Entrevista. Miguel Dias: “Os recursos para se realizar uma curta-metragem não são tudo, o que interessa é uma boa ideia”
Esta entrevista foi realizada antes de se saber que João Gonzalez estaria nomeado para os Óscares com a curta-metragem “Ice Merchants”, o primeiro filme português a estar nomeado para os Óscares.
Natural de Vila do Conde, Miguel Dias é um cinéfilo profundo. Em 1993, em conjunto com Nuno Rodrigues e Mário Micaelo, fundou o Curtas Vila do Conde – International Film Festival. A iniciativa surgiu consoante assíduas sessões a que assistiam no Festival de Cinema da Figueira da Foz, nascido em 1972, “o nosso festival preferido em Portugal e aquele que conhecíamos melhor”.
Criar um festival de cinema foi, portanto, uma resposta natural. Ao longo da sua história, o Curtas tem vindo a assumir “uma identidade própria, sabendo encontrar pontos de equilíbrio entre a inovação focada na contemporaneidade e a dignificação da memória do cinema”. Até hoje, são exibidos trabalhos de distintos géneros (documentário, ficção, animação, experimental e até videoclips) e nacionalidades.
Nos bastidores, aliás, foi ainda criada, em 1999, a Agência da Curta-Metragem. Associada ao Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), esta “desenvolve um trabalho de promoção e divulgação de curtas-metragens portuguesas em todo o Mundo. Um trabalho assente numa forte componente de serviço público onde a difusão da cultura portuguesa se faz através de um género cinematográfico extremamente criativo e inovador, a curta-metragem.”
Hoje, Vila da Conde é uma cidade mundialmente reconhecida pelo evento. A edição de 2023 está marcada para os dias 8 a 16 de Julho. As submissões já estão abertas. Para mais informações, pode ser consultado o regulamento oficial.
No rescaldo da primeira tarde do Encontro Audiovisual Açoriano, Miguel aceitou conversar com a Comunidade Cultura e Arte, no seguimento da respetiva palestra, “Promoção, Vendas e Distribuição Internacional”, e de outros assuntos levantados ao longo do dia.
O Miguel vê muitos filmes. Criativamente falando, a curta-metragem começa por ser um laboratório de aspirantes a realizadores, portanto começa por passar uma imagem de marca, uma imagem narrativa, o que for. Do ponto de vista de argumento, que especificações é que a curta-metragem deveria ter para ser mais facilmente internacionalizada? É apologista de uma curta quase puramente visual, sem diálogo, ou entende que, num cenário português, americano, anglo-saxónico, espanhol, ou outros, deve-se sempre preservar alguma forma de identidade através do idioma?
Deixa-me só fazer uma ressalva sobre a curta-metragem como um espaço de, como chamaste, laboratório. Não é apenas isso, porque muitos realizadores consagrados acabam por, muitas vezes, voltar a fazer curtas-metragens depois de já terem feito longas.
Um David Lynch, por exemplo?
Por exemplo. O David Lynch está sempre a fazer coisas. Tudo depende dos realizadores. Há pessoas que gostam de ter essa liberdade, entre dois projetos maiores. Isso é interessante, não é apenas um cartão de visita de um jovem realizador.
Portanto, é uma coisa que parte mais do conceito, de projeto para projeto?
Sim, sim. Quanto a isso, é uma questão muito difícil para mim de responder, porque é evidente que, se o filme tem uma temática universal, é claro que vai ter mais hipóteses de ser apreciado, porque há mais pessoas que estão interessadas nessa temática. Mas, por vezes, também as questões muito especificamente locais acabam por poder tocar e atingir pessoas de todo o mundo, até pela diferença, por estarem a ver algo que não conhecem. O argumento é uma coisa, a construção do argumento e da história, claro que isso é sempre importante. Com o tema podemos ser surpreendidos, muitas vezes com temas que, à partida, não teriam uma universalidade tão grande e podem tocar também nas pessoas, mas, se a ideia for apenas e só chegar ao maior número de pessoas possível e chegar a todo o mundo, claro que há temas e questões que são mais fáceis para lá chegar, evidentemente.
Do ponto de vista comercial, além da distinção, da premiação que o Festival atribui todos os anos, ainda é feito algum incentivo publicitário e/ou financeiro como rampa de lançamento?
Sim, claro que sim. Todos os festivais, ou a maior parte dos festivais, têm alguma ambição nessa matéria, penso eu, e é por isso também que existe. No caso das curtas, eu não colocaria a palavra “comercial”, como acabaste de dizer, porque a curta-metragem não tem em si mesma grandes potencialidades comerciais. Mas sim, além da premiação ser importante no currículo e na possibilidade de abrir mais portas ao realizador no futuro. Estamos a falar de curtas-metragens, filmes de pequena produção, que não têm máquinas gigantescas por trás que possam fazer grande publicidade, uma promoção como fazem muitas longas. Este tipo de filmes os festivais também ajudam, porque também os festivais editam os seus próprios materiais, publicam coisas sobre os filmes nos seus sites ou blogs, convidam críticos e académicos de cinema que também vão, eventualmente, escrever sobre os filmes. Convidam compradores, exibidores e programadores doutros festivais que também podem descobrir determinado filme e aí vão ampliar “n” vezes a visibilidade do filme. Ou seja, eu entendo que os festivais são eventos que têm de tentar amplificar o filme, fazê-lo chegar a outros canais, outros circuitos, e que não se resuma só a uma passagem no festival. Com certeza que, com alguns, vai acontecer. Se calhar, passam só no festival e ficam por aí. Com outros, vai-se conseguir criar algo à volta do filme através dos prémios, como tu referiste, mas também através das pessoas que convidam e da possibilidade de resenhas críticas que possam surgir da passagem do filme no festival. Tudo isso é muito importante, sobretudo, como eu disse, para produções que não têm um orçamento gigantesco para promoção.
A ideia [da Competição Estudantil] foi dar uma panorâmica daquilo que as nossas escolas de cinema conseguem fazer com os seus estudantes e tentar ter uma seleção com o melhor, entre aspas — com aquilo que nós achamos que é o melhor.
Miguel Dias
Ainda dentro disso. Falou em diferentes circuitos para uma curta-metragem — e vai-me dizer se acha que isto foi potenciado pela pandemia ou não. Acha que as curtas-metragens são recebidas de maneira mais simpática nos serviços de streaming? Porque, nos anos passados, antes de toda a explosão do streaming que estamos a viver agora, parece que a curta-metragem era sempre resignada a um espaço menor de cinema. Mas agora está-se a assistir ao fenómeno oposto. Falámos há bocado do David Lynch. Uma das primeiras curtas da Netflix é dele [“What Did Jack Do?” (2017)].
Porque, de facto, é uma duração que se presta mais a um visionamento em streaming, porque se uma pessoa tiver ali uma meia hora, em que esteja à espera de alguém, tem oportunidade de ver um filme inteiro. Nesse sentido, talvez seja uma forma de ver filmes que possa ser mais simpática para a curta-metragem do que uma sessão de cinema. Acho que nós temos sempre aquela ideia de pagar um bilhete para termos direito a um espetáculo que dura uma hora e meia. Não é só aí, não é? Nos concertos, nos jogos de futebol, numa peça de teatro, as durações aproximam-se um bocadinho, não é? É aquela duração pela qual nós pagamos. Ninguém, se calhar, ia pagar por um concerto de 10 minutos, portanto acho que é um bocado por aí.
Já que estamos a falar destas pequenas e grandes “segregações” de cinema, voltando ao Festival de Vila do Conde. Sobre a secção de cinema estudantil. Partiu de um propósito assumido de divulgar o contexto académico de fazer cinema em Portugal, ou uma alternativa seria destacar este tipo de cinema dos demais, de maneira a dizer “Este cinema teve mais recursos, teve mais tempo, eventualmente mais dinheiro.”?
Não, não é isso. Até porque eles são elegíveis para a competição principal. E, por vezes, acontece [ganharem]. Não tanto. Os recursos não são tudo, o que interessa é uma boa ideia. Numa curta-metragem, na maior parte das vezes, nem há grandes orçamentos, portanto não é tanto pelos recursos. A ideia foi mais o que acabaste de dizer, sem dúvida: dar uma panorâmica daquilo que as nossas escolas de cinema conseguem fazer com os seus estudantes e tentar ter uma seleção com o melhor, entre aspas — com aquilo que nós achamos que é o melhor. E também tentamos diversificar bastante até as escolas que apresentamos, que não são muitas, mas tentamos não colocar muitos filmes da mesma escola, tentamos dar essa panorâmica que falaste. Mas também foi uma forma de descobrir mais depressa eventuais talentos que já começam a dar nas vistas — o que não é muito comum, mas acontece — nos seus filmes de escola. Quando vemos os premiados da secção de escolas do Curtas, nós vemos, de facto, realizadores que depois se tornaram conhecidos e que agora fazem longas-metragens e tudo. Por exemplo, o Marco Martins ganhou em Vila do Conde a competição de filmes de escola. O João Salaviza também. A Salomé Lamas também. Mas, curiosamente, vemos no meio muitos outros que nunca mais fizeram nada. Ou melhor, [não fizeram] como realizadores, podem ter passado para outras funções, ou diretores de fotografia, ou assistentes de realização, ou argumentistas, seja o que for. Nem todos depois se confirmam como realizadores de longa-metragem de cinema. Mas a ideia é essa, é contactar com esses jovens talentos logo desde o início. Até porque depois vamos acompanhá-los, provavelmente nas curtas que fizerem a seguir, já a nível profissional e com maior orçamento.
Ainda sobre isso. Falou há bocado da seleção dos “melhores”. O Festival vai fazer agora 30 anos. Em tantos, aconteceu alguma vez o número de submissões ser menor do que estavam à espera e serem levados a considerar, para ter um número aceitável de filmes, alguns que, em situações normais, descartariam, por não terem a qualidade que pretendem para o festival?
Não. Primeiro, a questão do número: a tendência é de aumentar, porque, de facto, cada vez há mais pessoas a fazer [filmes], vemos o caso português, mas acontece o mesmo em todos os países, ou quase todos. Portanto, também é normal, como se faz mais, há mais inscrições. Também o nome do festival vai sendo mais badalado, talvez, e mais conhecido a nível internacional à medida que o tempo vai passando. É normal também que haja mais inscrições, ainda por cima no nosso caso, como somos um festival que é Oscar qualifying e também qualifica para os European Film Awards, por exemplo. Quem inscreve, quem está à procura de festivais onde inscrever os filmes, se calhar, também vai ver quais são os que têm — não quer dizer que sejam os melhores — uma espécie de caução, que pode depois nem corresponder à realidade, mas, se calhar, é aí que as pessoas vão também. Por isso, sim, as inscrições vão aumentando. A qualidade é muito discutível. Para mim, às vezes, é muito boa, a nível geral. Outras vezes, não. Outras vezes, há lá muitos filmes que eu não gosto. Mas isso sou eu, porque repara: nós temos 12 pessoas só na seleção da Competição Internacional, portanto 12 pessoas são 12 formas, não muito diferentes se calhar, de ver o cinema e de julgar um filme.
Eu entendo que os festivais são eventos que têm de tentar amplificar o filme, fazê-lo chegar a outros canais, outros circuitos, e que não se resuma só a uma passagem no festival.
Miguel Dias
Numa equipa, totalmente, de quantos programadores? De quantos jurados?
No nosso caso? Considerando todas as outras competições (experimental, para crianças, etc.), estamos a falar de mais de 20. Isso é fácil de explicar. Parece muito (e é). Pode dar discussões intermináveis para se chegar a uma conclusão [Risos], porque realmente é muita gente. Mas também, perante tantos milhares de filmes recebidos, tem de ser, porque senão era impossível ver todos. Mesmo assim é muito difícil.
Já agora, as submissões para esta edição já começaram?
Começaram logo a seguir a terminar o festival anterior. Devem ter começado logo, senão foi em Agosto, deve ter sido no início de Setembro. E vão até Abril.
Vão até um prazo estendido de 30 de Abril, não é?
Sim, isso, e nós fazemos três fases, porque há uma taxa de inscrição em que existe um early word, uma taxa normal. E depois uma para os mais atrasadinhos, que é mais cara [Risos].
Para fechar, então sobre a trigésima edição do festival…
A trigésima primeira. A trigésima já passou, foi no ano passado. Deves estar a falar do próximo, ou não?
Não, estou a pensar nos 30 anos, já que o festival nasceu em 1993, a propósito das comemorações dos 30 anos do Curtas de Vila do Conde.
[Risos] Certo, é verdade. Mas esta é a trigésima primeira edição, porque não existe a edição zero. Sempre que nós fazemos edições em que comemoramos algum efeméride é sempre no ano ou 20 ou 30, que na realidade é 19 anos ou 29, mas é o número de edição que conta. Tu ias perguntar se tínhamos alguma coisa especial. Já aconteceu comemorações, mas não foi nada de especial. Nós já temos feito porque houve os 20, depois os 25, porque também é um quarto de século, não é? E o que nós fazemos muitas vezes é revisitar um bocado a história e o programa e os autores e já tínhamos feito isso há relativamente pouco tempo (nos 25) e não quisemos estar a fazer outra vez. Por isso, a maneira como assinalámos foi muito diferente, foi apresentar a programação do festival em 30 locais diferentes. Podia ser pequenos apontamentos, não é em trinta salas de cinema, obviamente. Locais menos habituais, onde estava a acontecer qualquer coisa, numa noite, por exemplo, uma projeção num sítio especial. O que fizemos foi isso: levar a 30 lugares diferentes, fazer projeções para miúdos nas freguesias rurais, por exemplo. Foi mais por aí.
Portanto, este ano, mais do mesmo (no melhor sentido), ótimos filmes selecionados…
Mais do mesmo e tudo diferente! Porque o núcleo da programação mantém-se, a estrutura mantém-se, mas claro que depois os autores e os filmes são sempre diferentes e, esperamos, sempre apetecíveis!
Esta entrevista teve o contributo de Ana Marques.