Entrevista. Paul Mason: “A única coisa que pode derrotar o fascismo é uma disposição humanista de colaboração e solidariedade entre pessoas”

por Mário Rufino,    9 Novembro, 2022
Entrevista. Paul Mason: “A única coisa que pode derrotar o fascismo é uma disposição humanista de colaboração e solidariedade entre pessoas”
Paul Mason / DR

Encontrámos Paul Mason cansado, mas sempre disponível para conversar. Durante a edição do Fólio, o autor britânico, que é formado em Música e Política pela Universidade de Sheffield, e que foi jornalista do The Guardian e editor de Economia do Channel 4, conversou com Mariana Mortágua sobre “Moeda” e com Paulo Moura sobre o seu livro “Como Travar o Fascismo” (Objectiva), entre entrevistas e declarações. A Biblioteca Municipal / Casa José Saramago recebeu a Comunidade Cultura e Arte para uma conversa com o autor sobre o seu mais recente livro publicado em Portugal.

Deixe-me começar com uma citação do seu livro: “Em 2020, quando os antifascistas dos Estados Unidos iniciaram um tópico no Twitter a arrolar todas as definições conhecidas de fascismo, encontraram mais de trinta. Algumas tinham a extensão de uma página. Outras eram frases de três linhas tão densas em gíria académica que podiam dar-nos uma dor de cabeça. Muitas contradiziam-se diretamente”. Temos uma definição para fascismo?
Não creio que a definição seja o mais importante. Tal qual o historiador Robert Paxton, penso que o mais importante é entender como é um processo fascista. Estamos demasiado obcecados em olhar para os partidos e em categorizá-los como fascistas ou não-fascistas.

Existe uma área onde é importante fazer isto, que é na aplicação da lei. Por exemplo, na Alemanha, a lei tem uma definição de fascismo que permite ao Estado alemão dizer, como disse a 7.000 membros da Alternativa para a Alemanha [Alternative für Deutschland], que eles pareciam fascistas e ficariam sob vigilância. É aqui que a definição entra.

Para aqueles que lutam contra o fascismo, o mais importante é perceber como é o processo fascista, que tipos de organizações cria, que tipo de ações causa, como é que põe a democracia em causa. É disso que trata o livro. Mas fico contente por poder dizer, porque toda a gente clama por uma definição, quais é que acho que estão erradas. No entanto, o mais importante para mim é que o fenómeno, na sua totalidade, é o medo da liberdade motivado por um deslumbre de liberdade mobilizado para fins violentos. É isso que vemos quando encaramos o fascismo.

Posso dar uma lista de atributos atuais de muitos partidos fascistas, por exemplo, o elemento comum de todos os fascismos, agora, é o desejo de uma guerra civil étnica e global. É com isto que todos sonham, seja a RSS [Rashtriya Swayamsevak Sangh] na Índia ou as milícias da Supremacia Branca, nos Estados Unidos, ou as fações de “linha dura” atrás de Bolsonaro. Alexander Dugin na Rússia, também. Eles sonham com uma guerra civil étnica e global. Há variantes, estão a chegar e precisamos de estar preparados.
Todos os fascistas estão em guerra contra a modernidade. Isto não era verdade com Mussolini, mas é verdade agora. Todos querem reverter o século XXI. Odeiam-no.

Mas não é um pouco perigoso? Por exemplo, Paulo Moura, na conversa que tiveram sobre “Como Travar o Fascismo”, disse que depois da nossa revolução os socialistas eram fascistas, ou todos os que não demonstrassem veia revolucionária eram fascistas.
Posso dar cinco elementos que definem, na generalidade, movimentos fascistas, mas diria que não é tão importante como olhar para o momento. Por exemplo, não penso que o Chega seja fascista. É um partido populista de direita. Mas o problema com os populismos de direita é que são um trabalho em curso e alguns podem ser arrastados para o conservadorismo e na direção de atividades fascistas.

O fenómeno número um do populismo de direita que receio é o republicanismo americano, o “trumpismo”. Trump encorajou a insurreição. A insurreição foi liderada por fascistas, sem dúvida, por milícias supremacistas. A insurreição falhou. O movimento americano conservador de direita poderia ter dito que aquilo tinha sido um grande erro, mas em vez disso disseram que tinha sido correto, era legal, e defenderam. Ter um partido de “mainstream” a defender a insurreição e a violência faz-te sentir que o magnetismo da ideologia fascista é, na verdade, bastante forte naquele partido.

Assim sendo, eu não sou contra académicos a gastarem anos a criar definições específicas e muito detalhadas do fascismo; só acho que não são as coisas mais úteis que podemos ter. Eu sou alguém que, trabalhando na tradição marxista, quer ver tudo na sua totalidade.
O mais importante não é saber se o Chega é ou não um partido fascista. O mais importante é saber se Portugal está num processo que levará diversas forças em direção a uma conclusão fascista. Neste momento, penso que não. Então, não é dos locais com que mais me preocupo. Os locais com que mais me preocupo são os Estados Unidos da América, Índia, Brasil e Rússia.

“A liberdade de mudar de género é um enorme impulso do fascismo. Alguns dos meus amigos que trabalham disfarçados em grupos fascistas dizem que a ferramenta principal de recrutamento, neste momento, é o medo dos direitos das pessoas transgénero.”

Paul Mason

O momento em que Trump fez aquele comício é uma enorme cicatriz nos Estados Unidos.
Todos os fascismos evoluem e só conseguem evoluir através de ações dramáticas.
A preparação para essa insurreição foi em Madison (Wisconsin) ou em Michigan, não me lembro bem. Teria de confirmar. Republicanos entraram na capital do Estado, alguns armados. As milícias estiveram lá. Eles não depuseram um governo, eles foram para a Assembleia Geral com armas. Isto foi como um ensaio. Outro ensaio foi quando os “Boogaloo Boys”, indivíduos a usarem camisas havaianas e a carregar armas, apareceram subitamente numa demonstração de “Black Lives Matter”. Eles não confrontaram os manifestantes do “Black Lives Matter”, mas não os apoiaram. Foram uma espécie de aviso. Isto aconteceu num período de meses.

Paul Mason / Fotografia Marta Jara – via wikipedia (CC BY-SA 3.0)

Trump disse que alguns eram bons rapazes.
Trump disse que algumas pessoas eram muito boas. E também disse para os “Proud Boys” recuarem e aguardarem. Temos uma evolução e interação entre populismo de direita, como Trump, e fascismo. O que estamos a ver, com um fenómeno como o Chega, é que chegam a um ponto em que dizem como Trump disse: alguns fascistas são boas pessoas e queremos que alguns desses fascistas aguardem para o caso de estarmos sob repressão. É assim que o populismo de direita sempre interagiu com movimentos fascistas. Vimos isso na Alemanha, nos anos 30 do século passado. Havia um partido chamado Partido Popular Nacional Alemão [Deutschnationale Volkspartei, DNVP], que era enorme. Teve 14% dos votos e era dirigido por um bilionário chamado Alfred Hugenberg que era dono de muitos jornais. O clássico Rupert Murdoch de direita. Seis meses depois de Hitler chegar ao poder, ele dissolve o partido de Hugenberg e os seus membros ingressam nos nazis. Então, vemos uma simbiose entre fascismo e populismo de direita.

O populismo pode ser uma “firewall”? Qual é a ligação entre o populismo e o fascismo?
Este é o problema. Em 1990, quando começámos a estudar o populismo de direita, a assunção foi de que não era importante quão mau era, pois acabaria por absorver as energias do fascismo. Na Grã-Bretanha, temos um partido desses. O “United Kingdom Independence Party” [UKIP]. Foi a força principal por trás do Brexit. Costumávamos brincar quando dizíamos que eram fascistas com blazers.

É o partido de Nigel Farage?
Sim, sim. No fim, já não tinha piada porque durante os momentos críticos em que Boris Johnson fechou o nosso parlamento, eu vi pessoas nas ruas a cantar por Nigel Farage e pelo Brexit e a cantar pelo Boris Johnson. Eu reconheci-os por 40 anos de antifascismo.
De certa forma, o UKIP não era de fascistas em blazers; eles eram uma área de incubação onde o fascismo britânico podia funcionar. Felizmente, o fascismo britânico não é assim tão perigoso.
Índia, Brasil e os Estados Unidos têm uma dinâmica que eu vejo como perigosa. A Rússia tornou-se efetivamente totalitária com ideologia fascista.

“Não penso que o Chega seja fascista. É um partido populista de direita. Mas o problema com os populismos de direita é que são um trabalho em curso e alguns podem ser arrastados para o conservadorismo e na direção de atividades fascistas.”

Paul Mason

“O fascismo é o medo da liberdade, desencadeado por um vislumbre de liberdade.” [em “Como Travar o Fascismo”] O medo é a raiz do fascismo?
A razão pela qual sou tão insistente com o termo “medo da liberdade”, que foi usado por psiquiatras de esquerda nos anos 30, é porque quero tentar provocar uma resposta por pessoas de esquerda que acreditam que o fascismo é somente produzido por circunstâncias económicas. Está realmente alguém a morrer de fome? Está alguém no Alentejo que votou no Chega a morrer de fome? Não. Pelo menos, [não está] como nos anos 30.

A primeira certeza ideológica para muita gente é de que o mercado resolveria. Uma sociedade baseada no mercado era uma sociedade segura. Se obedeceres ao mercado, as coisas vão correr bem na tua vida. De facto, quando isso rebentou, começaram à procura de outras certezas. Antes dos mercados, tínhamos estados, nações, raças e religiões. Então, o medo da liberdade é desencadeado quando se vê pessoas atingirem níveis de liberdade que se pensa que um ser humano não deveria ter. A liberdade de mudar de género é um enorme impulso do fascismo. Alguns dos meus amigos que trabalham disfarçados em grupos fascistas dizem que a ferramenta principal de recrutamento, neste momento, é o medo dos direitos das pessoas transgénero.

A segunda [certeza] é o medo do feminismo. Nós sabemos dos anos 30 que tanto a esquerda como a direita, quando realmente olharam para o que estava a motivar as pessoas, viram que não era a pobreza; era uma espécie de preocupação existencial que outras pessoas iriam gozar a vida e gozar um nível de liberdade que para eles era totalmente estranho.
Em 1920, 1921, os proprietários italianos viram o campesinato socialista ganhar eleições locais. Isto foi o que os despoletou. Eles não conseguiam suportar ver homens sem sapatos em edifícios como este [biblioteca], ou edifícios institucionais, onde o proprietário tinha sido desde sempre o presidente, e os filhos tinham sido funcionários públicos. Isto era uma afronta, era o fim da liberdade deles e o começo da liberdade dos camponeses. Então, perguntaram quem lhes daria armas e quem mataria aqueles socialistas. Foi assim que o fascismo italiano começou.

Capa de “Como Travar o Fascismo / História – Ideologia – Resistência”, livro de Paul Mason (ed. Objectiva)

A reformulação do conceito de género, a intolerância de instituições religiosas, a mudança do conceito de família tradicional (com casamento homossexual) e a ascensão da mulher causa o medo que alimenta o fascismo? 
Diria que ainda mais do que nos anos 30. O fascismo italiano foi uma resposta ao poder do campesinato. Essa era a liberdade de que não gostavam. Para Hitler, era muito claro que era o comunismo. O Partido Comunista Alemão [Deutsche Kommunistische Partei, DKP] tinha quatro milhões de votantes e tinha dezenas de milhares de membros. Em todas as comunidades de trabalhadores havia comunismo bem vivo. O Partido Socialista, por muito moderado que fosse, também tinha uma pegada muito grande em cada comunidade de trabalhadores.

Para o nacionalista alemão, que acreditava que os socialistas e os comunistas tinham dado uma facada nas costas da nação, em 1918, que tinham matado o nacionalismo alemão e que tinham aberto a porta a algo completamente exterior como o judeu-bolchevismo, ou seja, comunismo judeu, era insuportável ver. Todos os bairros tinham bares comunistas. Então, o primeiro ato dos nazis foi abrir bares nazis. Eles partiam janelas e de vez em quando saíam para destruir bares comunistas. Era como os homofóbicos e os bares gay. Não conseguiam passar à porta, queriam cuspir-lhes e atirar-lhes tinta. A existência deles comia-lhes a alma. A existência dos judeus e dos bolchevistas para os nazis é como para os fascistas atuais a existência do feminismo. É a existência de mulheres com direitos sobre a reprodução e que não se comportam na realidade como se comportam na pornografia. Esse é o grande problema. É o que motiva muitos rapazes a ficarem suscetíveis a propostas fascistas. O caminho para fascismo é muitas vezes através da misoginia. Isto é diferente dos anos 30.

“Há um indivíduo nos Estados Unidos que foi acusado pelo governo de ser um agente russo e que fugiu para a Rússia. Ele financiou dois grupos nacionalistas negros e um de supremacistas brancos. Da mesma conta bancária. Eles não querem saber se são de esquerda ou de direita desde que promovam controvérsia.”

Paul Mason

A Covid e o aumento do custo de vida não alimenta ainda mais?
Sim, é verdade. Se olharmos para o que aconteceu, em Londres, durante o confinamento, tivemos pessoas antimáscaras nas ruas e também vimos pessoas antivacinas. Ao lado deles, estavam conspiracionistas, pessoas loucas que acreditam que a elite empresarial é composta por lagartos alienígenas. E também apareceram ex-militares, que basicamente eram apoiantes de Trump. Havia outro grupo que dizia que o sinal 5G dos telemóveis está a causar doença. Cada um isolado é risível. Mas assim que se juntam a um grupo de jovens cujo principal problema não é esta loucura, mas é por o mundo não se comportar como nos filmes ou nos jogos de vídeo… O momento em que te deves preocupar é quando essa gente começa a aparecer nas manifestações. E foi isso que vimos e é interessante observá-los.

O movimento de direitos do homem é muitas vezes chamado de “Rebelião Beta”, ou “Insurreição Beta”. Eles acreditam ser machos beta. Na ideologia deles, o macho alfa merece ter a namorada mais bonita. O que não merecem é que lhes seja dito que não querem dormir com eles, que ninguém quer dormir com eles, que são idiotas. Para eles, é uma inversão da ordem natural. Então entram na teoria. A teoria é de que o marxismo usou o feminismo para destruir a masculinidade tradicional. Depois mudaram muito rapidamente para o ódio às mulheres. Há um enorme movimento autodenominado “Incels” [involuntary celibate], de homens celibatários. Se formos aos seus sites, eles gastam muito tempo a motivarem-se a odiar mulheres. Todas as mulheres estão a usar e a abusar dos homens, a oprimi-los.

O problema que temos é quando isto tudo se junta. E em certos momentos, tudo se junta: os QAnon, as “pessoas-lagarto”, os antivacinas e os jovens não integrados que dizem ser as principais vítimas da sociedade. É o que tem acontecido.

Quando estava a preparar a entrevista tinha a televisão ligada. Estava a dar o Manchester City-Manchester United. Perguntei-me se as claques não são, como as redes sociais, uma fonte de recrutamento da extrema direita. Há muitos jovens não integrados.
Tradicionalmente, grupos de apoiantes de algumas equipas têm sido base de recrutamento, mas se fosse só isso que era preocupante, não me preocupava muito. Pode-se facilmente conter isso. É diferente quando números elevados de jovens começam a acreditar que são reprimidos pelo feminismo. O futebol inglês, porque custa tanto dinheiro para ir ver, tornou-se de classe média. Não, não estou preocupado com os ultras do futebol; estou preocupado com os indivíduos sentados no quarto a jogar “Grand Theft Auto” com um canal “Discord” cheio de ideologia fascista.

Paul Mason e Mariana Mortágua em conversa, moderação de Ricardo Alexandre, no Fólio / Fotografia de Verónica Paulo

Na conversa de ontem [com Mariana Mortágua], falou sobre as redes sociais por trás dos jogos de vídeo. É uma base de recrutamento?
Um grupo antifascista chamado “Unicorn Riot” infiltrou-se em canais do “Discord” dos supremacistas brancos. O “Discord” é uma ferramenta de jogos de vídeo. Enquanto jogam, falam uns com os outros. O “Unicorn Riot” ouviu o que estes “gamers” estavam a dizer. Lembremo-nos de que há também canais de “gaming” de esquerda, mas há muitos de supremacistas brancos. O mais importante que eu tirei de extração de dados do que fizeram é o volume de referências a genocídio.
Se falo de genocídio, quero beber um copo de whisky antes de pensar nisso porque não é um assunto agradável para estudar. E se faço uma reunião onde falo sobre genocídio, trato o tema com reverência. Eu venho de um partido com origem judaica e já vi violência étnica; vi violência étnica no Quénia, à minha frente. Mas para estes indivíduos, o genocídio é uma ideia empolgante. Eles querem falar sobre isso. Eles dizem que são vítimas de genocídio. Quando estão a matar pessoas nos jogos de vídeo, gritam muitas vezes «genocídio, genocídio». Isto é perigoso.

Dito de outra forma, o que a cultura “gaming” pode fazer é rapidamente normalizar palavras, ideias e ações transgressoras que se transformam numa espécie de prática para se fazer realmente. No “Minecraft”, eles dizem «vamos reunir todos os que não se parecem com brancos e matá-los». O “Minecraft” transforma-se numa metáfora. Dentro do “Minecraft” pode-se falar de tudo. São exemplos de como a cultura “gaming” se tornou num mundo virtual onde todos os temas do fascismo moderno são disponibilizados para os jogadores.

Não fomos ingénuos sobre as redes sociais? Com mais informação as pessoas ficariam mais informadas e o fascismo e o populismo não apareceriam.
Pensei que as redes sociais fossem uma ferramenta natural da esquerda, ou pelo menos, de uma esquerda anti-hierarquia. Eu observei a esquerda leninista. A esquerda leninista não conseguia lidar com as redes sociais, não conseguia lidar com e-mails. Os partidos de esquerda que conheci nos anos noventa costumavam dizer que os membros não podiam enviar emails uns aos outros; só o comité central poderia enviar-te um email. Todas as hierarquias acham que as redes são difíceis. As hierarquias empresariais e os estados repressivos têm dificuldades em lidar com as redes. Pensei que seria muito difícil para eles reprimir as redes.

A teoria de informação “one on one” diz-te que para destruir uma rede é preciso enchê-la com ruído. A teoria da informação nasceu como uma forma de parar o ruído nas companhias de telefone. O ruído é o inimigo. Eu telefono-te, tu telefonas a outra pessoa… O ruído à nossa volta enche a rede até não conseguirmos ouvir ninguém. Eles perceberam que a melhor forma de destruir uma rede era enchê-la com ruído. Não foi só a Rússia e a China a conseguirem isto. Todos eles têm exércitos de “trolls” a encherem as redes com ruído, com hostilidade, raiva, informação irrelevante, desinformação. O que precisamos é que as redes decidam filtrar o ruído. Quantos dos meus 629.000 seguidores no Twitter são reais? Não sei. O Twitter não consegue dizer-me.

Em conclusão, as redes tornaram-se excelentes veículos para o fascismo em rede, para um fascismo não-hierárquico. Estes fascismos não precisam de um líder que escreva um “Mein Kampf” para que todos concordem com ele. Individualmente, ficam muito felizes por cocriarem um fascismo, por adicionarem o seu pedaço de mania ou loucura à ideia geral e descentralizar a organização do fascismo. É por isto que tantas definições académicas do fascismo não sobrevivem.

Comportam-se como células terroristas?
Não acredito que sejam como células terroristas. Neste momento, na Grã-Bretanha temos um movimento de esquerda chamado “Não paguem a conta do gás”.  Eles trabalham numa rede em que te inscreves, pões o teu código postal, e eles põem-te num grupo do “Whatsapp“ desse código postal. Depois conheces as pessoas que estão a 200 metros da tua casa. Então estás numa célula. Não há nada de mal nisso. É uma forma de organizar muito efetiva. O problema é que os fascistas conseguiram aprender a utilizá-la.

Se eu quisesse criar uma campanha antirracista nos anos 90 ou 80 para protestar contra o apartheid na África do Sul, eu tinha de marcar uma reunião para todos virem e concordarem com algo em particular, como por exemplo, sermos um comité antiapartheid de Leicester [onde o autor vive]. Tudo bem, mas temos imediatamente um problema. Este é comunista, esse é socialista, aquele é liberal, ou católico. Como temos algumas diferenças, temos de limitar o que podemos fazer. Temos de elaborar as limitações do que podemos fazer e depois chamamos-lhe “Demo”.

Hoje, dizemos simplesmente “Quem quer vir à Demo?”. Não temos de ter o partido comunista e os católicos a discutirem numa sala. As pessoas que decidem ir à “Demo” fazem uma tempestade contra o alvo; não precisam de concordar uns com os outros nem que os outros existam exceto naqueles minutos em que estão a fazer algo de positivo. Os fascistas aprenderam a usar esta técnica também e usam-na de forma muito efetiva com “bots”, “trolls”, pessoas hostis. Não os incomoda que sejam ajudados por ditaduras que querem quebrar a democracia.

Há um indivíduo nos Estados Unidos que foi acusado pelo governo de ser um agente russo e que fugiu para a Rússia. Ele financiou dois grupos nacionalistas negros e um de supremacistas brancos. Da mesma conta bancária. Eles não querem saber se são de esquerda ou de direita desde que promovam controvérsia. 

Estava a pensar nos “homens-lagartos”. É uma luta com armas desiguais. A ciência tem de provar, mas eles não têm de provar. Como é que se ganha esta luta?
Lutamos com o método de revisão por pares e com a autoridade das universidades. Uma coisa interessante que alimentou a ideologia de extrema direita nos Estados Unidos foi a declaração de guerra à revisão por pares, universidades e à comunicação social. Se lermos os blogues de há 10 anos de Curtis Yarvin, que era um blogger de Silicon Valley e grande amigo de Peter Thiel e apoiante de Trump, ele diz que as universidades são de esquerda, a comunicação social é de esquerda e que o método científico deve ser contestado. Não podemos permitir que estes grupos falem de cátedra como se tivessem autoridade automaticamente.

Yarvin diz que precisamos de alternativas. O que aconteceu foi a emergência de fontes abertas, sem revisão pelos pares, publicações académicas amadoras. Os dois assuntos obsessivamente abordados por estes jornais são: a inferioridade biológica das mulheres em relação aos homens e a inferioridade biológica dos negros em relação aos brancos. Porque esta investigação nunca poderia ser publicada (não poderiam arranjar trabalho numa universidade se tentassem publicar este trabalho), eles fundam os seus próprios jornais. As pessoas que lá estão são académicos; não são somente pessoas ignorantes.

Estão a fazer as suas coisas fora da revisão pelos pares, principalmente em disciplinas que estão a ser criadas a partir do zero, como Psicologia Evolutiva, que é uma disciplina onde as pessoas que lá trabalham estão a fazê-lo na assunção de que o cérebro da mulher está ligado para ser subserviente ao homem. Para mim, tudo isto é merda.

A Universidade de Cambridge, uma das mais prestigiadas no mundo, despediu um dos seus investigadores por estar a participar num destes jornais. Imediatamente a seguir, ele teve um fundo de centenas de milhares de dólares para sua defesa angariado pelo movimento de apoio a Trump. Neste momento, ainda está numa batalha legal contra a universidade. Ele podia demitir-se do jornal, mas não o fez. Ele quer estar no jornal que promove teorias não tradicionais de superioridade genética. Os ataques vêm de todo o lado.

Acontece o mesmo com as alterações climáticas. No seu livro fala de “Ecofascismo” e de “Negacionismo”, ambos na extrema direita. O que causa estas duas correntes opostas dentro do mesmo espectro político?
Uma das grandes diferenças entre o populismo de extrema direita e o fascismo é que o populismo de extrema direita nega genuinamente a ciência climática. Na Grã-Bretanha, dizem que é natural e nada tem a ver com a emissão de carbono. Têm-se oposto a parques eólicos porque têm esta pseudociência que diz que os parques eólicos produzem campos eletromagnéticos que matam morcegos e que os morcegos devem ser salvos. Isto é o populismo de extrema-direita. O fascismo diz que as mudanças climáticas são reais. Tragam-nas. Pentti Linkola, do ecofascismo finlandês, disse que no futuro o planeta só pode hospedar 1,5 biliões de pessoas e não 7 biliões. Temos de começar a livrar-nos de 6 biliões de pessoas. Então surge a pergunta: Quem deverá ser salvo? Este mito fascista tem mais de duzentos anos, é o mito mais antigo: as pessoas brancas e nórdicas são os melhores humanos na Terra. A sua inteligência permitiu-lhes sair de África, que é o local de origem dos humanos. Isto é algo assustador sobre o fascismo.

Podemos ouvir Putin falar sobre qual é a razão de existir do mundo se a Rússia não está nele. É uma ideia niilista diretamente de Nietzsche e de fascistas como Julius Evola e Alexandr Dugin. Há uma forte corrente niilista. Hannah Arendt, a grande escritora liberal, escreveu, para mim, a coisa mais profunda sobre os nazis. Ela disse que não só desumanizavam as vítimas como desumanizavam eles próprios. Ela disse que, no fim, não queriam saber se iriam viver ou morrer nem se tinham realmente vivido. Este é um dos efeitos extremos do fascismo. Porque se hão de preocupar? O fascismo não é a única fonte niilista anti-humanista no pensamento moderno. Muito do pós-modernismo tem sido anticientífico, anti-humanista e niilista.
A única coisa que pode derrotar o fascismo é uma disposição humanista de colaboração e solidariedade entre pessoas.

Ontem fiquei surpreendido por Mariana Mortágua dizer que a responsabilidade da esquerda não era lutar contra o fascismo ou contra a direita populista, mas lutar contra o centro do espectro político. Não estarão a escolher os inimigos errados?
Quero que a esquerda saia da ideia de que o principal problema do mundo é Christine Lagard e Olaf Scholz. Isso era real, entre 2011 e 2015. Nesse período havia uma luta legítima entre a esquerda e o centro. Agora há um perigo mais claro, o perigo do fascismo e da direita autoritária e totalitária.

Eu não concordo com Lagard, Scholz, Sánchez ou António Costa, mas eles não são o meu inimigo principal. Gostava que a esquerda saísse disso. Na verdade, grupos como o Bloco [de Esquerda] percebem isso. Se a CDU [PCP] percebe, não sei. Os movimentos ultraortodoxos comunistas na Europa acabaram por ser, em muitos sentidos, câmaras de eco para a propaganda de Putin.

Nos Estados Unidos, existe um tipo de esquerda que não se pode dizer se é esquerda ou direita. São estas pessoas que me têm atacado de forma incansável. Eles dizem ser de esquerda, mas tudo o que dizem é de direita. Vou dizer isto na próxima semana, quando estiver na Alemanha. Na verdade, o que quero dizer à social-democracia é para se abrir um pouco à esquerda, aos Verdes e aos movimentos de esquerda porque eles querem fazer parte disto. Têm de lhes dar um caminho para fazer parte disto. O que não podemos fazer é tolerar, seja de que forma, o apologismo de Putin.

Deixe-me ler uma passagem do seu livro para contextualizar a pergunta: “O compartimento tresanda a suor e fumo cediço. As pessoas encontram-se sentadas nos bancos com rostos ensonados. A algumas pende-lhes a cabeça (…). Entregamos panfletos a todas. Estou estupefacto. É tudo tão diferente do que esperava. Ninguém fala, não há excitação. Aceitam os panfletos silenciosamente. Alguns Leem-nos, a maioria põe-nos logo de lado”. Corremos o risco de sermos esses cidadãos a deitar fora os avisos? 
Exatamente. Essa imagem da novela de Jan Peterson [“Our Street: A Chronicle Written in the Heart of Fascist Germany”] sobre o seu tempo nas primeiras semanas do fascismo surpreendeu-me realmente. Eu fiz isso, eu deixei panfletos em fábricas quando era ativista de esquerda. Eu vi pessoas receberem os panfletos e dizerem continuem com a greve, ou algo assim. Mas se damos um panfleto a dizer “O fascismo está aqui”, eles atiram-no para o chão. Esse é o nível de derrota que não queres jamais experienciar na tua vida.

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