Entrevista. Vânia Teixeira: “Cerca de metade dos estudantes de medicina tem sintomas depressivos”

por Ana Monteiro Fernandes,    10 Setembro, 2023
Entrevista. Vânia Teixeira: “Cerca de metade dos estudantes de medicina tem sintomas depressivos”
Vânia Teixeira / DR
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Um estudo da Universidade do Minho (UM), publicado este ano na revista internacional Healthcare, estipulou que 47% dos estudantes do Mestrado Integrado de Medicina apresentam sintomas depressivos, 12% já teve pensamentos suicidas e que, quanto às minorias étnicas e sexuais, estas apresentam maior risco de desenvolver doença mental.

Foram estes os principais resultados do estudo realizado no âmbito do projeto final de investigação do ano lectivo 2022-23, de Vânia Teixeira, sob mentoria do psiquiatra Pedro Morgado (ler entrevista), coordenador regional do Norte para a saúde mental, investigador e professor da Universidade do Minho (UM). O estudo teve, como mostra, um universo de 768 estudantes das Escolas de Medicina do país, precisamente do ano letivo de 2022-23, apresentando como principal foco “a depressão, ansiedade e também o burnout“, tal como explicou Vânia Teixeira em entrevista à Comunidade Cultura e Arte.

Um estudo da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), de 2020, centrando-se especificamente nos níveis de burnout dos estudantes de Medicina, já havia referenciado, com cerca de 1700 estudantes inquiridos, que quase 60% dos mesmos já haviam estado em burnout em alguma fase do seu percurso académico. Num estudo aberto a todas as áreas de ensino universitário, por sua vez, a Associação Nacional de Estudantes de Psicologia (ANEP), em parceria com a Raising Youth For Sustainable Evolution (RYSE), concluiu que 48% dos estudantes do ensino superior apresenta sintomatologia grave do foro psicológico. A publicar em breve, a Comunidade Cultura e Arte continuará a tratar este assunto numa entrevista com a ANEP, abrindo o espectro à saúde mental do ensino superior em geral. Aqui fica, no momento, a entrevista com Vânia D’alva Teixeira, sobre o referido estudo da UM.

O vosso estudo afirma que as minorias étnicas e sexuais apresentam um maior risco de desenvolver doença mental. A vosso ver, qual a razão que poderá justificar isso?
Um dos principais motivos é a discriminação, cujo efeito consegue impactar diversas áreas determinantes da saúde mental, como o trabalho, o apoio familiar e a rede social. O simples facto de se existir enquanto minoria pode também levar ao stress psicológico, pela existência de um estado de conflito entre as características do próprio e os ideais da maioria. Daí a importância da representatividade nos media, escolas, hospitais e outras instituições.

Para além do maior risco de desenvolver doença mental, sabe-se que existe uma assimetria nos cuidados de saúde prestados às minorias. Esta assimetria existe tanto na facilidade de acesso, como na qualidade do serviço oferecido e é fundamental que nós, médicos, a reconheçamos e que priorizemos a criação de um espaço seguro para os pacientes que recebemos.

De que forma as escolas de medicina portuguesas poderão abordar este assunto e pensar na prevenção? Dever-se-ia dar mais atenção à forma como os currículos são divididos, por exemplo?
A prevenção começa com a criação de uma cultura que vê a saúde mental como uma prioridade. Os estudantes de medicina têm de sentir, desde o início do seu percurso, que existe um sistema a trabalhar a seu favor, que vão ser ouvidos e que podem pedir ajuda complementar de forma rápida, descomplicada e sem estigma. A nível curricular, existem diversas medidas que podem ser adotadas. Na Escola de Medicina da Universidade do Minho, por exemplo, uma das alterações recentes foi a implementação de momentos de desenvolvimento pessoal através da reflexão escrita e da transição para o método de avaliação aprovado/não aprovado nos exames intercalares. Uma medida apontada, em vários estudos internacionais, como uma das que mais consistentemente consegue reduzir a ansiedade experienciada pelos alunos. Outra medida importantíssima é a diversificação dos componentes de avaliação, em oposição à clássica avaliação centrada, quase exclusivamente, no exame escrito.

“O simples facto de se existir enquanto minoria pode também levar ao stress psicológico, pela existência de um estado de conflito entre as características do próprio e os ideais da maioria. Daí a importância da representatividade nos media, escolas, hospitais e outras instituições.”

Quais as maiores preocupações dos estudantes ou o que os preocupa mais? Dificuldades monetárias, falta de tempo, as notas, perspectivas de futuro, outros fatores ainda?
A gestão do trabalho académico foi uma das preocupações mais frequentemente assinaladas no nosso estudo e inclui a gestão do tempo e a assimilação de conteúdos. Os estudantes mostraram-se também preocupados com a manutenção da saúde física e encontrámos uma relação forte entre a existência de problemas nessa área e níveis superiores de ansiedade e depressão. A “saúde física” é um termo amplo que engloba a prática de exercício físico e a alimentação saudável, importantes aliados da saúde mental.

O nosso estudo faz parte de uma monitorização da saúde mental que é realizada desde 2009 na Escola de Medicina da Universidade do Minho e ao longo do mesmo também tem-se verificado que os eventos de vida negativos, para além de serem uma preocupação para os estudantes, são determinantes e importantes da diminuição da saúde mental.

No âmbito das doenças do foro mental, no caso deste estudo quais foram as que mais se evidenciaram?
O nosso estudo focou-se na depressão, ansiedade e também o burnout (que, não sendo uma doença, é uma condição de saúde associada à atividade principal da pessoa), e mostrou que cerca de metade dos estudantes de medicina tem sintomas depressivos, o que é alarmante. Também constatámos que cerca de um terço dos alunos tem sintomatologia ansiosa e que 12% dos alunos tem ou teve pensamentos suicidas.

Na Universidade de Coimbra, por exemplo, o rácio é de um psicólogo para cada cinco mil alunos. Nas diversas faculdades há ou não um problema relativo aos gabinetes de psicologia ou a gabinetes onde os estudantes podem pedir auxílio?
Sim, há um problema. Tanto nas faculdades, como a nível nacional a capacidade de resposta aos problemas de saúde mental ainda é insuficiente. No entanto, é preciso que cada entidade tenha os seus deveres e funções bem estabelecidas. O papel das faculdades deve centrar-se na prevenção e promoção de saúde mental e o tratamento da doença mental deve ser reservado às unidades de saúde destinadas para esse efeito, idealmente com uma articulação entre ambos.

“Metade dos estudantes de medicina tem sintomas depressivos, o que é alarmante. Também constatámos que cerca de um terço dos alunos tem sintomatologia ansiosa e que 12% dos alunos tem ou teve pensamentos suicidas.”

O que torna o curso de medicina mais susceptível a problemas de saúde mental?
Existem dois grandes fatores. O primeiro prende-se com o perfil dos estudantes que escolhem a carreira médica. Os estudos mostram uma elevada prevalência de perfeccionismo mal-adaptativo e de síndrome de impostor entre os estudantes de medicina. Em segundo lugar, características inerentes ao próprio percurso académico, como a elevada carga de informação que exige um investimento temporal grande e leva frequentemente ao isolamento, a uma má higiene do sono e à aquisição de outros comportamentos mal-adaptativos, que quando associados ao perfeccionismo, podem ser desastrosos.

Referiram também no vosso estudo que a sintomatologia de problemas de foro psiquiátrico, nos homens, tende a ser mais externa, enquanto que, nas mulheres tende a ser mais interna. O que poderá justificar esta diferença e em que é que se traduz?
A doença mental manifesta-se, tendencialmente, de forma diferente nos dois sexos. Nas mulheres é esperada uma maior frequência de sintomas depressivos e ansiosos. Já nos homens, é mais frequente uma manifestação através do abuso do jogo, álcool e outras substâncias. Ao reconhecermos a existência destes dois tipos de apresentação, mais facilmente se identificam possíveis sinais de alerta e se inicia o tratamento adequado.

“O papel das faculdades deve centrar-se na prevenção e promoção de saúde mental e o tratamento da doença mental deve ser reservado às unidades de saúde destinadas para esse efeito, idealmente com uma articulação entre ambos.”

O vosso estudo foca-se nos estudantes de medicina, mas o estudo da Associação Nacional de Estudantes de Psicologia (ANEP), em conjunto com a Ryse (Raising Youth for Sustainable Evolution) , estipulou que 48% dos estudantes universitários têm sintomas de depressão, ansiedade ou perda de controlo. De que forma os estudantes, em geral, podem evitar situações de stress em épocas de maior estudo? E quais as ilações que devem ser tiradas destes estudos?
Estes estudos mostram-nos que há muito trabalho a ser feito e que a saúde mental dos estudantes universitários tem de ser uma prioridade da sociedade geral e das universidades em particular, caso contrário, as consequências serão preocupantes.

E para os alunos, o objetivo não deve ser o de evitar todas as situações de stress. Este é um componente natural da nossa experiência como estudantes e humanos. Devemos antes olhar para a saúde mental como uma balança onde, de um lado, temos os fatores stressores (a falta de tempo, os conflitos sociais, a gestão de informação, etc) e, do outro, os fatores protetores (o exercício físico, a nutrição, os amigos). Vão existir alturas em que a balança penderá mais para os pontos stressores, e, aí, torna-se necessário saber reconhecer se dispomos de estratégias de coping eficazes e se existem fatores protetores que possam ser reforçados. No entanto, é importante reconhecer que nem sempre essas ferramentas serão suficientes. Se verificamos que a nossa vida está a ser afetada negativamente, de uma forma com a qual já não conseguimos lidar sozinhos, é crucial pedir ajuda.

Se estiveres numa situação de risco podes ligar para várias linhas de apoio disponíveis aqui. “As linhas de apoio telefónico, na sua generalidade garantem o anonimato e oferecem a possibilidade de falar sobre as questões relacionadas com o suicídio com voluntários sem a pressão de uma conversa face-a-face. Falar sobre o problema ou compartilhar a dor com outra pessoa que se interessa pode ser uma grande ajuda em situações de crise.”  

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