outras organizações de renome, como a Médicos do Mundo, onde estive a fazer trabalhos com sem abrigos e trabalhadores sexuais. Depois trabalhei a nível internacional, com a Europeans for Humanity, um movimento internacional ligado à luta de pessoas refugiadas, onde fui embaixadora de Portugal durante um ano. Mais recentemente, fiz duas missões internacionais, em Moria e Calais, e criei a Humanity On The Move (HOM), da qual sou presidente.

Houve alguém na tua vida que te tenha incentivado a entrar no mundo do voluntariado?
Sempre tive pessoas à minha volta que estavam relacionadas com esta área, nomeadamente os meus pais, que também fazem atividades de voluntariado e doações a nível de empresa. A minha mãe conta-me que desde pequenina andava no infantário a tentar ajudar as educadoras e crianças que precisavam de mais proteção. Acho que isto sempre foi algo muito próprio da minha personalidade e, aliás, foi o motivo pelo qual vim para medicina. Escolhi este curso precisamente pela parte humanitária, uma vez que o meu objetivo de carreira é ser médica sem fronteiras.

“São as pessoas refugiadas que têm o direito e dever de falar por eles próprios. Nós não podemos dar voz por eles, mas sim com eles. Assim, reunimos artistas de todo o mundo e juntámo-los com pessoas em situação de refugiado para, em conjunto, serem voz e denunciarem a situação com que são confrontados todos dias.”

Medicina é, muitas vezes, o único curso que aparece ligado ao voluntariado. Pensas que as escolas deviam desempenhar um papel mais ativo em incutir nos jovens esta vontade de ajudar quem mais precisa? 
Completamente. Acho que é fulcral alterarmos um pouco o nosso sistema de ensino em Portugal, que acaba por se focar muito na teoria e por se esquecer de nos ensinar como lidar com a pessoa que está ao nosso lado. Coisas mais práticas e coisas que nos deviam ser incutidas desde pequenos. É este o objetivo da HOM, chegar a cada vez mais escolas, com a missão de educar e consciencializar. 

E, de facto, há muitas oportunidades para nós fazermos voluntariado na área da medicina e poucas para o resto. Com tanta informação disponível na internet, é normal ficarmos perdidos quando estamos à procura de projetos de voluntariado. É preciso selecionar exatamente em que área queremos ajudar e, definido o objetivo, a pesquisa torna-se muito mais fácil. 

Mariana Santos / DR

O que te fez escolher especificamente a causa dos refugiados?
Escolhi esta causa por ser uma das maiores crises humanitárias que vivemos no momento. Perguntava-me frequentemente: “Porque é que isto não é falado? É um dos maiores assuntos a nível internacional, é a própria luta pelos direitos humanos!”. Revoltavam-me as conotações pejorativas que os órgãos de comunicação social usavam para abordar este tema, como, por exemplo, “pessoas ilegais”. As pessoas não podem ser ilegais. As travessias migratórias podem não ser regulares, mas temos de pensar que estas só acontecem porque não existem rotas seguras e as pessoas têm de se submeter às redes de tráfico ilegais. Assim, o objetivo de me focar nesta causa surgiu não só do facto de este ser um tópico ignorado e negligenciado, como da necessidade de estimular uma sociedade tolerante, aberta à diferença que é comum a todos nós. 

No teu ponto de vista, como é que se chama a atenção das pessoas para esta emergência humanitária? Como é que se conseguirá resolver este problema?
Gostava de ter uma resposta objetiva, mas eu própria continuo a perguntar-me todos os dias o porquê de isto acontecer. É importante sabermos que este fenómeno das migrações não é recente e já foram várias as tentativas de mitigar os problemas políticos, sociais e económicos que estão associados a estas grandes movimentações de pessoas. Contudo, não está a haver uma solução para estas crises e a Europa continua a ser afetada.

Penso que parte da resposta a esta crise está no combate ao preconceito. Tendemos a esquecer-nos que nós, europeus, já estivemos no lugar de pessoas refugiadas no fim da Segunda Guerra Mundial. Nessa altura, os refugiados eram os heróis e agora é o oposto. Eles são os pobres, os vulneráveis. Isto não está correto. Eles são pessoas como nós, capazes de grandes feitos: já existe uma equipa olímpica de refugiados e há vencedores de prémios nobel.

Na tua opinião, o que é que está a falhar na ajuda humanitária?
Não quero ser mal interpretada — eu própria sou voluntária e criei uma ONG. Não sou contra a ajuda humanitária, mas acho que quando esta se torna um estilo de vida surge um grande problema. A ajuda leva a mais ajuda e a uma menor independência das pessoas. Depender somente de incentivos financeiros e doações acaba por criar uma indústria de pobreza global, porque a pobreza não advém somente da parte monetária. Ser pobre implica estarmos excluídos dos sistemas de produtividade e intercâmbio que nos fazem prosperar — o sistema de educação, de saúde, etc. 

As pessoas que estão nesta situação e em países menos desenvolvidos conseguem prosperar, mas, para tal acontecer, as ONG têm de desenvolver um trabalho que seja sustentável e construído em conjunto com as comunidades para as quais se deslocam. Eu própria tenho essa missão com a HOM de produzir resultados que venham a permanecer no tempo. Um dos nossos objetivos é começar a construir grupos de voluntários que vão para o terreno atuar em situação de catástrofe e termos a capacidade de usar os recursos locais e capacitar as pessoas para que elas próprias o possam fazer e não sejam dependentes de auxílio. 

Mariana Santos / DR

Qual foi a imagem que mais te marcou na tua visita aos campos?
Um dos momentos mais impactantes foi assistir a um parto nos meus últimos dias no campo de Moria. Ter segurado a criança nos meus braços, olhar para ela e refletir sobre o seu futuro. Nasceu num campo de refugiados e provavelmente lá permanecerá por anos, sem esperança de um futuro melhor, sem educação, sem acesso a necessidades básicas… 

Como conseguiste lidar com tanta miséria e desgraça?
Só quando visitamos os campos é que conseguimos compreender a gravidade da situação. Eu fui com aquela máxima de “hoping for the best but expecting the worst”. Nós nunca vamos estar verdadeiramente preparados. Só quando chegamos lá é que conseguimos criar mecanismos para lidar com as situações do dia a dia. 

Às vezes sinto que faço parecer que é fácil ir em missão, mas eu própria também lidei com o problema de saber gerir o meu lado mais emocional e humano. É importante termos um sistema de apoio. Eu fui com uma amiga na minha primeira missão e senti-me muito apoiada. Conheci pessoas fantásticas de todo o mundo e senti que a esperança na humanidade não tinha morrido. Afinal, ainda há pessoas que lutam pelo que se deve. 

Acho que é muito importante, quando chegamos ao nosso ponto de abrigo, refletirmos sobre o que vimos e não deixarmos acumular. Uns preferem partilhar, outros preferem estar sozinhos em silêncio. Todos nós acabamos por criar esses mecanismos de defesa e proteção. 

“É necessário que todos nós tenhamos em mente que este trabalho é normal, não devem glorificar as pessoas que fazem missões internacionais. Todos nós temos este poder de mudar algo e isso começa nas ações do dia a dia.”

Quais foram os principais obstáculos ao trabalho de ajuda médica com que a tua equipa se deparou?
Quando cheguei ao campo, apercebi-me de que aquilo a que chamavam clínica era um contentor com 3 salas — a sala de emergência, a farmácia e o consultório. Tinham ainda “consultórios” na parte exterior do contentor divididos por sacos de plástico. Os médicos estavam numa constante aflição: não havia forma de tratar os pacientes, nem sequer de diagnosticar os seus problemas, uma vez que não se consegue fazer uma coisa tão básica como umas análises ao sangue. Nestes cenários, a medicina acaba por ser um procrastinar e prolongar da dor, por falta de acesso a tratamentos. 

A falta de privacidade nos consultórios foi algo que me impressionou. Muitas vezes fiz traduções de português para inglês e, numa dessas consultas, tive de traduzir um caso de violação. Eu estava naquelas condições, num consultório sem paredes, sem privacidade, a fazer uma tradução tão íntima. Senti aquela pessoa a experienciar mais uma vez uma violação do seu direito, da sua dignidade.

Depois de regressares desta experiência transformadora, definiste novos objetivos para a tua luta contra estas injustiças? 
Sem dúvida. Percebi que havia uma falta de ação enorme em Portugal. Então, comecei a unir esforços, a fazer manifestações e a denunciar. Aceitei todos os convites de palestras e comecei a reunir um grupo de pessoas apaixonadas pela causa e que queriam fazer mais. Foi aí que surgiu a HOM, que começou com um projeto pioneiro que nos fez ganhar um prémio de uma ONG das Nações Unidas. Deixei de trabalhar a nível internacional para me focar mais em Portugal, porque aqui há falta destas organizações que trabalhem na integração de famílias refugiadas.  

Os primeiros projetos da HOM, “Pop the Bubble” e “Breaking Borders Through Art”, estão os dois ligados à arte. Porque é que optaram por dar voz a este movimento através da expressão artística?
Entre os ativistas existe muitas vezes a tendência de dizermos que estamos a dar voz a esta crise. Uma das missões destes projetos foi exatamente desconstruir essa conceção. São as pessoas refugiadas que têm o direito e dever de falar por eles próprios. Nós não podemos dar voz por eles, mas sim com eles. Assim, reunimos artistas de todo o mundo e juntámo-los com pessoas em situação de refugiado para, em conjunto, serem voz e denunciarem a situação com que são confrontados todos dias. 

Quisemos que a primeira exposição fosse virtual, para que chegasse aos próprios campos de refugiados e estes vissem os frutos do seu trabalho. Acho que só podemos estar orgulhosos do trabalho que fizemos e das mentalidades que conseguimos mudar através da arte. 

A vossa equipa já conta com a participação de 30 jovens portugueses. Qual é o sentimento de ver tantos jovens a querer ajudar a vossa causa?
Quando começámos a juntar este grupo de jovens que tinham ideias, que queriam fazer a mudança e que estavam educados sobre a crise foi uma sensação fantástica, porque acabou com aquela frustração de voltar para Portugal e não encontrar pessoas com vontade de agir. Vê-los empenhados todos os dias a querer fazer mais motiva-me a ser melhor por todos os que trabalham diariamente na HOM. É inspirador e fantástico ver pessoas assim. 

“Não se mantenham em silêncio. É a nossa missão, a de cada um de nós, lutar por um mundo justo e tolerante.”

Ser presidente de uma ONG com apenas 22 anos é uma grande conquista. Sentes-te realizada?
Na verdade, completamente realizada não estou, porque ainda tenho muitos objetivos por cumprir. Um deles é chegar às Nações Unidas e conseguir mudar alguma coisa a nível político. Sinto-me muito realizada por ter começado o voluntariado com 20 anos a nível internacional, mas não pretendo ficar por aqui. 

Que mensagem de incentivo gostarias de deixar aos portugueses para que assumam um papel mais ativo na luta contra as injustiças sociais?
É necessário que todos nós tenhamos em mente que este trabalho é normal, não devem glorificar as pessoas que fazem missões internacionais. Todos nós temos este poder de mudar algo e isso começa nas ações do dia a dia. Começa com algo tão simples como esta conversa que estou a ter agora. Se eu hoje, com esta entrevista, conseguir ter um impacto no mundo de alguém, acho que esta missão já está a ser cumprida. 

Desmond defendia que se nos mantermos em silêncio em situações de violação de direitos humanos, estamos a tomar o lado do opressor. É exatamente esta a mensagem que eu pretendo passar. Não se mantenham em silêncio. É a nossa missão, a de cada um de nós, lutar por um mundo justo e tolerante.

Esta entrevista foi realizada no âmbito da unidade curricular de Produção Jornalística, do curso de Ciências da Comunicação na FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

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