Festival MED: terceiro e último dia da música do mundo em Loulé
O mês de Julho chegou e, com ele, trouxe mais calor ao festival MED, cujas primeiras duas noites não foram bons exemplos das agradabilíssimas noites de Verão que o Algarve tem para nos oferecer. Ao longo das três noites, os rios de gente a correr pelas ruas estreitas e a música por todas as partes foram uma constante, mas este último dia de festival foi bem mais ameno. Sabendo que sábado é sempre a noite de maior enchente, a organização joga bem os seus trunfos, guardando os nomes mais sonantes para os dias menos concorridos – como Ana Moura na quinta ou Rodrigo Leão na sexta. No entanto, a qualidade da música nunca é descurada.
Um exemplo perfeito é o projecto Medeiros/Lucas, liderado pelos açorianos Carlos Medeiros e Pedro Lucas, que apresenta os seus únicos dois álbuns de estúdio num Palco Castelo pouco preenchido. Carlos Medeiros cede a sua voz, cantada ao jeito do cancioneiro tradicional português, a canções rock que oscilam entre o tranquilo e o apocalíptico, retendo quase sempre uma aura sombria. As melodias complexas são eximiamente tocadas por Pedro Lucas na guitarra e ampliadas pelo Fender Rhodes de Augusto Macedo, que atribui um toque de jazz às composições. Elementos electrónicos inusitados entrosam-se nas canções sem soarem deslocados. Lucas descreve uma das canções como uma “cumbia à Zeca Afonso”. Não devia funcionar, mas funciona. Para além da música, as máquinas de fumo e a luz azul desorientadora contribuem para o ambiente sedutor. O concerto fecha com “O Navio”, canção feita para fechar bailes de marinheiros. Não era o caso, mas adequou-se. Pena que apenas uma pequena minoria tenha assistido a este espectáculo.
No entanto, facilmente se compreende a falta de público no Castelo, pois estava tudo concentrado na Cerca a assistir ao espectáculo de Mayra Andrade. Novamente, mais uma cabo-verdiana inaugurou os concertos do dia no Palco Cerca. Aqui, a herança cabo-verdiana manifesta-se maioritariamente no crioulo em que Mayra canta, mas, musicalmente, as canções têm toques de géneros mais universais como o rock ou o jazz. A sua voz doce e simpatia conquistam o público que a presenteia com algumas das maiores ovações que ouvimos ao longo de todo o festival. No final do concerto, apesar de supostamente não haver mais tempo, o público exige mais uma canção, pedido a que a organização acaba por aceder. “O povo falou!”, exclama Mayra Andrade.
A caminho do Palco Matriz, passamos pelo espaço do MED Fado, os claustros do Convento do Espírito Santo, convertidos numa autêntica casa de fado. A cada dia, César Matoso, o fadista residente, convida dois novos talentos do fado, que nos fazem ter fé na renovação desta tradição tão portuguesa. No sábado, a honra calhou a Sara Paixão e Inês Graça. Canta-se o fado tradicional, melancólico, com espaço ainda para uma Marcha de S. António, pois Junho ainda está fresco nas nossas mentes.
No Palco Matriz, o conjunto iraniano Niyaz apresenta a sua música do Médio Oriente misturada com batidas electrónicas. A guitarviol de Loga Ramin Torkian e flauta unem-se aos beats programados, sobre os quais Azam Ali canta em persa ou urdu. O misticismo sufista associado às letras, melodias e voz é aumentado pela componente visual e pela repetitividade da electrónica, resultando num efeito hipnótico envolvente. Apesar da forte identidade cultural evocada pela sua música, Azam diz que o mais importante a reter do concerto é que esta é uma altura para “pôr de parte bandeiras e religiões, e unirmo-nos como humanidade”. O Festival MED, para si, é uma bela celebração da humanidade, e não necessariamente da cultura de cada um dos intervenientes. Foi um lindo discurso, clamado de uma forma fervorosa, que esperamos ter ficado na mente de grande parte do público.
Voltando à Cerca, num ritmo alucinante de deslocação entre os vários palcos, assistimos ao concerto dos Delgres, projecto com raízes na nação insular francesa de Guadalupe. A guitarra de Pascal Danae lembra-nos a ‘rockalhada’ dos Tinariwen (que estiveram no MED no ano passado), evocando os blues americanos com um toque quente do arquipélago caribenho de onde Danae é originário. Um toque especial é dado pelo sousafone, tocado por Rafgee, que pretende dar o efeito do baixo. Os blues desprendem-se da guitarra facilmente, em canções soltas e dinâmicas, que agitam o público da Cerca.
Para não andarmos apenas pelos palcos principais, fomos à Bica espreitar os Cows Caos. O nome faz jus à performance caótica, o que não é um epíteto negativo. A frontwoman do projecto, que dá pelo nome de Titz Vagabond, bamboleia-se violentamente em palco ao som do rock and roll tocado por quatro jovens em fatos brancos, ao jeito de uma Karen O nos primórdios dos Yeah Yeah Yeahs. Em toda a sua agitação, um seio acaba por ver a luz da noite, pelo que a parte de cima do body que enverga acaba por desaparecer e a antepenúltima canção é terminada em topless. “Isto por mim era até de manhã”, diz ela. Por nós também!
“A vida são dois dias e o MED são três”, ouvimos a caminho do Palco Matriz. Três dias que agitam o centro desta capital de concelho e, a par da Noite Branca, são os dias mais importantes da cidade. Vê-se o orgulho que os louletanos têm em organizar esta festa e receber gente vinda de todas as partes do mundo. É bonito.
Na Matriz, os Che Sudaka animam o público do MED. Para uma banda reconhecida pela sua exploração do ska, as batidas que apresentaram em Loulé aproximaram-se mais do reggaeton ou de canções adequadas a arraiais de Verão. Independentemente da designação, o que é certo é que o público foi receptivo, saltando e dançando ao som dos ritmos convidativos e potentes, completos com mensagens poderosas e interventivas. Veja-se o título de uma das canções que apresentaram, “Mentira Politika”, ou a dedicatória de uma canção aos camponeses, que lutam contra os produtos transgénicos e empresas como a Monsanto.
Ao mesmo tempo, à entrada do Palco Castelo, mares de gente lutavam por um cobiçado lugar no recinto onde Bezegol iria actuar. Acompanhado dos Rude Bwoy, o portuense apresentou a sua mistura de reggae, hip-hop e funk, sobre os quais faz rap com uma voz rouquíssima. O público pouco espaço tinha para se mexer, mas fazia a festa o melhor que podia, aproveitando a boa onda que se fazia sentir. Nós acabámos por não aguentar a pressão e partimos para fazer a festa na Cerca.
Por essa altura, já os romenos Fanfare Ciocarlia faziam uma festa de sonoridade bastante diferente da de Bezegol. Uma autêntica fanfarra com instrumentos de sopro em cima de palco (contámos dez) e os ritmos de um tambor e um kit de percussão. Foi simples, mas eficaz. Canções divertidíssimas, em que todos os instrumentos se encadeiam uns nos outros de uma forma impressionante. É quase impossível não ficar entusiasmado ao ouvir esta música vinda de um arraial cigano. Segundo o conjunto, somos dos melhores dançarinos para quem eles já tocaram, e nós, embevecidos, dançamos ainda mais.
Para terminar a noite, um dos fundadores dos Buraka Som Sistema, Branko, põe os resistentes a dançar com os seus ritmos que vão beber ao kuduro, género do qual tem sido figura de proa desde a década passada. Foi um bom fecho para mais uma edição bem sucedida do Festival MED, que continua a crescer. Em jeito de balanço final, o aumento do público demonstra um crescente interesse em iniciativas culturais e na música do mundo, tão bem representada aqui em Loulé. No entanto, se este crescimento se mantiver, talvez o espaço deva ser ligeiramente repensado, e quiçá expandido, para permitir um melhor aproveitamento para todas as partes. Para já, não vemos razão para não regressar. Até para o ano!