Entrevista. Tiago Nabais: “Na literatura de ficção ainda existe espaço para abordar certos temas na China”
Revelação Cultural é um podcast sobre a China da autoria de Hélder Beja, feito a partir de Portugal. Conta com o apoio da Comunidade Cultura e Arte, do jornal Ponto Final e do Centro Científico e Cultural de Macau.
Tiago Nabais, investigador e tradutor de autores chineses como de Yu Hua e Yan Lianke, acredita que a literatura continua conseguir escapar melhor à “censura apertada” quando comparada com o jornalismo ou o cinema “que neste momento são áreas com limites muito mais claros” na China. Em entrevista ao podcast Revelação Cultural, Nabais explica que “a ficção dispõe de alguns elementos e algumas ferramentas para lidar com coisas tão paradoxais e de escalas aparentemente absurdas como foram as das transformações da China nas últimas décadas — ferramentas como as parábolas, o absurdo e o humor negro”.
Se hoje conhecemos mais alguma coisa da literatura chinesa vertida directamente para a língua portuguesa, devemo-lo acima de tudo ao trabalho desenvolvido nos últimos anos por Tiago Nabais, professor, investigador e tradutor. Nabais pôs em português obras de autores tão importantes quanto Yu Hua e Yan Lianke, todas publicadas pela editora Relógio d’Água.
Durante muitos anos, Tiago Nabais fez o necessário longo caminho de estudo da língua e cultura chinesas, que começou nos cursos livres do Centro Científico e Cultural de Macau, em Lisboa, e prosseguiu no curso de Tradução e Interpretação Português/Chinês do Instituto Politécnico de Leiria, em 2009, antes de se mudar para a China. “O curso fez com que eu passasse dois anos lá, um em Macau e outro em Pequim, a estudar. Depois, ainda tive uma bolsa da Fundação Oriente para estudar mais um ano de chinês em Xian. Fiz esse percurso com a Telma Carvalho, que é a minha companheira. Conhecemo-nos nesse curso e ficámos juntos”, conta Nabais. “Na altura percebemos que o ensino do português estava em grande crescimento e que era relativamente fácil encontrar trabalho, sobretudo para pessoas que já se desenrascavam com o chinês, e começámos a trabalhar em Shijiazhuang, na Universidade de Estudos Estrangeiros de Hebei. Fiquei lá três anos e foi nessa altura que comecei a ler mais literatura.”
Inicialmente, Tiago Nabais “tinha um pouco a ideia errada de que a literatura chinesa não deveria ter nada de muito interessante porque existia uma censura apertada”. Mais tarde, quando começou a ler autores que lhe recomendavam, percebeu que “essa assumpção não era de todo correcta e que havia de facto, mesmo entre os autores publicados – claro que depois há livros que não podem ser publicados no interior da China mas que depois acabam por sê-lo em Taiwan ou em Hong Kong — mas mesmo entre os autores publicados havia coisas muito interessantes e reflexões até mais profundas do que imaginava que fosse possível sobre temas como a relação da China com o passado recente ou a relação dos chineses com as grandes mudanças da últimas décadas, as coisas boas mas também as angústias e os problemas que isso trouxe”.
Apesar de considerar que “as coisas pioraram um pouco nos últimos anos”, o tradutor continua a achar que “na literatura de ficção ainda existe um espaço um pouco maior para abordar certos temas na China, em comparação por exemplo com o jornalismo ou até com o cinema que neste momento são áreas com limites muito mais claros”. Isto porque “a ficção dispõe de alguns elementos e algumas ferramentas para lidar com coisas tão paradoxais e de escalas aparentemente absurdas como foram as das transformações da China nas últimas décadas — ferramentas como as parábolas, o absurdo e o humor negro”.
Em Portugal, a atenção dada a literatura chinesa continua a ser diminuta. “A presença da literatura chinesa é ínfima, ainda hoje, e na altura senti que seria um desafio interessante e que se justificava até para promover um conhecimento mais profundo da China tentar traduzir alguns autores”, lembra Nabais. Yu Hua foi, autor de China em Dez Palavras, Crónica de Um Vendedor de Sangue e Viver, foi a sua primeira escolha. “Contactei-o e ele foi muito amável, até me ajudou a tratar das questões dos direitos de autor. Consegui convencer a Relógio d’Água a avançar para isso e acabámos por publicar três livros do Yu Hua, depois ainda traduzi mais um do Yan Lianke (As Crónicas de Explosão)”.
Tiago Nabais e Yu Hua conheceram-se pessoalmente em Macau, em 2017, durante o festival Rota das Letras, que tinha o autor chinês como convidado. Esse foi também o regresso do tradutor à primeira cidade chinesa onde viveu. “Foi o primeiro sítio [da China] onde estive a estudar um ano. As primeiras recordações são bastante impactantes, Macau é um sítio esquisito para nós portugueses, porque chegamos e há assim uma espécie de dissonância cognitiva, tens as ruas em português, há uma série de elementos de arquitectura e toda aquela construção de que um dia aquilo foi Portugal ou qualquer coisa desse tipo… Mas depois chegamos e na vida da cidade isso é completamente diferente. Eu estava muito mais interessado na China [continental] e sabia que ia para Pequim no ano seguinte. Houve vários aspectos, nomeadamente também a comunidade portuguesa de Macau, que não me fizeram sentir grande vontade de ficar por lá.”
No interior da China, Nabais viveu na capital, em Shijiazhuang e noutras cidades. Ali encontrou um país e um povo surpreendentes e complexos, e os livros ajudaram à sua compreensão. Uma das obras marcantes foi Deep China, assinada por vários autores e coordenada por Arthur Kleinman, da Universidade de Harvard. O livro tem como subtítulo “A vida moral da pessoa, o que a antropologia e a psiquiatria nos dizem sobre a China de hoje“. Trata-se de um livro académico e multidisciplinar, que “apesar de ser composto por capítulos mais ou menos autónomos que focam questões diferentes – por exemplo, o desaparecimento de zonas das cidades, a revolução social, a depressão, o suicídio, o estigma das doenças mentais e outros temas desse tipo — tem muito contexto, é um livro em inglês claramente virado para estrangeiros, que quando apresenta os problemas dá bastante contexto e permite perceber melhor o que está por trás de uma série de problemas novos”. Nabais sente Deep China “acompanha bem” os livros que traduziu e que “pode ser bom para ter uma ideia melhor sobre quais são os desafios e os problemas em que a maior parte dos chineses pensam no seu dia-a-dia, quais são as suas principais preocupações”. O tradutor nota que por vezes temos duas visões estereotipadas dos chineses: “Ou os chineses são todos uma espécie de autómatos, fizeram-lhes lavagem ao cérebro e obedecem a tudo o que lhes dizem; ou então a outra visão é de que aquilo vai tudo rebentar qualquer dia e que se não fosse o controlo apertadíssimo ia tudo abaixo numa semana. As coisas encontrar-se-ão bastante a meio disso e cada pessoa tem também essa divisão, o livro fala sobre esse problema do ‘eu dividido’, digamos assim, e há muitas linhas de fractura que atravessam as pessoas na China”.
As linhas fracturantes da sociedade não são, claro, algo específico da China, mas “na China essas linhas são mais acentuadas e mais complexas”. Por exemplo: “As pessoas querem estabilidade mas também querem um pouco mais de liberdade de expressão; mas também sabem que o partido trouxe modernização, infra-estruturas e mais riqueza para a maior parte das pessoas, está a erradicar a pobreza extrema e as pessoas reconhecem isso; mas por outro lado é um governo bastante autoritário e repressivo. As pessoas não se posicionam de uma forma simples de um lado ou do outro da questão, são atravessadas por estes problemas e por estes dilemas.”
O livro aprofunda alguns aspectos mais específicos da sociedade chinesa e um dos destacados por Nabais é a sexualidade. “Estava à espera de chegar a um sítio bastante conservador na questão da sexualidade e de facto a omnipresença de sex shops que o livro refere foi uma surpresa para mim, mesmo em cidades pequenas, em bairros residenciais. (…). Paradoxalmente a política de filho único acabou por fazer uma separação entre sexo e reprodução”. Nabais explica: “A sociedade chinesa era uma sociedade bastante moralista em que não era bem visto o sexo antes do casamento. Porém, ao generalizar o uso de contraceptivos e também de permitir um grande acesso ao aborto, fácil e gratuito, trouxe essa situação nova: as pessoas começaram a desligar o sexo da reprodução, e começaram a desfrutar do sexo, e até mais tarde com o crescimento da comercialização e do consumo, da lógica de mercado, da individualização, começaram também a separar sexo de amor, a ter uma relação mais descomplexada do sexo. Isso notava-se mas, quando comecei a dar aulas, notava-se que coexistiam perspectivas muito diferentes: ainda há muitos jovens que têm uma visão muito mais conservadora do que aqui face ao sexo; mas depois há outros que têm uma atitude muito mais descomplexada e até muito mais libertina se quisermos”.
Também em relação à atitude face à homossexualidade e ao modo como deixou de ser tabu na sala de aula, Tiago Nabais diz ter observado “uma mudança brutal” e positiva na atitude dos jovens na China.
Regresso a Portugal
Tiago Nabais voltou para Portugal em 2020. Na altura trabalhava em Pequim e veio passar as férias do Ano Novo Chinês a Lisboa, mas a pandemia de covid-19 alterou os planos. “Inicialmente queríamos voltar, continuámos a trabalhar online, depois as coisas foram-se prolongando e acabámos por nunca voltar. Neste momento não tenho plano de regressar, entretanto comecei um doutoramento aqui.” Nabais está “a estudar em profundidade a literatura chinesa dos anos 1980, a primeira década das reformas a seguir à Revolução Cultural, uma fase de grande experimentação na literatura”, e abrandou o ritmo das traduções. Acredita que o seu futuro estará de alguma forma “ligado a questões chinesas” e reconhece a importância da década que passou no país: “Evidentemente agora é uma parte da minha vida, é uma parte de mim.”